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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 17h54
República de 1817

Marco  Morel

A República de 1817 não foi apenas pernambucana, mas se manifestou também em Alagoas, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará, em diferentes escalas, apesar de Pernambuco ser o epicentro. Esta expressão política vigorosa deve ser compreendida no âmbito de uma macro-região, observando-se as correlações entre capitanias e respectivas atividades econômicas, alianças familiares, afinidades culturais, presença de grupos sociais distintos e os interesses comerciais e administrativos que geraram uma fissura no corpo do império luso-brasileiro quando este parecia encontrar-se num apogeu ascendente. O movimento rompia ao mesmo tempo com a forma de governo monárquica e com a dominação portuguesa.

A perda de prestígio da região chamada genericamente de Norte era evidente desde que a capital da América portuguesa fora transferida para o Rio de Janeiro cinco décadas antes, tendência reforçada com a instalação da Corte portuguesa nesta cidade, em 1808. No âmbito simbólico basta lembrar que a eclosão da República de 1817 adiou a aclamação de d. João VI como rei no Rio de Janeiro. Deste modo, longe de serem acontecimentos de âmbito localizado, tais episódios mobilizaram atenções e forças políticas em todo o Reino do Brasil, suscitando posicionamentos e repressões em diversos pontos do território de alcance continental.

A explicação de viés regional, embora freqüente, não é a única possível para as tensões e crises: havia também diversidade social interna entre os integrantes e a formação de uma cultura política de tipo moderna, liberal e democrática que servia como catalisadora destas manifestações. Ao mesmo tempo, registra-se o caráter híbrido dos protagonistas que, ao levarem adiante uma tentativa de ruptura em moldes revolucionários, embasavam-se em referências tradicionais como restauração de antigas liberdades, fidelidade à religião e regeneração da pátria. Mais do que explosão momentânea, o ato de rebelar-se está ligado ao de revelar-se: as rebeliões são momentos de maior visibilidade e "revelação" de relações em (tentativa de) mudança.

Este movimento de 1817 que vigorou por cerca de três meses inspirava-se, na forma de governo, em matrizes como o Diretório da Revolução Francesa (com sua República colegiada e repúdio simultâneo ao absolutismo tradicional e ao radicalismo revolucionário), bem como no federalismo norte-americano (republicano e híbrido entre aristocracia escravista e democracia política), sem esquecer a evidente sintonia com as guerras de independência na América hispânica.

A discussão sobre a possibilidade de separação entre os Reinos do Brasil e de Portugal ocorre ainda na década de 1810, inclusive, na imprensa periódica redigida em português que circulava no território brasileiro, como o Correio Brazilliense, que, aliás, era contra tal separação. Embora já se disseminasse em palavras, projetos, atitudes e leituras, pelo menos desde fins do século XVIII, tal debate desponta de maneira explícita na cena pública (que se conformava, também, por meio do espaço impresso) em 1817, quando se mostra mais aguda a crise do império português, com destaque também para a conspiração descoberta em Portugal no mesmo ano.

O abade, escritor e homem público francês, Guillaume De Pradt, um dos principais teóricos das transformações políticas ocidentais em princípios do século XIX, teve interesse e atribuiu significativa importância aos acontecimentos de 1817 nas capitanias brasileiras, publicando livros sobre o assunto. Eles vinham em reforço de sua "teoria da independência", baseada em dados históricos. De Pradt defendia que o Rei de Portugal, transformando-se em Rei do Brasil somente, deveria apoiar a Revolução Americana, isto é, as independências nas Américas, desvinculando-se, assim, de seu território e compromissos europeus e eliminando um fator de risco que, para o abade, seria possível ocorrer. E citava como exemplos a rebelião nas províncias do Norte brasileiro e a conspiração abortada em Lisboa, como indicadores do perigo de desagregação do império português. Para De Pradt, enfim, se o monarca lusitano adotasse tais medidas, se posicionaria no meio de um mundo absolutamente novo.

Nesta linha, e até de modo mais radical, estavam muitos clérigos nascidos no Brasil que aderiram à República de 1817, conhecida até como "revolução dos padres" pela ampla presença do chamado clero constitucional em suas fileiras, como ideólogos e mobilizadores. Exemplo mais conhecido foi o do padre João Ribeiro, que após bradar nas ruas "Viva Nossa Senhora! Viva a liberdade! Morram os aristocratas!" faleceu tragicamente e teve seu corpo profanado e mutilado pelas forças repressivas.

Apesar da memória histórica erigir em tempos póstumos a figura de outro religioso, o carmelita Frei Caneca, como um dos principais nomes de 1817 em Pernambuco, um exame atento na documentação da época levanta sérias dúvidas sobre tal preeminência e até mesmo sobre sua participação em tal episódio, apesar de ter sido preso, ao que tudo indica, de modo arbitrário.
Os líderes saíram da clandestinidade das lojas maçônicas ou secretas para assumir o poder em 1817. A condenação moral do trabalho escravo, acompanhada da tolerância em relação a este, era uma atitude comum entre liberais da primeira metade do século XIX - e não apenas no Brasil.

A posição ambivalente ou contraditória diante da abolição da escravidão caracterizou a maioria dos revolucionários franceses, inclusive os tidos como mais radicais. Na mesma ocasião, os governantes provisórios de 1817 esclareceram serem favoráveis à emancipação gradual, lenta e dentro da lei que permitisse eliminar da sociedade o "cancro" da escravidão, mas não falaram em datas, nem de longo prazo. Garantiram também que todas as propriedades - "ainda as mais opugnantes aos ideais de justiça, serão sagradas". Em outras palavras, as lideranças eram contra a escravidão, mas não viam possibilidade de eliminá-la.

Entretanto, a atuação das camadas pobres de Recife, em 1817, não se esgota no temor dos proprietários nem nos limites de atuação dos líderes revolucionários. Há nos documentos da época a marca da presença destes setores da população na cena pública, ainda que sem legitimidade para tal, segundo os padrões dominantes. Em primeiro lugar, o próprio evento da deposição do tradicional governante monárquico e a subida ao poder de pessoas até então descredenciadas para tal (dentro dos padrões do Antigo Regime) gerou uma quebra de autoridade.

Os tiroteios nas ruas, a palavra "revolução" andando de boca em boca, mesmo que sem grandes fervores da parte da maioria dos habitantes, ocasionou uma liberação de atitudes e expressão de ressentimentos e resistências que dificilmente poderiam vir à tona em outras ocasiões. A diversidade aflora com a eclosão das Revoluções. Por isso, os registros indicam que na República pernambucana de 1817 passou a ser comum escravos se mostrarem insolentes ou respondões a seus senhores, mendigos dizerem desaforos às senhoras caridosas, mulatos e negros (livres ou libertos) começarem a se expandir e verbalizar a possibilidade de ocuparem mais espaço naquela sociedade, etc. Daí, talvez a proclamação explicativa dos governantes republicanos sobre a escravidão tenha ocorrido, ao que parece, também como reação, escrita e impressa, a essas vozes, gestos, palavras ou gritos que circulavam pela cidade, ameaçando alterar o sentido da Revolução que estava em curso.

Ocorre neste contexto uma presença significativa de setores oprimidos do ponto de vista étnico ou social, no interior da revolta, por meio da atuação militar, seja em milícias ou regimentos. Uma das figuras exemplares desta participação é a do "pardo" (categoria jurídica e racial da época) Pedro da Silva Pedroso, personalidade polêmica que estará presente neste ciclo de rebeliões pernambucanas. Pedroso, à frente de um aguerrido e temido Batalhão de Pardos, foi uma das figuras de proa daqueles tempos.

Note-se que os rebeldes de 1817 optaram por não produzir uma imprensa periódica, apesar de terem em mãos uma tipografia não utilizada. Mesmo levando-se em conta a recente tradição de periodismo, então existente no Brasil, eles preferiram publicar decretos, manifestos e proclamações avulsas.

A repressão à República de 1817 gerou ampla documentação: foi violenta, desmedida e com lances de maus tratos, torturas, prisões prolongadas e mortes cruéis, causando um trauma político que custou cicatrizar, revelando a face dura do período joanino, visto com freqüência por seus melhoramentos civilizadores. Muitos dos sobreviventes estariam, cinco anos depois, participando da Independência do Brasil de Portugal e, ainda, em 1824, da Confederação do Equador nas mesmas províncias rebeldes, desta vez contra os rumos centralizadores e autoritários do nascente Império brasileiro.

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