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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 17h29
O Arsenal de Marinha

Prof. dr. Álvaro Pereira do Nascimento
UFRRJ / CEO-Pronex

Os arsenais de marinha da Bahia e do Rio de Janeiro se destacaram frente aos demais desde o início da colonização portuguesa.  Longe de resumir suas atividades à construção naval (entenda-se produção, reparo e manutenção de navios militares e mercantes), esses arsenais abasteceram de água os navios ancorados, receberam presos de toda espécie, recrutaram marinheiros para a Armada, assim como operários para suas próprias atividades, embarcaram artífices (carpinteiros, calafates etc.), foram palco de aplicação de castigos físicos e até apagaram incêndios pelas cidades. O baiano teve embarcações comerciais e militares frequentando suas oficinas, e o carioca dedicou-se mais às demandas da Marinha de Guerra. À frente de ambos estava o intendente, oficial de Marinha de Guerra, arma responsável por essa fundamental instituição povoada por livres, estrangeiros, forros e tantos escravos e escravas.

O arsenal baiano era bem mais antigo e pode ser pensado já no século XVI, enquanto o carioca data do meado do século XVIII, mais precisamente de 1763, na administração do vice-rei, d. Antonio Álvares de Cunha, o conde de Cunha. A criação e o desenvolvimento de ambos estavam diretamente ligados primeiramente às demandas econômicas que a então colônia produzia. O comércio de escravos e do açúcar, assim como a posterior e mais rendosa exploração de metais preciosos em Minas Gerais, levaram à transferência da sede do vice-reinado de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, e modificaram o papel exercido pelos dois arsenais. Essa mudança foi ainda mais acentuada com os reflexos do cenário político internacional que deu ao Rio de Janeiro a posição de capital frente ao império português, com o desembarque da família real, em 1808.

As comunicações pelo Atlântico eram fundamentais para o abastecimento das mais diversas cidades, feitorias e vilas das partes mais distantes deste vasto oceano. Alimentos, trabalhadores escravos, comerciantes, migrantes, funcionários, viajantes, matérias-primas e objetos diversos ocupavam porões e camarotes das mais variadas embarcações. Patachos, corvetas, bergantins chegavam às costas portuguesas, europeias, africanas e americanas, assim como às caribenhas, norte-americanas e a tantos mais pontos banhados pelo Atlântico. E o Arsenal da Bahia assumiu parte importante nessas conexões ao produzir embarcações de 500 a 1100 toneladas, que traziam a bandeira portuguesa à proa como distintivo de a quem pertenciam.

No caso do arsenal carioca, esse não teve o mesmo fôlego construtor do soteropolitano. Mas isso não significa dizer menos atividades, trabalho produtivo e supervisão da segurança da região. Da construção de navios, destacou-se pelas embarcações militares, cujo exemplo mais representativo foi o lançamento do vaso de guerra São Sebastião, de 140 toneladas, construído com madeiras doadas pelo Mosteiro de São Bento, puxadas a boi da região de Nova Iguaçu, aproximadamente a 70 km das oficinas. Sendo, em 1763, a nova capital do vice-reino, ponto de partida do caminho às minas, e depois, em 1808, centro político de todo império português, a administração do Rio de Janeiro aumentou as responsabilidades do arsenal carioca, delegando atividades ligadas ao recrutamento para a Armada, à manutenção da segurança e ordem públicas e até outras que seriam exercidas futuramente pelas capitanias dos portos.

Como tão bem descreveu o historiador Jaime Rodrigues,1 a construção e o reparo dos navios exigiam toras e mais toras de madeiras nobres das florestas da então América portuguesa: angelim, amarelo, piqua-banana, ingá-porco, amberiba preta, biroquim e a sucupira produziram cascos, mastros, aduelas, eixos, cubos, pinas e raios. As madeiras brasileiras eram reconhecidas por sua qualidade invejável, por tão rígidas ou maleáveis quanto qualquer artífice necessitasse, e não por acaso eram exportadas para estaleiros lisboetas. Esses profissionais haviam de observá-las muito bem antes de qualquer intervenção, um corte em vão e perdia-se a peça. Dentro de cada tora, havia de se buscar o formato de uma parte importante do revestimento do casco, da altura de um mastro, das bases nas quais se atavam as velas, da porta que protegia os camarotes.  Conhecimentos como esses demoravam a ser acumulados e processados por qualquer aprendiz.

Havia tanoeiros (construtores de tonéis), carpinteiros de machado, carpinteiros de casas, carpinteiros de lagarto, serradores, calafates (responsáveis pelo rejunte nas emendas das madeiras com estopa e breu), ferreiros de forja, ferreiros de lima, ferreiros de fundição de cobre, poleeiros (que tratavam do conjunto de peças - roldanas, por exemplo - destinadas à passagem de cabos, tais quais os de manobrar o navio ou de comandar as velas) cavoqueiro (cabouqueiro), bandeireiro, pintor, funileiro, canteiro, pedreiro e tecelão. Como ensinou o vice-almirante Juvenal Greenhalgh, estes eram, geralmente, homens brancos e portugueses que "traziam os seus escravos para trabalharem como ajudantes e cujos salários embolsavam".

Não à toa, encontramos diversos ofícios emitidos pelo inspetor do arsenal referindo-se a estes artífices e a seus respectivos escravos. Se hoje profissionais autônomos contratam dois ou três ajudantes, durante o período escravista, a aquisição desta mão-de-obra era o costume. Sendo artífice e senhor dos seus ajudantes, levava seus cativos sempre que assumia uma empreitada, fosse no Arsenal de Marinha ou em qualquer outra empresa. Eles faziam os trabalhos mais repetitivos e pesados, mas também aprendiam a arte com seu senhor e deviam ter conhecimento vasto sobre o assunto, assumindo determinadas atividades menores do ofício ou mesmo o lugar do artesão, quando mais experientes. Tiveram momentos em que o intendente dispensou artesãos e aprendizes de algumas oficinas para empregar escravos comprados anteriormente pelo próprio Estado como operários. O que demonstra a qualificação a que chegavam esses trabalhadores após anos servindo como ajudantes.  Todo custo desta mão-de-obra era repassado para o intendente, que pagava os salários por meio da sua contadoria.

O grande problema para dar conta de tanto serviço era a falta de trabalhadores, e não somente especializados. O trabalho pesado de carregar pedras, madeiras, cordas, água, panos, metais dos mais diversos, carvão, de pintar cascos, de remar cruzando a baía ou interligando embarcações, assim como tantas outras atividades recaíam sobre os ombros de homens de diferentes condições sociais. Essas funções demandavam tempo e uma quantidade expressiva de operários ajudantes e carregadores, nem sempre interessados em trabalhar nas mais difíceis condições e com atrasos constantes de salários, que já eram baixos quando comparados a empresas particulares.  

Há perguntas sobre o cotidiano do abastecimento e do transporte no século XIX, cujas respostas encontram-se nas atividades desempenhadas por tantos homens no arsenal.  Quando um navio cruzava a barra das baías ou se aproximava dos cais, contava com o apoio logístico do arsenal da região. Geralmente, era ele que abastecia as embarcações de água, víveres, autorizava a entrada e a estadia na região de ancoradouro, tinha o material humano e as peças para o conserto, fiscalizava a entrada e a saída de tudo que vinha no navio. 

Uma das funções mais importantes era a de prático da barra (também conhecido por patrão de escaler). Estes conheciam cada palmo do que não era visto sob as águas, e assim guiavam o navio visitante com segurança, impedindo que encalhasse em bancos de areia provenientes do assoreamento, ou batessem em recifes, embarcações afundadas e outros perigos no trecho que vai da entrada da barra até o ancoradouro.  Sem escravos para remarem o barco que levava o patrão, não havia como manter a entrada e a saída das embarcações.  A situação ainda poderia ser mais complexa caso os ventos não empurrassem as velas dos navios. Como ainda não havia a propulsão a vapor no período joanino e nem possibilidade de ancorar embarcações maiores (algo só possível após o surgimento da dragagem), estes navios à vela poderiam ser rebocados por pequenos barcos até a região em que os ventos se fizessem presentes. Novamente, eram escravos remadores que, em movimentos de pura força e sincronia, forçavam o deslocamento do grande navio através dos remos desses pequenos barcos. O patrão-mor, auxiliar direto do inspetor, era o responsável geral de todas as atividades ligadas à entrada e à saída das embarcações pela baía.

Com a chegada da família real à antiga colônia, o intendente do Arsenal teve de se desdobrar para dar conta de tantas atividades que diariamente tomavam sua mesa. As preocupações aumentaram desde os preparativos para recepcionar tão capitais autoridades, como para aumentar a segurança da região que se tornara centro político do vasto império português, reformar e construir casas, equipar navios militares com tripulantes, contratar mais remadores, preparar os locais de desembarque, consertar e reformar vasos de guerra, entre outras. Há diversos casos de escravos alugados às carreiras para garantir a execução de ordens recebidas, o que gerou dispêndios razoáveis aos seus proprietários. Devido a essa pressão, uma prática antiga em Portugal e outros países europeus e suas conquistas ganhou ainda mais espaço: o trabalho compulsório.

Este processo de recrutamento procurava forçar ao trabalho homens que por algum motivo tiveram problemas com a justiça ou mesmo que não tivessem a proteção de alguém poderoso que os livrasse daquela situação.  A prática não era nova no Brasil, sendo utilizada desde os primórdios da colonização.  No caso do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, havia um departamento que ajudava a receber esses recrutados à força com maior frequência: as presigangas. Eram navios velhos ou imprestáveis a novas aventuras marítimas, que serviam de prisões para todo tipo de condenados pela justiça militar e civil, ou detidos pela polícia.  Naquelas prisões encontravam-se pessoas de todas as condições sociais (escravos, forros e livres) devido às mais diversas contravenções e crimes: presos políticos, assassinos, ladrões, capoeiras, desertores, ébrios, vadios, mendigos etc. O Rio de Janeiro tinha somente o Aljube e a Cadeia Velha para receber todos os presos da cidade, sendo aqueles navios empregados paulatinamente como solução deste sério problema. 

Muito interessante notar que nessas ocasiões escravos aproveitavam para escapar de seus senhores. Ao serem presos, inventavam ter outro nome e se diziam livres ou forros. Podendo ser tratados como qualquer outro homem não-escravo, eles eram aproveitados como grumetes na Marinha de Guerra ou mesmo como operários no Arsenal de Marinha. Há diversos casos relatados de senhores protestando pela devolução do escravo que vestira a farda camuflando sua verdadeira condição social.

Após a chegada da família real, os arsenais foram ganhando novos contornos e distribuindo para outros departamentos e funcionários o que anteriormente competia exclusivamente ao intendente. A fundação da Capitania dos Portos, a formação da Marinha de Guerra, as reformas na polícia, a construção de presídios para os condenados, a edificação de diques e a inauguração da escola de aprendizes do Arsenal trouxeram imensas mudanças aos serviços nos arsenais que puderam, ainda com muitos problemas, ter como principal foco as atividades ligadas ao reparo e à construção de embarcações.

Toda essa história pode ser investigada nos diversos ofícios enviados e recebidos pelo inspetor do Arsenal de Marinha. Estas missivas estão na Série Boulier (IM à XM) do Arquivo Nacional e revelam a variedade de pedidos, ordens e despachos expedidos pelos arsenais da Bahia, Rio de Janeiro e mais outros por séculos.

1 RODRIGUES, Jaime.  De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários no tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

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