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Escola de cirurgia

Publicado: Quinta, 14 de Junho de 2018, 13h39 | Última atualização em Sexta, 20 de Agosto de 2021, 16h32

Atestado de assiduidade de Silvestre da Fonseca Proença na Escola Cirúrgica do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, redigido pelo lente  de anatomia e cirurgia da Universidade de Coimbra João Manoel Pires de Menezes. Este documento permite conhecer algumas das disciplinas básicas ao conhecimento médico do período colonial, possibilitando ainda tomar conhecimento de algumas experiências médicas que se podia obter nas enfermarias do Hospital da Santa Casa de Misericórdia.

Conjunto documental: Fisicatura-Mor
Notação: caixa 475, pct.03
Datas - limite: 1810-1828
Título do fundo: Fisicatura-Mor
Código do fundo: 20
Argumento de pesquisa: físico-mor
Data do documento: 30 de maio de 1809
Local: Portugal
Folha (s): -


"João Manoel Pires de Menezes aprovado em Filosofia pela Universidade de Coimbra[1], Lente[2] de anatomia e cirurgia por provisão de S.A. Real[3], cirurgião[4] dos Hospitais da Santa Casa da Misericórdia[5], e da venerável Ordem do Carmo, e Partido dos expostos, na cidade do Porto.

Atesto, que Silvestre da Fonseca Proença, natural da Vila do Souto de Penedon, comarca de Trancoso, frequentou as aulas da Anatomia, Fisiologia, Patologia, e Terapêutica[6] neste hospital debaixo do regulamento da Escola Cirúrgica do mesmo hospital como consta dos seus despachos e licenças, que do provedor desta Santa Casa me apresentou, e em virtude dos quais, se lhe fez a sua matrícula contada do dia 16 de outubro de 1807; e tendo frequentado Anatomia, ouvindo as lições da sua obrigação, assistindo às demonstrações e sabatinas[7] na conformidade dos Estatutos da Universidade de Coimbra mandados observar nas ditas aulas, e depois de ter sido habilitado em congregação de faltas fez publicamente o seu exame de Anatomia Teórica na aula do dito Hospital no dia 28 de julho e foi aprovado "nemine discrepante"[8]; e no dia 29 do dito mês e ano fez o de Anatomia Prática, e foi aprovado "nemine discrepante"; e depois de assim habilitado passou a frequentar a aula de Fisiologia, Patologia e Terapêutica, que rege o cirurgião anatômico José Joaquim dos Santos Abreu, partidista[9] do dito Hospital, e depois das suas respectivas aprovações, em que deu provas de ser um dos bons estudantes, que frequentaram as ditas aulas; respondeu finalmente aos diários de moléstias, que nas enfermarias do dito Hospital se ofereceram, vendo fazer, e fazendo, as curas, ligaduras e operações, que diariamente se praticam; e por ter dado provas de ser um dos bons estudantes, que praticaram neste Hospital. Passei esta corroborada com os juramentos da minha profissão. Porto, 30 de maio de 1809. João Manoel Pires de Menezes"

 

[1] UNIVERSIDADE DE COIMBRA: fundada em 1290 por d. Dinis, foi a principal instituição responsável pela formação acadêmica da elite do Império português, proveniente da metrópole ou da colônia. Desde 1565, esteve sob a direção dos padres jesuítas e, em 1772, durante a administração do marquês de Pombal, ministro de d. José I, sofreu sua principal e mais significativa reforma. A renovação da Universidade resultou na elaboração de novos estatutos e fazia parte de um plano mais geral de reforma do ensino em Portugal e seus domínios, iniciada em 1759. A reforma educacional pombalina teve como principal diretriz a expulsão dos jesuítas de todo Império lusitano e, conforme os estatutos, “abolir e desterrar não somente da Universidade, mas de todas as Escolas públicas (...) a Filosofia Escolástica” que era atribuída aos árabes e aos comentadores de Aristóteles, aos quais eram associados os jesuítas. O processo educativo pedagógico, governado, anteriormente, pelos inacianos, seria substituído por um sistema público de ensino. Num primeiro momento, apenas os Estudos Menores (ensino elementar e médio) sofreram grandes mudanças, deixando-se os Estudos Maiores (superior) para um período posterior, quando a nova base da instrução estivesse organizada. Em 1771 d. José formou a Junta da Providência Literária, cuja principal missão seria a avaliação do estado da universidade durante o período em que esteve sob administração dos jesuítas e a proposição de mudanças, a fim de melhorar o ensino, conforme sua orientação. Os resultados dessa avaliação foram reunidos no Compêndio Histórico do Estado da Universidade de Coimbra. Tratava-se do primeiro documento originário da Junta de Providência Literária, apresentado ao rei pela Real Mesa Censória e que daria sustentação, no ano seguinte, aos Novos Estatutos da Universidade de Coimbra, publicados em 1772. Segundo Nívia Pombo, “seu conteúdo reiterava a primeira lição a ser aprendida: a ideia de que o Estado deveria se aproveitar das novidades das ciências e das artes e colocá-las a serviço da sociedade. Tal aspecto aparece bem marcado com a recorrência das expressões “necessidade pública” e “nações civilizadas”, associadas à noção de que o “exame da Natureza” promovia “imensas utilidades em benefício das Famílias, e dos Estados” (Nívia Pombo. A cidade, a universidade e o Império: Coimbra e a formação das elites dirigentes (séculos XVII-XVIII). Intellèctus, ano XIV, n. 2, 2015. Acesso: https://www.e-publicacoes.uerj.br). A diretriz geral da reforma seria, por conseguinte, a secularização e a modernização do ensino superior, na busca por um conhecimento mais técnico, crítico e pragmático, orientado pelos princípios das luzes e da ciência [iluminismo], para a formação de cidadãos “úteis” ao Estado e à administração pública. Deste modo, foram reformuladas as faculdades de Filosofia e de Matemática; introduzidos os laboratórios para aulas práticas; a organização dos cursos e das disciplinas foi alterada, de modo a seguir um novo método; toda a metodologia de ensino e os compêndios usados pelos jesuítas foram proibidos e substituídos e a duração das aulas e dos cursos foi encurtada. Os professores religiosos deveriam ser paulatinamente substituídos por leigos escolhidos por seleção pública. Evidenciando o viés do ensino prático, foram criados, em paralelo, o Teatro Anatômico, o Observatório Astronômico, o Horto Botânico, o Museu de História Natural, o Laboratório de Física e o Dispensatório Farmacêutico. Para realizar a reforma foi nomeado d. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, intitulado bispo reformador da Universidade de Coimbra, natural do Rio de Janeiro, que ficou à frente da sua administração entre 1770 e 1779 (e depois entre 1799 e 1821) e que executou a reforma, nos moldes dos novos estatutos. A partir de então, a reformada Universidade de Coimbra passou a ser referência e modelo para as instituições de ensino existentes na época e as posteriormente criadas.

[2] LENTE: professor catedrático, termo que denominava os professores das chamadas cadeiras grandes, isto é, os professores dos ensinos superiores. De acordo com os estatutos da Universidade de Coimbra de 1653, caberia aos lentes preservar todo o conteúdo das grandes áreas de ensino, apresentado e lido aos alunos, sem nenhuma espécie de questionamento. As aulas deveriam ser ministradas em latim, com os professores de barrete (espécie de chapéu de tecido) na cabeça – com pena de multa para os que não o usassem. Com a reforma pombalina da Universidade, em 1772, os novos estatutos reformularam a atuação dos lentes. Apesar das grandes áreas de ensino continuarem demarcadas, abriu-se o caminho do professor para o acompanhamento do aluno, através da indicação de bibliografia e explicação dos conteúdos, em uma tarefa levada mais à compreensão que a memorização. No Brasil, sua atuação iniciou-se com a criação das primeiras instituições de ensino superior (Academias Médicas e Militares) a partir da vinda da corte portuguesa em 1808.

[3] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[4] CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[5] SANTA CASA DA MISERICÓRDIA: irmandade religiosa portuguesa criada em 1498, em Lisboa, pela rainha Leonor de Lencastre. Era composta, inicialmente, por cem irmãos, sendo metade nobres e os demais plebeus. Dedicada à Virgem Maria da Piedade, a irmandade adotou como símbolo a virgem com o manto aberto, representando proteção aos poderes temporal e secular e aos necessitados. Funcionava como uma organização de caridade prestando auxílio aos doentes e desamparados, como órfãos, viúvas, presos, escravos e mendigos. Entre as suas realizações, destaca-se a fundação de hospitais. Segundo o historiador Charles Boxer, eram sete os deveres da Irmandade: “dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; visitar os doentes e presos; dar abrigo a todos os viajantes; resgatar os cativos e enterrar os mortos” (O império marítimo português. 2ª ed., Lisboa: Edições 70, 1996, p. 280). A instituição contou com a proteção da Coroa portuguesa que, além do auxílio financeiro, lhe conferiu privilégios, como o direito de sepultar os mortos. Enfrentando dificuldades financeiras, a Mesa da Misericórdia e os Hospitais Reais de Enfermos e Expostos conseguiram que a rainha d. Maria I lhes concedesse a mercê de instituir uma loteria anual, através do decreto de 18 de novembro de 1783. Cabe destacar que os lucros das loterias se destinavam, também, as outras instituições pias e científicas. Inúmeras filiais da Santa Casa de Misericórdia foram criadas nas colônias do Império português, todas com a mesma estrutura administrativa e os mesmos regulamentos. A primeira Santa Casa do Brasil foi fundada na Bahia, ainda no século XVI. No Rio de Janeiro, atribui-se a criação da Santa Casa ao padre jesuíta José de Anchieta, por volta de 1582, para socorrer a frota espanhola de Diogo Flores de Valdez atacada por enfermidades. A irmandade esteve presente, também, em Santos, Espírito Santo, Vitória, Olinda, Ilhéus, São Paulo, Porto Seguro, Sergipe, Paraíba, Itamaracá, Belém, Igarassu e São Luís do Maranhão. A Santa Casa constituiu a mais prestigiada irmandade branca dedicada à ajuda dos doentes e necessitados no Império luso-brasileiro, desempenhando serviços socais como a concessão de dotes, o abrandamento das prisões e a organização de sepultamentos. Os principais hospitais foram construídos e administrados por essa irmandade, sendo esta iniciativa gerada pelas precárias condições em que viviam os colonos durante o período inicial da ocupação territorial brasileira. A reunião do corpo diretivo da irmandade da Santa Casa da Misericórdia, responsável pela administração desta associação, era chamada Mesa da Misericórdia.

[6] ANATOMIA, FISIOLOGIA, PATOLOGIA, TERAPÊUTICA: disciplinas obrigatórias ministradas pela Universidade de Coimbra para a obtenção do diploma de médico. A anatomia era a "arte" destinada ao conhecimento das partes do corpo dos seres vivos através da dissecação.  A fisiologia propunha-se a investigação das funções orgânicas ou atividades vitais, como a respiração e a circulação. À patologia cabia o conhecimento e a distinção de enfermidades, enquanto a terapêutica dedicava-se ao estudo dos meios mais adequados para aliviar ou curar as doenças.

[7] SABATINAS: método de arguição e memorização adotado pela Companhia de Jesus, sobretudo a partir do Ratio Studiorum Societatis Jesu (1599), obra que regeu o ensino nos colégios e aulas na colônia. A leitura e memorização dos textos, seguidas de disputas entre os alunos, os ditados, a imposição da Autoridade dos escritos entre outras disposições concorreram para um diagnóstico do sistema educacional desenvolvido pelos inacianos como acrítico, destituído de sentido prático e distanciado da realidade. A sabatina destacava-se junto com a preleção, a recapitulação, as disputas, e outras técnicas de repetição, entre os recursos disponíveis aos professores principalmente das classes inferiores, de caráter inicial. Mesmo com a reforma pombalina dos estudos menores, ela perdurou nas salas de aula brasileiras nos séculos seguintes.

[8] NEMINE DISCREPANTE: expressão latina para designar algo que foi aprovado por unanimidade, “sem discrepância”.

[9] PARTIDISTA: cirurgião ou médico contratado e remunerado pelas câmaras municipais para desenvolver seu trabalho junto às populações mais necessitadas. Eram encarregados dos assuntos respeitantes à higiene rural, à assistência aos doentes pobres etc.


Sugestões de uso em sala de aula:
- No eixo temático sobre a "História das relações sociais da cultura e do trabalho"

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- Práticas e costumes na colônia
- Sociedade colonial: as profissões coloniais
- A educação na colônia: o ensino superior

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