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Carta de sangria

Publicado: Quinta, 14 de Junho de 2018, 13h37 | Última atualização em Sexta, 20 de Agosto de 2021, 16h26

Carta de confirmação do conselheiro, físico-mor e barão de Goiana dr. José Correia Picanço, concedendo licença ao escravo angolano Vicente para que pudesse realizar sangrias e arrancar dentes.

Conjunto documental: Fisicatura-mor
Notação: códice 145, vol. 08
Datas - limite: 1818-1825
Título do fundo: Fisicatura-mor
Código do fundo: 20
Argumento de pesquisa: físico-mor
Data do documento: 2 de setembro de 1820
Local: Rio de Janeiro
Folha (s): 146v

 

Leia esse documento na íntegra

 

"Registro da carta de sangria e dentista de Vicente, Preto de Nação Angola[1].

O doutor José Corrêa Picanço[2] V.S.ª faço saber a todos os provedores[3] que eu por esta carta de confirmação dou licença a Vicente, preto de nação Angola, escravo[4] de Anacleto José Coelho, morador desta corte do Rio de Janeiro, para que possa sangrar, sarjar, lançar ventosas e sanguessugas[5] e tirar dentes.

Foi examinado em minha presença, pelos examinadores Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto e Antônio Américo d' Azevedo, cirurgiões[6] aprovados e o primeiro da Real Câmara[7], os quais deram por aprovado (...) debaixo de juramento que haviam recebido V.S.ª Passou-se conta aos vinte e dois de Agosto de mil oitocentos e vinte = e vai subscrita por Luís Bandeira de Gouveia Escrivão Secretário do Cirurgião Mor[8]do Reino = (...) pagou mil e seis contos de réis do selo. Rio dois de Setembro de mil oitocentos e vinte = Medeiros = o Conselheiro José Corrêa Picanço."

 

[1] ANGOLA: localiza-se na região sudoeste da África. Como colônia portuguesa tem seu início em 1575, a partir do contrato de conquista e de colonização recebido da Coroa pelo explorador Paulo Dias de Novaes, face ao sucesso obtido na corte do Ndongo, conforme J. Vansina no capítulo “O reino do Congo e seus vizinhos” (História Geral da África, vol. V, Unesco, 2010). A colônia viria a se chamar Angola, nome atribuído pelos portugueses, inspirado no título ngola dado ao rei do Ndongo, região constituída mais pela submissão de grupos a uma autoridade maior, por alianças ou guerra, do que por uma delimitação territorial como explica Marina de Mello e Souza (Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola. São Paulo: Edusp, 2018). No ano seguinte é criada a vila de São Paulo de Luanda, da qual Dias de Novaes foi o primeiro governador e capitão geral, conforme o modelo implantado no Brasil, instalando-se com famílias de colonos e soldados portugueses. As pressões metropolitanas para se impor na região e as suspeitas surgidas entre os líderes locais de que os portugueses vinham para ficar levaram à eclosão de uma guerra iniciada em 1579 que durou até 1671. Entre 1641 e 1648, Angola esteve sob domínio holandês, em um movimento que não pode ser dissociado da ocupação da região nordeste da América portuguesa. Se desde o início de sua presença, os portugueses dedicaram-se ao comércio de escravos, primeiro para São Tomé e depois para o Brasil, esse negócio tornar-se-ia a principal atividade econômica da região, fazendo de Angola a grande exportadora de mão de obra compulsória para a América. Segundo a base de dados americana Atlantic Slave Trade, calcula-se que tenham saído de Angola, entre 1501 e 1866, quase 5,7 milhões de escravos. Criaram-se relações bilaterais entre Brasil e Angola, onde o primeiro produzia matérias-primas e alimentos – quer para a agro exportação, quer para o mercado interno, e Angola forneceria a força de trabalho cativo. Este eixo é, para parte da historiografia, constitutivo do sistema atlântico luso e sustenta a concepção de uma monarquia pluricontinental, na qual Angola, destacando-se a cidade de Luanda, já no século XVII era um dos seus polos. A independência de Angola só foi declarada em 1975, marcando também o fim do colonialismo português.

[2] PICANÇO, JOSÉ CORREA (1745-1823): barão de Goiana, era natural de Pernambuco e frequentou os estudos superiores de cirurgia em Lisboa, dando continuidade ao seu aprendizado em Paris, onde obteve o título de doutor em Medicina pela faculdade de Montpellier. Foi um dos signatários do Plano de Exames da Real Junta do Proto-Medicato – criada em 1782, em substituição aos cargos de físico-mor e cirurgião mor, responsável pela concessão de cartas e licenças para o exercício da atividade médica e cirúrgica –, empenhando-se na regularização e fiscalização da arte cirúrgica no Reino e colônias. Vindo para o Brasil por ocasião da transferência da família real portuguesa, coube a Picanço a proposta para criação de um curso de cirurgia na colônia americana. Anuindo à proposta feita, o príncipe regente ordenou a fundação da primeira Escola de Cirurgia do Brasil, sediada no Hospital Real Militar da Bahia, em fevereiro de 1808. José Correa Picanço foi lente da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (1789), sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, cavaleiro professo e comendador da Ordem de Cristo, cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, fidalgo da Casa Real, primeiro-cirurgião da Real Câmara e cirurgião-mor do Reino e Ultramar. É atribuída a ele a realização da primeira cirurgia cesariana no Brasil (1822).

[3] PROVEDOR: o provedor era imbuído de especiais funções quanto à vigilância e observância dos estatutos gerais e públicos de uma instituição, à obediência aos decretos, alvarás, avisos e resoluções. No Brasil o cargo foi criado em 1548, por ocasião da instalação do governo-geral, tendo por objetivo cuidar dos assuntos relativos à administração fazendária. Existiram várias categorias de provedores, todos subordinados ao provedor-mor (mais alta instância administrativa, responsável pela arrecadação, contabilidade, fiscalização e convocação dos oficiais da Fazenda) e que atuaram em instâncias diferenciadas, entre as quais se podem mencionar a Alfândega, a Justiça, a Casa da Moeda, as Minas, Defuntos e Ausentes, entre outras. Nomeados pelo rei ou pelo governador-geral, os provedores eram responsáveis por acompanhar e administrar as rendas e direitos régios arrecadados, fiscalizar e registrar a movimentação comercial, cobrar os direitos, punir as irregularidades cometidas pelos oficiais de Fazenda, entre outras funções. Prestavam contas ao provedor-mor, inicialmente, e depois ao Conselho da Fazenda.

[4] ESCRAVOS [AFRICANOS]: pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[5]SANGRAR, SARJAR, LANÇAR VENTOSAS E SANGUESSUGAS: a arte da sangria foi frequentemente utilizada na Europa para quase todas as doenças e, desde o século XVI, se conhece essa prática na América portuguesa. Os indígenas também recorriam à escarificação e à sangria, valendo-se de diversos objetos cortantes como assinala Tânia S. Salgado (Barbeiros, sangradores, e curandeiros no Brasil (1808-28). História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. V (2): 349-72, jul.-out. 1998. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701998000200005). Os indivíduos que atuavam como sangradores eram, em sua grande maioria, africanos escravizados, forros e pobres livres. Foi comum a associação popular entre as funções de sangradores e barbeiros. Os barbeiros não exerciam o rotineiro corte de cabelos e barbas, dedicando-se antes a aplicação de sanguessugas e extração de dentes no âmbito de uma “medicina popular”. Todas estas técnicas intencionavam depurar o sangue do doente, pois se acreditava que o “mal” residia no sangue. Sangrar significava abrir as veias do paciente, desviando o fluxo sanguíneo e, consequentemente, a doença para fora do corpo. A técnica das sanguessugas consistia na aplicação de vermes de água doce com ventosas naturais sobre a pele do doente para sugar o sangue. As sarjas eram aberturas feitas na carne com lancetas onde se punham as ventosas, vasos de metal ou vidro que eram aplicados para “dilatar o ar interno do corpo”. O paciente, muitas vezes em estado debilitado, saía destas seções em situação precária de saúde. Para realizar tais procedimentos, exigia-se a licença concedida pela Junta do Protomedicato, criada em 1782 e substituída em 1808 pela Fisicatura-mor, para centralizar a fiscalização de assuntos relacionados à prática médica.

[6] CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

[7] CASA REAL: expressão utilizada para se referir tanto ao local físico onde viviam o rei e sua família, quanto à própria instituição monárquica em si. Compreende além da família real, as famílias fidalgas e a nobreza de Portugal. Instituição absolutista, foi responsável pela jurisdição e manutenção da hierarquia da numerosa criadagem subordinada diretamente ao rei, nos moldes da sociedade de corte do Antigo Regime. Sua organização encontrava-se dividida em áreas como o serviço nas câmaras e casas, cozinha, atividades relacionadas à caça, guarda, serviço religioso, entre outros. Os ofícios ligados à real câmara – neste caso, câmara é alusivo ao espaço de intimidade do monarca, a casa em que se dorme – compreendiam funções que envolviam um contato mais direto com o rei. O titular do ofício atuava no núcleo da corte, conferindo grande influência política àquele que a Coroa concedia autoridade para executar um determinado tipo de tarefa. Via de regra, as atividades estavam divididas entre ofícios maiores – que tinham vastas competências, era o caso do mordomo-mor e camareiro-mor – e os menores – que englobava trabalhos ligados a profissões “mecânicas”, como pintor, barbeiro, boticário, cirurgião e físico. Os cargos do serviço real eram muito disputados pelos fidalgos – ser criado da Casa Real não significava ser inferior, muito pelo contrário, além de ser um canal direto com o Rei, proporcionava honra, status e a possibilidade de obtenção de uma mercê. A Casa Real era organizada em seis setores administrativos, as “repartições”: a Mantearia Real, que tratava de assuntos relativos à mesa do Rei, sua família e dos fidalgos de sua casa, como toalhas, talheres, guardanapos, etc; a Cavalariça Real, que responde pelos equinos, muares, pelas seges e carruagens reais; Ucharia e Cozinhas Reais, que cuidavam da despensa – alimentação e bebidas – de toda a família real e de todas as famílias nobres e fidalgas do reino; a Real Coutada, responsável pelos terrenos reais, florestas e bosques; Guarda-Roupa Real, ocupado das vestimentas do rei e parentes; e a Mordomia mor, cuja principal atribuição era a organização e fiscalização dos outros setores. Houve grande dificuldade na reorganização da Casa Real no Brasil, principalmente pelos recursos escassos do Real Erário – e enormes gastos –, pelas intrigas e conflitos entre portugueses do reino e os colonos, pela precária utensilagem e falta de pessoal preparado para o serviço real, e pela própria dificuldade de adaptar costumes absolutistas antigos ao Brasil colonial. Ficaram conhecidas da população do Rio de Janeiro as frequentes contendas entre Joaquim José de Azevedo, tesoureiro da Casa Real, e d. Fernando José de Portugal e Castro, mordomo mor da Casa Real, presidente do Real Erário e secretário de Estado de d. João VI, em torno de recursos para manter o luxo da família real, que era considerada uma das mais simples da Europa. O excesso de gastos gerava problemas de fornecimento e abastecimento em toda a cidade, e frequentemente resultava em carestia de gêneros, principalmente para os mais pobres, que sentiam mais o peso de gerar divisas para sustentar a onerosa Casa Real de Portugal.

[8] CIRURGIÃO-MOR: no século XVI a legislação do Reino especificava os limites da atuação do físico-mor e do cirurgião-mor, determinando que aos cirurgiões fosse vedado atuar como médicos sem a licença do físico­mor. Por outro lado, proibia aos físicos o exercício da cirurgia, sem a devida licença do cirurgião-mor, equiparando, portanto, as duas autoridades, a despeito da prevalência em todos os campos, do físico sobre o cirurgião. Como explicou Flavio Edler (A saúde pública no período colonial e joanino. http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5120:saude-e-higiene-publica-na-ordem-colonial-e-joanina&catid=64&Itemid=372), a exigência para que o físico-mor do reino examinasse todos os que praticavam medicina existia desde 1430, sendo de 1448 o Regimento do Cirurgião-mor que estabeleceu as atribuições para o exercício da função. O físico-mor e o cirurgião-mor tiveram suas atribuições separadas em 1521, destacando-se o papel do físico-mor como juiz da Fisicatura, um tribunal, ainda de acordo com Edler. Quase um século depois, o regimento do Cirurgião-Mor do reino, de 12 de dezembro de 1631, dispunha que este examinaria todos os que fossem exercer o oficio de cirurgia, exigindo-se o domínio do latim e a prática no hospital da região em que viviam. O cirurgião-mor contava com dois barbeiros para examinar os sangradores treinados pelos mestres-cirurgiões. Data de 16 de maio de 1774 o regimento de autoria do físico-mor do reino e que pautava a conduta dos físicos na América portuguesa. Em 1808, o Alvará de 23 de novembro mandou executar os Regimentos do Físico Mor e Cirurgião Mor, regular a sua jurisdição e de seus Delegados, aludindo ao Decreto de 7 de fevereiro do mesmo ano que havia criado o Físico Mor e o Cirurgião Mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos. A regulamentação é justificada face aos conflitos entre o Físico Mor e a Relação da Bahia. A legislação anterior, desde 1515, bem como o regimento de 1744 é mantida em vigor a exceção do que tivesse sido abolido. Já o Alvará de 22 de janeiro de 1810 que dava “regimento aos delegados do Físico-Mor” estabelecendo providências sobre a saúde pública, considerou que o Regimento de 1744 “por diminuto e porque tendo sido feito em tempos remotos não pode quadrar ao presente". O primeiro físico-mor no Brasil foi José Corrêa Picanço, professor de Anatomia e Cirurgia da Universidade de Coimbra, primeiro cirurgião da Casa Real e cirurgião-mor do Reino. Após a Independência a Lei de 30 de agosto de 1828 extingue os lugares de Provedor-mor, Físico-mor e cirurgião-mor do Império passando as suas competências às Câmaras Municipais e Justiças ordinárias.

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
No eixo temático sobre a "História das relações sociais da cultura e do trabalho"

Ao tratar dos seguintes conteúdos:

Práticas e costumes na colônia
Sociedade colonial: as profissões coloniais
O Rio de Janeiro colonial
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