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Educação dos índios coroados

Publicado: Segunda, 11 de Junho de 2018, 13h56 | Última atualização em Segunda, 01 de Março de 2021, 19h19

Parecer deferido pela Mesa do Desembargo do Paço a respeito do pedido feito pelos moradores do Presídio de São João Batista sobre a criação de uma cadeira de primeiras letras neste aldeamento. No parecer há o relato de que o aumento populacional tornava a criação da referida cadeira uma necessidade para a promoção de uma idêntica educação para os "nacionais" e os "índios", a fim de que ambos pudessem se tornar "cidadãos úteis" e verdadeiros vassalos do rei.

Conjunto documental: Consultas da Mesa do Desembargo do Paço
Notação: códice 149, vol. 01
Datas-limite: 1808-1814
Título do fundo ou coleção: Mesa do Desembargo do Paço
Código do fundo ou coleção: 4K
Argumento de pesquisa: instrução pública
Data do documento: 18 de maio de 1809
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 29 e 29v

 

O povo da capela curada da Nova Aldeia dos índios coroados[1] do Presídio de São João Batista[2], pede em razão do aumento da sua população, chegando ao número de mais de oitocentos portugueses, e quinhentos índios, se estabeleça uma cadeira de primeiras letras[3], para ensino da mocidade.
Parece a Mesa[4], que o requerimento merece ser deferível, porque constando da informação o estado florente daquela povoação, nada é mais coerente às paternais intenções de Vossa Alteza Real do que promover o ensino, e educação pública[5] dos seus fiéis vassalos, estabelecendo mestres, onde forem necessários, e muito mais, quando o que pede o povo do lugar de S. João Batista é de primeiras letras, e por isso o mais necessário, como a base mais segura de toda a Literatura, e absolutamente precisa para qualquer gênero de vida, e para todos os estados da sociedade civil, merecendo além disto muita contemplação o ser a povoação de que se trata, composta tão bem de índios já aldeados, e civilizados[6], a quem cumpre fazer amar a instrução nacional, para se tornarem cidadãos úteis, e verdadeiramente vassalos portugueses, o que se conseguirá por meio da mistura de nacionais e índios, e por uma igual educação. Por estes tão justos, como úteis motivos, mui dignos da real consideração se deve criar a cadeira de primeiras letras na forma da súplica, com o ordenado, que vencem os demais professores[7] da capitania de Minas Gerais, provendo-se pelo governador e capitão general, de acordo com o reverendo bispo, para ser confirmado por esta Mesa, como é por Vossa Alteza Real decretado, que decidirá com tudo o que for mais justo.
Rio de Janeiro em 18 de maio de 1809.
S. A. R Como parece. Palácio do Rio de Janeiro 20 de maio de 1809.

 

[1] Designação genérica, atribuída aos povos indígenas não Tupi, da família linguística macro-jê, que habitavam desde o Mato Grosso até o oeste de Santa Catarina, passando por São PauloMinas GeraisEspírito Santo e Rio de Janeiro. Esse nome lhes foi conferido por cortarem os cabelos no meio da cabeça, à maneira dos frades capuchinhos, conservando não mais do que uma calota de cabelos. Tidos pelos agentes do governo colonial como desumanos e intratáveis, os Coroados são descritos pelo botânico francês Auguste Saint-Hilaire (Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1975. p. 30), que percorreu a região leste do Brasil na primeira metade do século XIX, como pertencendo “à tribo mais disforme da natureza encontrada durante a minha permanência no Brasil. Aos traços da raça americana, tão diferente da nossa, acresciam uma fealdade peculiar a sua nação: eram de estatura pequena; na sua cabeça, achatada em cima e de um tamanho enorme, mergulhava em largas espáduas; uma nudez quase completa deixava a descoberto sua repelente sujeira; longos cabelos negros caiam em desordem sobre os ombros; a pele de um escuro baço estava salpicada aqui e ali pelo urucu; percebia-se através de sua fisionomia algo de ignóbil, que não observei entre outros índios, e enfim, uma espécie de embaraço estúpido traía a ideia que eles próprios tinham de sua inferioridade. Esse conjunto verdadeiramente horrendo me impressionou muito mais do que esperava, e fez nascer em mim um sentimento de piedade e humilhação”.

[2] A ocupação dos territórios indígenas americanos delimitava a fronteira real da colonização, expressa pela construção de linha de defesa que ia sendo montada à medida que a conquista avançava. Essa linha de defesa compunha-se de postos militares, quartéis e presídios instalados em locais considerados estratégicos para os objetivos coloniais, em especial, para o controle da evasão dos quintos e do ouro. Um dos primeiros presídios a funcionar, ainda no fim do século XVIII, localizava-se em São João Batista do Presídio (atual município Visconde do Rio Branco, Minas Gerais). Todavia, o pequeno sucesso obtido com essas instituições, fazia com que fosse questionada a eficácia dessas unidades de defesa quanto à redução dos índios, já que a grande distância existente entre os presídios permitia a passagem dos indígenas pelos espaços não “policiados”.

[3] A cadeira de Primeiras Letras destinava-se a ensinar a ler, escrever e contar, e sob orientação inaciana, aprendia-se a religião católica. Em 1722, uma nova cartilha foi apresentada ao rei de Portugal, dom João V, chamada Nova Escola para Aprender a Ler, a Escrever e a Contar, elaborada pelo jesuíta Manoel de Andrade de Figueiredo. Integrava os estudos menores, o aprendizado de gramática e línguas latinas, matemáticas, conhecimentos morais, físicos e econômicos, indispensáveis para a formação do indivíduo. No ensino médio, cursos de humanidades e artes incluíam as aulas de gramática latina, grego e retórica, e artes e ciências da natureza. Durante os primeiros séculos do período colonial, a educação era restrita aos filhos de colonos e índios aldeados. Os jesuítas estiveram à frente do processo educacional até sua expulsão em meados do século XVIII. Após a reforma educacional empreendida por Pombal, o ensino passou a ser responsabilidade do Estado português, inclusive em territórios coloniais, e aulas régias foram introduzidas substituindo as antigas disciplinas oferecidas nos colégios jesuítas. Buscou-se secularizar a educação, preparando uma pequena elite colonial para os estudos posteriores na Europa. A educação formal era um privilégio da elite branca, ficando vetada aos escravos. No Império, a Constituição de 1824, que garantia o direito de todo cidadão brasileiro à instrução pública, não considerava o escravo como cidadão. O veto tornou-se explícito pela resolução imperial de 1º de julho de 1854 que determinava que os professores recebessem por seus discípulos “todos os indivíduos que para aprenderem as primeiras letras, lhe forem apresentados, exceto os cativos, e os afetados de moléstias contagiosas”. Como a maior parte dos cativos exercia atividades que não exigiam o domínio da leitura e da escrita, o índice de analfabetismo era quase geral entre a população escrava. Entretanto, o exercício de algumas profissões também desempenhadas por escravos, como as de alfaiate e carpinteiro, exigiam um conhecimento básico da escrita, leitura e contagem. Nesses casos, acredita-se que este aprendizado tenha se efetuado na casa do senhor, prática bastante incomum, não obstante a valorização dos escravos que sabiam ler e escrever, como se observa nos anúncios de época nos quais era recorrente a descrição das habilidades dos escravos foragidos ou à venda. Além de marcas e cicatrizes, realçavam-se atributos como ofício, habilidade musical, de leitura ou de escrita. No século XVIII, nas irmandades negras, a escrita era produzida pelos brancos que, em uma estratégia de controle ou até mesmo por devoção, ingressavam nessas associações. Variados motivos levavam os negros a aceitar a participação de brancos nas irmandades, dentre eles a falta de instrução para cuidar dos livros e para escrever e contar, exigência de cargos como os de escrivão e tesoureiro. Em 1789, os membros da Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco em Salvador enviam para a coroa portuguesa um pedido de exclusão dos brancos dos cargos de escrivão e tesoureiro, argumentando que, naquele ano (1789), já havia negros letrados, que “a iluminação do século [nos] tem feito inteligentes da escrituração e contadoria”. Considerando-se que as irmandades promoviam a ajuda mútua, por exemplo, na compra de alforrias, pode-se pensar que essa ajuda tenha se estendido ao campo de alfabetização. Os compromissos e outros documentos das irmandades de negros são uma das poucas fontes históricas do período colonial de autoria dos próprios, embora muitas vezes, mesmo nestas associações, a escrita ficasse a cargo de brancos.

[4] Criada no Rio de Janeiro, após a transferência da Corte portuguesa ao Brasil, pelo alvará de 22 de abril de 1808, era um órgão superior da administração judiciária. O recém-criado tribunal encarregava-se dos negócios que, em Portugal, pertenciam a quatro secretarias: os tribunais da Mesa do Desembargo do Paço, da Mesa da Consciência e Ordens, do Conselho do Ultramar e da Chancelaria-Mor da Corte e do Reino. O alvará de criação do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens, definia ambos como um mesmo tribunal, no entanto, na prática, mantiveram funcionamento e normas distintas. Referente ao Conselho Ultramarino, sua jurisdição englobava apenas os temas que não fossem militares, uma vez que estes já eram contemplados pelo Supremo Conselho Militar, uma de suas atribuições foi a confirmação das sesmarias da Corte e província do Rio de Janeiro, que até então eram dadas pelos vice-reis, pelos governadores e pelos capitães-generais de diversas capitanias.

[5] Na América portuguesa, desde o século XVI, ainda no início da colonização, a Companhia de Jesus instala seus colégios e seminários visando à educação da elite para a direção da colônia e à arregimentação e formação de membros para seus quadros. Neste século, a ênfase maior da educação era na formação de novos membros da ordem para continuar o trabalho de catequese dos índios e para instruir a ainda pequena população de meninos brancos, filhos de portugueses, principalmente nas primeiras letras. A educação era ministrada nas "casas", escolas de ler, escrever e contar, e filhos de colonos e nativos frequentavam essas primeiras escolas. A maioria dos colégios foi fundada a partir da segunda metade do século XVII até o momento de sua expulsão, no XVIII, e estes se estenderam ao longo de boa parte do território da colônia, do Maranhão a São Paulo, contando mais de quinze colégios, que ofereciam os cursos secundários de humanidades e artes e alguns seminários para a formação de novos padres. Segundo Laerte Ramos de Carvalho (As Reformas Pombalinas da Instrução Pública. São Paulo: Saraiva, 1978), o modelo para o ensino nos colégios jesuítas na colônia era o Colégio de Évora. Além do ensino primário, que compreendia o aprendizado de ler, escrever e contar, os colégios ministravam os cursos secundários de Letras e Humanidades - em que se estudava gramática latina, humanidades e retórica - e de Artes - cujas principais disciplinas eram a lógica, metafísica, matemáticas, ética, ciências físicas e naturais e filosofia -, todas estudadas sob orientação da filosofia aristotélica. Os cursos secundários completos (humanidades e artes) duravam, em média, de oito a nove anos e, ao final, os alunos se formavam em Humanidades e Artes, sendo que este último curso era considerado obrigatório caso o estudante quisesse se candidatar a uma vaga na Universidade de Coimbra. Poderiam ainda seguir para os Seminários e depois de cursar Teologia e Ciências Sagradas (duração de quatro anos). Tornar-se-iam doutores e novos membros da Ordem. As reformas empreendidas pelo influente primeiro ministro do reinado de d. José I, o marquês de Pombal, a partir da metade do século XVIII visavam a introduzir algumas ideias iluministas no Estado português (e em suas colônias) sem, no entanto, provocar mudanças profundas ou significativas na estrutura política e social. A reforma do ensino apresentou-se como uma das formas mais diretas e representativas de promover a ilustração do Estado português. O marquês de Pombal, responsável pelo programa reformista ilustrado em Portugal,  adotou, na década de 1760, medidas que visavam à modernização e à secularização do ensino no país. No âmbito educacional, Pombal empreendeu algumas medidas, cujo objetivo era retirar dos jesuítas a responsabilidade da instrução, colocando-a sobre o controle direto do Estado. Deste modo, ordenou a introdução de um novo sistema de ensino que priorizasse em seu currículo o desenvolvimento da ciência e a valorização do homem. Em relação aos índios aldeados, aprenderiam primeiro a ler, escrever e contar, e depois a língua portuguesa e a doutrina cristã. Para este fim, foram criadas duas escolas públicas em cada aldeia: uma destinada aos meninos, e outra às meninas, para as quais as aulas de contar seriam substituídas pelas de fiar, costurar, etc. As reformas do ensino iniciaram-se, propriamente, no campo legislativo, mas o ministro de d. José I havia se inspirado em uma obra publicada por Luis Antônio Verney em 1746, conhecida como O verdadeiro método de ensinar, em que o autor rejeita o método de ensino dos jesuítas, criticando seu excessivo apego às humanidades, o caráter teórico e livresco do ensino, o excesso de disciplina e a repressão à liberdade de pensamento, propondo um novo método, que privilegiasse o estudo prático das ciências, a experimentação e a crítica. O alvará de 28 de junho de 1759 não somente dá conta da expulsão da Companhia de Jesus de todos os territórios portugueses, pela acusação de submeter o reino a uma "escravidão científica", como proíbe o uso de seu método, seus livros didáticos e seus membros de continuarem a ser professores régios (a não ser que abandonassem a Ordem). Em um texto introdutório à lei, o rei d. José I traçava um quadro em que avaliava a influência dos jesuítas no ensino e concluía que estes haviam causado imenso prejuízo à mocidade portuguesa, com seu método "escuro e fastidioso". Previa, então, a adoção obrigatória de um novo método em todo o reino, pragmático, moderno e ilustrado, e determinava os novos livros a serem usados pelos professores em suas aulas, abolindo o uso de todos os compêndios usados pelos inacianos. A lei dividia o ensino em duas esferas: os Estudos Menores, que compreendiam os antigos primários e secundários, e os Estudos Maiores, que controlavam o ensino superior; dizia respeito, sobretudo, à principal universidade de Portugal, a de Coimbra, e instituía as aulas régias, que substituiriam os colégios jesuítas. Essas aulas seriam ministradas por professores régios, laicos, a serem selecionados por concurso e deveriam comprovar aptidão e conhecimento. Cada aula corresponderia a uma cadeira a ser estudada individualmente, havendo desde cadeiras de ler, escrever e contar, até aulas das novas matérias instituídas pela reforma, como grego, gramática latina, retórica, filosofia, e ciências da natureza. Essas aulas não aconteciam em um mesmo lugar, os alunos reuniam-se normalmente na casa do professor, que instruía ao mesmo tempo alunos de níveis diferentes. O alvará também previa a criação do cargo de Diretor Geral dos Estudos, que seria o encarregado de executar a reforma, contratar os professores, resolver os problemas que surgissem, fiscalizar os mestres (se fariam uso dos novos compêndios e dos novos métodos obrigatórios), e publicar, ainda naquele mesmo ano de 1759, as instruções para a reforma. No entanto, o que se vê são determinações sobre o que fazer, e não um plano estruturado sobre como se pôr em prática tantas mudanças. O que acabou por acontecer foi a desintegração do sistema educacional dos jesuítas, seguido de um momento de ausência de um modelo ou de um plano de execução da reforma, o que resultou em um vazio educacional, que as aulas régias, poucas a princípio, não conseguiram preencher. Somente em 1772, com a reforma da Universidade de Coimbra, um novo plano foi traçado, obedecendo, entretanto, às mesmas orientações anteriores para tentar solucionar o problema que atingiu não somente as colônias, mas também Portugal.

[6] O aldeamento indígena é a realização do projeto colonial de ocupação do território, de reserva de mão de obra e de aculturação dos índios. Na segunda metade do século XVI, a política de aldeamentos esteve associada à ação dos jesuítas. A ação missionária consistia no deslocamento, também chamado descimento, de índios de seu território para aldeias jesuíticas no litoral, sedentarização dos índios por meio do trabalho agrícola, adoção de “costumes cristãos”, dentre os quais o uso da chamada língua geral e o abandono do idioma nativo. Outras ordens religiosas – capuchinhos, carmelitas, franciscanos, mercedários - também se utilizaram dessa prática de subjugação dos índios. Uma vez deslocados das suas aldeias de origem, os índios eram doutrinados nos mistérios da fé, batizados com nomes cristãos e colocados à disposição da Coroa e dos colonos para prestação de serviços. À medida que o trabalho indígena se tornava cada vez mais essencial à economia colonial, acirrava-se o conflito entre colonos e jesuítas. Disputava-se não apenas o controle sobre a mão de obra aldeada, mas também o direito de descer os índios do sertão. No caso dos colonos, a intenção era reduzi-los, isto é, fixá-los em um novo local, como uma reserva de mão de obra para o trabalho escravo. A instituição do Diretório dos Índios, durante a administração pombalina, significou, entre outras medidas, a elevação dos aldeamentos à condição de povoação, vila ou freguesia. Mas a política de deportação e concentração de grupos indígenas continuou ao longo do século XIX. O aldeamento de índios obedecia, com efeito, a conveniências várias. Serviam de infraestrutura, fonte de abastecimento, reserva de mão de obra, contingente para lutar nas guerras movidas contra os “índios bravos” ou inimigos estrangeiros, atendendo aos interesses regionais ou da Coroa e também aos dos moradores locais.

[7] Os jesuítas foram os primeiros professores da América portuguesa, atuando nas escolas de alfabetização para crianças e adultos, onde ensinavam leitura e religião a brancos e índios desde o século XVI. Com o crescimento populacional, a Coroa estendeu esta tarefa também aos profissionais laicos, aumentando a oferta do ensino escolar gratuito por meio das instituições militares, muito embora os colégios jesuítas fossem em muito maior número do que os estabelecimentos laicos. Através do alvará de 1759, d. José I, na figura de seu ministro Pombal, estabeleceu a reorientação do ensino luso, substituindo os métodos utilizados pelos jesuítas por outros que se faziam presentes no restante da Europa e que atendiam aos novos tempos ilustrados. Este novo método foi detalhado na instrução para “Professores de Gramática Latina e Hebraico” e por alguns livros recomendados, que deveriam ser seguidos pelos professores régios e particulares de instituições religiosas ou não.

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