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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Quinta, 02 de Agosto de 2018, 21h16
Vida artística no período joanino

Viviane Gouvea
Mestre em Ciência Política
Pesquisadora - Arquivo Nacional

Em 1808, quando da chegada da Corte portuguesa, a então capital da colônia lusa nas Américas carecia ainda de uma estrutura formal voltada para a vida cultural. As limitações impostas por Portugal à implantação de um sistema educacional formal no Brasil, além das restrições comuns à vida cultural e artística das colônias, de uma forma geral impediram que aqui houvesse um número significativo de consumidores de bens culturais (freqüentadores de teatros, leitores assíduos, apreciadores e compradores de arte pictórica).

Em fins do século XVIII, um teatro - um "teatrinho", na verdade - conhecido como Casa da Ópera do padre Ventura e localizado na antiga rua do Fogo, atual rua dos Andradas abrigou algumas apresentações teatrais, mas poucos registros deixou, além de encenações de obras do dramaturgo português Antônio José. Foi destruído por um incêndio depois de dois anos de atividades. Pouco depois, em 1776, o Ópera Nova, de Manuel Luís, foi aberto nas cercanias da praça do Carmo, de frente para o Paço. Seus espetáculos eram anunciados por timbaleiros (tocadores de tímpanos) e muitas vezes terminavam em tumultos que se estendiam até o largo do Paço: o fundo Polícia da Corte, do Arquivo Nacional, contém alguns exemplos da preocupação da Intendência de Polícia com o fato, como o alerta para a necessidade de se inspecionar o teatro e aumentar a vigilância para que tais desordens e tumultos fossem evitados.

O teatro junto ao Paço - como era referido o Ópera Nova de Manuel Luís - foi fechado pouco tempo depois da chegada da família real ao Rio de Janeiro para alojar empregados do Paço. Contudo, logo a nova Corte ganharia um outro estabelecimento teatral, dessa vez de proporções bem mais avantajadas, já que deveria atender a uma população recém chegada, em boa parte habituada a uma vida cultural mais intensa do que a disponível na colônia.

O Teatro de São João teve sua construção autorizada em 1810, e em 1811 são instituídas loterias para levantar fundos visando à construção e à manutenção do estabelecimento. O teatro seria uma sociedade por ações e teria, teoricamente, exclusividade nos espetáculos por um período de dez anos. O empreendimento foi levado a cabo por Fernando José de Almeida, e o prédio foi erguido no Largo do Rossio, atual praça Tiradentes. Seu traçado, em estilo neoclássico, apresentava partido semelhante ao do Teatro de São Carlos de Lisboa, e é atribuído ao engenheiro e marechal-de-campo João Manoel da Silva. A inauguração contou com a presença da família real e deu-se em 12 de outubro de 1813 com um espetáculo intitulado O juramento dos Numes, texto de Gastão Fausto da Câmera e música de Marcos Portugal; seguiu-se a este drama lírico uma outra peça, O combate de Vimeiro. Um aspecto pitoresco da inauguração relaciona-se com a polêmica levantada pela publicação da peça por parte da Impressão Régia, o que suscitou um debate público entre o autor do texto, Gastão Fausto, e o redator do jornal O Patriota, Manuel Araújo Ferreira, que, contudo, tomou feições mais pessoais do que de crítica teórica.

Alguns documentos presentes no fundo Ministério da Justiça testemunham esta polêmica, na qual o marquês de Aguiar acabou interferindo, ainda que indiretamente, de forma que o debate não fosse longe demais. A platéia comportava cerca de mil e duzentas pessoas e contava, também, com quatro ordens de camarotes. O pano de boca apresentava uma pintura de José Leandro, representando a entrada da esquadra portuguesa na baía de Guanabara, conduzindo a família real. Além de José Leandro, Manuel da Costa e Jean-Baptiste Debret viriam a se tornar cenógrafos do teatro real. Este último elaborou o pano de boca inaugurado nas festas de coroação de d. Pedro I em 1822, no Brasil já independente.

Duas companhias ocuparam o Real Teatro: de canto (sob a direção de Ruscolli) e de baile (dirigida por Lacombe). O Real Teatro acabou por se tornar um elemento fundamental não só na vida artística e cultural da Corte, mas também social e política. Assiduamente freqüentado pela família real, foi palco não apenas de peças, óperas e danças - incluindo a primeira apresentação de balé clássico no Brasil, em 1813 - mas de reuniões entre importantes figuras políticas e manifestações que marcariam o processo de independência do Brasil.

O tipo de espetáculo apresentado no Teatro de São João voltava-se para as elites: "a ópera é um espetáculo ligado ... ao poder: sublinha, simboliza, representa, valida o poder."1 Não é à toa que o movimento operístico conhece uma expansão depois da chegada da Corte no Rio de Janeiro, utilizado como instrumento de comemoração de fatos políticos importantes e eventos sociais ligados à família real. A variedade de estilos presente nas apresentações no palco do São João incluía dramas líricos - apresentação dramática com intervenção de canto e música; comédias; e uma forma arcaica de diálogos encenados, de caráter burlesco encerrados com um número musical, originado na Idade Média, chamado entremez, que se transformou em uma pequena peça própria para ser representada entre os atos de uma peça mais longa.Apesar da sua importância, as finanças do Real Teatro apresentavam problemas constantes. As loterias instituídas para sua construção perduraram após a inauguração, como forma de obtenção de recursos que sustentassem o corpo de artistas durante a baixa temporada. A concessão de loterias, contudo, foi durante algum tempo alvo de disputas e debates envolvendo o teatro e a igreja de São José, que concorria com a casa de espetáculos na obtenção da permissão real para realização de loterias e na disputa pelo público comprador. Esta concorrência pode ser acompanhada através dos documentos presentes em alguns fundos do Arquivo nacional, em especial a Série Interior e Diversos - GIFI. Em 1824, o teatro queimou em um incêndio logo depois da promulgação da primeira constituição brasileira, realizada com a presença de d. Pedro I e da imperatriz Leopoldina. Após sua reconstrução, foi rebatizado de Real Teatro São Pedro de Alcântara e reinaugurado em 1826.

Além do Real Teatro de São João, outras duas medidas marcaram o início dos investimentos reais em um aparato institucional que permitisse o enriquecimento da vida cultural na nova Corte: a criação da Real Capela em 1808, instalada na igreja do Carmo; e a determinação da instalação de uma escola de artes e ofícios, que seria levada a cabo por um grupo de artistas e artífices europeus que aqui chegou em 1816.Os músicos começam a chegar da Capela Real de Lisboa em 1809, seguidos pelos instrumentistas, no início de 1810. Em 1817, a Real Capela contava com cerca de 120 músicos. Inicialmente, o padre brasileiro José Maurício Nunes Garcia, que na época já apresentava um extenso currículo de produção e ensino de música, assumiu o cargo de mestre real da Capela. Contudo, vítima do preconceito por parte das elites portuguesas por ser não apenas brasileiro nativo, mas mulato, acabou substituído no cargo por Marcos Portugal, chegado de Lisboa em 1811, cuja fama já se havia espalhado pela Europa. Foi nesta igreja que o futuro maestro Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional Brasileiro, começou como violinista.

Em 1816, o decreto de d. João VI datado de 12 de agosto, atualmente sob a guarda do Arquivo Nacional no fundo Tesouro Nacional, cria, ao menos no papel, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, institucionalizando a educação artística de forma sistematizada. O decreto é lançado alguns meses depois da chegada de um grupo de artistas franceses, que viria a se tornar conhecido por Missão Artística Francesa. As negociações para a contratação dos artistas, a cargo do conde da Barca e do marquês de Marialva, se iniciaram em 1815 e a sua chegada ocorreu em abril de 1816. Chefiado por Joachim Lebreton, o grupo incluía: Jean Baptiste Debret, pintor histórico; Nicolas Taunay, pintor; Auguste Taunay, escultor; Auguste Henri Grandjean de Montigny, arquiteto; Simon Pladier, gravador de medalhas; François Ovide, especialista em mecânica; Lavasseur e Meunier, auxiliares de arquiteto; François Bonrepos, escultor ajudante. Para ofícios mecânicos: Nicolas Enout, mestre serralheiro; Jean Level, mestre em construção naval e ferreiro; Louis e Hippolyte Roy, carpinteiros; Fabre e Pilitié, surradores de pele. Percebe-se, pela presença de artífices (práticos em mecânica) e artistas, a dupla preocupação da Coroa com a dinamização da produção cultural e artística local, principalmente porque ao mesmo tempo era iniciado o desenvolvimento de um ensino técnico-profissional que contribuísse para o incremento de atividades econômicas.

É interessante observar que o próprio termo "artes", vigente na época, abarcava atividades distintas, dentre as quais algumas que atualmente não receberiam tal definição: "a concepção de arte em vigor no Brasil colonial abrangia um campo extremamente vasto onde também, por vezes, a fronteira entre belas artes e artes mecânicas não pode ser traçada com muita nitidez."2 Ofícios sem relação com a atividade artística como hoje concebemos poderiam receber a definição de arte: "artes médicas," "artes militares", estendendo a referida confusão entre os campos artístico e mecânico a outros campos, inclusive científico.

A concretização deste ensino, contudo, foi um processo bastante conturbado. Somente dez anos depois da chegada da missão francesa a instituição começaria a funcionar plenamente e em suas próprias instalações. Os motivos para tal demora são atribuídos a algumas razões que convergem, basicamente, para uma desconfiança em relação ao grupo de franceses. Tal desconfiança, aparentemente, tanto vinha dos representantes oficiais e diplomatas franceses - que não viam com bons olhos a presença e influência de partidários do derrotado regime bonapartista - quanto dos próprios portugueses, que nutriam certa antipatia por aqueles que haviam forçado a sua retirada de casa. Além disso, alguns portugueses se ressentiam do fato de estrangeiros ocuparem um lugar que, segundo eles, deveria ser seu. A diferença de estilos entre os dois grupos - os portugueses ainda ligados ao rococó, e os franceses partidários do estilo neoclássico - acirrava ainda mais a rivalidade.As desavenças se acentuaram depois da morte de Lebreton, em 1819, e a subseqüente nomeação do português Henrique José da Silva para o seu lugar. Segundo este, não havia necessidade de se recorrer a estrangeiros, pois Portugal era capaz de fornecer grandes artistas para a Escola. Esta opinião carecia de fundamentos: "a precariedade do ensino das Belas Artes em Portugal, à época, parece comprovar a impossibilidade de contar com artistas portugueses."3 Na verdade, a proposta da Missão era implantar na antiga colônia - elevada à categoria de reino - um sistema de ensino em academia ainda inexistente na própria metrópole.As dificuldades do Erário Régio e a morte do conde da Barca, em 1817, também contribuíram para o atraso da concretização do projeto, pois ele era um dos seus maiores defensores.De todo modo, a construção do edifício da academia seria retomada em 1824, por ordem de d. Pedro I. O edifício, desenhado pelo arquiteto Grandjean de Montigny, localizava-se na travessa das Belas Artes e foi inaugurado em 1826. Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny nasceu na França em 1776 e foi um dos poucos membros da missão francesa a permanecer na cidade, vindo a morrer no Rio de Janeiro em 1850. Havia integrado numerosos projetos do governo napoleônico, e realizou outras obras no Brasil além da Academia, incluindo o edifício para a praça do comércio do Rio de Janeiro (atual Casa França-Brasil). Formou, ainda, vários discípulos aqui, a quem influenciou com as tendências neoclássicas que trouxe consigo da França.

Os outros artistas presentes na missão, embora tenham em sua maioria permanecido por um período de tempo menor, também deixaram marcas. Jean Baptiste Debret nasceu em 1768 e morreu na França em 1848, pintor (histórico), desenhista, engenheiro e professor estudou na Escola de Belas Artes francesa e integrou o Institut de France, instituição fundada em 1795 reunindo cinco escolas de ensino e estudos superiores. Partidário de Napoleão Bonaparte, depois da queda do governo perde o apoio financeiro que o antigo governante concedia a ele e outros artistas do mesmo grupo e engaja-se, juntamente com outros artistas, na missão que seguia para o Rio de Janeiro em 1816. Participa da decoração de diversas festividades e celebrações da Corte, inclusive da aclamação de d. João VI. Foi também cenógrafo do Real Teatro São João e organizou a primeira exposição coletiva de artes plásticas no Brasil. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, obra publicada entre 1834 e 1839, já quando o artista se encontrava na França novamente, é considerada um marco por apresentar imagens e textos explicativos que expunham, para um leitor alheio à realidade retratada, um mosaico de povos e costumes que formavam a América portuguesa. Os irmãos Taunay - Auguste (escultor) e Nicolas (pintor) - assim como Debret e Lebreton também pertenceram ao Institut de France. E, como seus colegas, perderam espaço na ordem política instaurada depois da queda de Napoleão. O escultor Auguste Taunay nasceu em 1768, 13 anos depois de seu irmão, o pintor Nicolas Taunay. O escultor colaborou na decoração do Louvre e dos Arcos do Triunfo e, no Brasil, juntamente com os outros artistas da missão, participou das decorações festivas da família real. Seu irmão, embora tenha deixado família no Brasil, também retornou a França - como barão -, onde faleceu em 1830. Durante sua estadia aqui, que durou até 1821, produziu inúmeras paisagens da cidade e arredores.As medidas citadas, conseqüência da instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro coadunavam-se com a exigência de que a ordem urbana refletisse os "novos tempos."

A participação ativa dos artistas franceses na construção da imagem do poder aqui instalado - decoração das festas públicas, bailes e coreografias, produção de retratos e monumentos - contribuiu para a dinamização da vida cultural da cidade e para a concretização de uma "sociedade de Corte" no novo centro do reino, diferenciando-o da velha cidade colonial. Mais, a missão francesa integrava um conjunto de iniciativas que "deveria criar condições para a implantação de uma dada modernidade em terras americanas, tida como necessária para permitir o funcionamento da administração real em seu novo ambiente."4 Em outras cidades do Brasil, algumas iniciativas tentavam seguir o exemplo da Corte, como atestam alguns registros no Arquivo Nacional: a construção de um teatro em Parati; a solicitação de instalação de loterias para o término da obra de edificação de um teatro em São Luís do Maranhão; e a solicitação da instalação de uma cadeira de ensino de música em Salvador da Bahia. Embora houvesse uma vida cultural institucionalizada algo incipiente em outras cidades da colônia, a instalação do governo central em terras americanas trouxe algum alento para as iniciativas na área.

1 Vanda Lima Bellard Freire, A música no tempo de d. João VI.
2 Maria Beatriz Nizza da Silva, Dicionário de história da colonização portuguesa no Brasil.
3 Consuelo Alcioni Borba Duarte Schlichta, A pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação no século XIX.
4 José Neves Bittencourt, Iluminando a colônia para a corte.

 

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