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Limpeza do pântano do Valongo

Publicado: Quinta, 07 de Junho de 2018, 13h23 | Última atualização em Terça, 09 de Março de 2021, 21h53

Ofício emitido ao juiz do crime do bairro da Sé pelo intendente geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, no qual pede a limpeza de um pântano localizado nos fundos das casas da rua nova de São Joaquim. Este pântano, além de "nocivo à saúde pública", se tornou um cemitério de negros novos, dada a "ambição dos homens do Valongo" que querem evitar a despesa de enterrá-los. O "charco" sujava o bairro e a cidade, e, portanto, deveria ser aterrado, com entulho e terra dos terrenos vizinhos. Notifica ainda os "negociantes que recolherem pretos no Valongo para que nunca mais se atrevam a lançar por ali cadáveres" e ordena que se recolham os corpos para, através das marcas neles, se reconheçam de quais armazéns vieram e se imponham as penas aos culpados para acabar de vez com aquele "mal".

Conjunto documental: Registros de ordens e ofícios expedidos da Polícia aos ministros criminais dos bairros e comarcas da Corte e ministros eclesiásticos
Notação: códice 329, vol. 03
Datas-limite: 1815-1817
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo ou coleção: ØE
Argumento de pesquisa: cidades, ordem pública
Data do documento: 9 de dezembro de 1815
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

Ofício expedido ao Juiz do Crime[1] do Bairro da Sé[2]

Nos fundos da rua nova de São Joaquim[3] e fundos das casas novamente edificadas nos cajueiros há um pântano que além de nocivo a saúde pública[4] ainda de mais a mais é cemitério de cadáveres de negros novos[5], pela ambição dos homens de Valongo[6] que para ali os lançam a fim de se forrarem a despesa de pagar cemitério. Desses males vem da existência do dito lago, um a perda do terreno, outro a facilidade de ali se conservarem cadáveres, e imundícies com que se imputa o bairro, e dele toda a cidade. Fica Vossa Mercê encarregado de fazer aterrar mandando no distrito de todo o seu bairro declarar ou por editais ou por notificações as obras que se fizerem de concertos que caliço e entulhos para ali se levem e de dias em dias os mande estender a enxada e assim mesmo vendo que terrenos vizinhos se podem tirar a terras para as pôr ali por meio de algumas carroças por ajustes cômodos de que me dará parte e logo ao mesmo tempo mande notificar a todos os negociantes que recolherem pretos no Valongo[7] para que nunca mais se atrevam a lançar para ali cadáveres ilegível de logo que se conheça que lhes os pertencem por marcas[8] e outras informações pagarem da cadeia trinta mil réis para se gastar no enxugamento, e melhoramento do mesmo charco. Ordene ao seu escrivão que nos autos que fizer dos corpos ali achados se examinem todas as marcas que tiverem ilegível individualmente e por elas, nessas ocasiões, mandará proceder a exame nos livros das cargas dos escravos[9] para descobrir de quem sejam e a que armazéns vieram, de forma que por este meio se possa impor as penas, e que todos conheçam que devem a Polícia[10] este miúdo exame a fim de extinguir este mal de que Vossa Mercê irá dando contas, pois que esta providência é perene, e tem um trato sucessivo para não se dar por acabada sem que todo se enxugue o pântano, e desapareçam os fatos de contravenção: para o que lhe fica esta notada. Deus Guarde a Vossa Mercê. Rio 9 de dezembro de 1815. = Paulo Fernandes Viana[11] = Senhor Juiz do Crime do Bairro da Sé

 

[1] Atribuição dada ao magistrado com competências semelhantes às do juiz de fora, mas restritas à esfera criminal. A ele, como aos juízes de fora, cabia realizar devassas sobre crimes acontecidos nos bairros (ou cidades) de sua jurisdição, visando a solucioná-los e a prender os culpados; executar as sentenças estabelecidas pelo intendente geral de Polícia da Corte e, especificamente no Brasil, cobrar as décimas – impostos pagos pelos proprietários de prédios urbanos. Os juízes do crime que atuavam no Brasil seguiam o regimento dos ministros criminais de Lisboa, cujas atribuições eram as mesmas. Com a chegada da corte, d. João criou mais postos de juiz do crime (alvará de 27 de junho de 1808), principalmente para o Rio de Janeiro, prevendo um incremento da criminalidade em decorrência do brusco e significativo aumento populacional que a cidade sofrera com o desembarque da família real e da corte, pretendendo incrementar a “segurança e a tranquilidade de seus vassalos”. Cada juiz do crime respondia por um bairro ou freguesia, como a da Candelária, da Sé, de São José e de Santa Rita, por exemplo.

[2] Freguesia que compreendia a região ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo no Rio de Janeiro e limitava-se com o bairro de São José. Construída em 1570 em cumprimento a uma promessa, a Capela de Nossa Senhora da Expectação e do Parto foi doada pela Câmara, em 1589, aos carmelitas, que iniciaram a construção da atual igreja em 1761 – a sagração deu-se em 1770. Em 1808, com a chegada da família real, a Igreja foi convertida em Capela Real (mesmo que ainda incompletas as obras da fachada). No convento anexo foi instalada a rainha d. Maria I e suas damas, e outros órgãos, como a Ucharia Real e a Real Biblioteca. A Capela Real foi palco da sagração de d. João VI em 1818 e do casamento de d. Pedro com d. Leopoldina em 1817, dentre outros importantes eventos. Somente durante o primeiro reinado, já então denominada Capela Imperial, foram finalizadas as obras. Foi sede episcopal durante todo o Império e parte do período republicano. Em 1977 uma nova Catedral Metropolitana foi concluída. A partir de então passou a ser conhecida como a Antiga Sé (ou Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé).

[3] Hoje conhecida como avenida Marechal Floriano, uma das mais importantes e movimentadas do centro do Rio de Janeiro, nos tempos da Corte joanina era dividida em duas: a rua estreita de São Joaquim (mais antiga) e a rua larga de São Joaquim (a mais nova). A rua estreita compreendia o trecho entre a antiga rua da Vala, hoje Uruguaiana, e a rua do Valongo, atual Camerino, e era conhecida na época por seus prostíbulos e malandros. Anteriormente chamada de rua do Curtume, ganhou o novo nome em função da construção da igreja de São Joaquim, que também motivou a abertura da nova rua, três vezes mais larga que a primeira, que ia da igreja em direção ao campo de Santana. A igreja, que deu nome a ambas ruas, abrigou o Seminário de São Joaquim, que no século XIX se tornou o Imperial Colégio de Pedro II, e foi demolida para o alargamento da rua estreita e para a junção das duas ruas antigas em uma só – que mantém o mesmo traçado até hoje.

[4] Logo que chegou à Américad. João criou duas autoridades sanitárias encarregadas dos serviços de saúde pública na administração do reino: o cirurgião-mor do Exército e o físico-mor do Reino que, juntos (e com os seus delegados, juízes, escrivães, meirinhos, entre outros oficiais) formavam a Inspetoria Geral de Saúde Pública. O cirurgião-mor era responsável por todas as atividades relativas ao ensino e exercício da cirurgia pelos sangradores, barbeiros, parteiras, dentistas, hospitais e médicos do exército. Ao físico-mor cabiam as atividades concernentes ao ensino e exercício da medicina, questões relativas a médicos e pacientes, ao exercício da farmácia, aos droguistas, boticários e curandeiros, às epidemias e ao saneamento das cidades. Esses profissionais eram encarregados de estabelecer uma política de saúde pública através, principalmente, da atuação da Intendência de Polícia no que tange às questões de saneamento e ordem pública; melhoria da salubridade do ar e da cidade; questões de vigilância sanitária dos estabelecimentos que comercializavam remédios e alimentos e no controle das práticas médicas. Agiam, também, no controle das epidemias, quer pela difusão das práticas de higiene, quer pela introdução da vacinação, principalmente para controlar doenças graves, como, por exemplo, a varíola (bexiga) e a febre amarela, que assolavam a população.

[5] Até fins do século XVIII, o comércio de escravos efetuava-se nas ruas estreitas da área central do Rio de Janeiro, sobretudo nas áreas próximas ao Largo do Paço (hoje, Praça XV), concentrado no mercado da rua Direita. Os pretos novos – como eram chamados os escravos africanos recém-chegados – que sucumbiam no decorrer da longa e terrível viagem de travessia do Atlântico eram enterrados em um cemitério próximo ao Largo da Igreja de Santa Rita. A viagem, insalubre, sem condições mínimas de higiene e praticamente sem alimentação deixava muitos negros gravemente enfermos e um grande número falecia durante o percurso ou ao chegar. Os que morriam ao desembarcar, ou já nos armazéns em decorrência da fome e das doenças, eram lançados em covas rasas no cemitério a princípio improvisado, mas bastante duradouro do bairro de Santa Rita. Quando o vice-rei, o marquês do Lavradio, ordenou a mudança do mercado de escravos para a rua do Valongo em 1770 (atual Camerino) e o desembarque dos navios para a área de mesmo nome, às margens dos morros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, o antigo cemitério foi desativado e surgiu um novo cemitério dos pretos novos, maior e mais abandonado ainda do que o anterior, na rua da Harmonia, posteriormente caminho da Gamboa e rua do Cemitério, onde hoje é a rua Pedro Ernesto. Com a crescente importação de escravos africanos, a região do Valongo e o cemitério se ampliaram, e por conta da pouca profundidade das covas, era possível ver os ossos saltando da terra e sentir o odor característico que emanava do lugar, principalmente depois de chover, quando o terreno se tornava um alagadiço. Na maior parte das vezes, os corpos eram enterrados sem nenhum tipo de cerimônia religiosa ou rito funerário, e os ossos eram queimados para que cedesse lugar aos outros que constantemente chegavam, devendo-se mencionar que há indícios que alguns africanos chegavam ao cemitério ainda agonizando e morriam por lá mesmo. As reclamações dos moradores da região eram constantes, mas somente em 1863 o cemitério foi fechado. Desde 2009, o sítio arqueológico reconhecido pelo IPHAN é lugar de pesquisas sobre os escravizados e a cultura africana.

[6] Assim‌ ‌eram‌ ‌conhecidos‌ ‌os‌ ‌traficantes‌ ‌e‌ ‌negociantes‌ ‌de‌ ‌escravos‌ ‌no‌ ‌Rio‌ ‌de‌ ‌Janeiro,‌ ‌a‌ ‌maior‌ ‌parte‌ ‌deles‌ ‌portugueses‌,‌ ‌que‌ ‌praticavam‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌escravagista‌ ‌na‌ ‌região‌ ‌do‌ ‌Valongo.‌ ‌Toda‌ ‌a‌ ‌complexa‌ ‌estrutura‌ ‌de‌ ‌organização‌ ‌desse‌ ‌comércio,‌ ‌que‌ ‌envolvia‌ ‌comissários‌ ‌da‌ ‌alfândega,‌ ‌capitães‌ ‌dos‌ ‌navios,‌ ‌grandes‌ ‌negociantes,‌ ‌tropeiros,‌ ‌atravessadores,‌ ‌foi‌ ‌transferida‌ ‌para‌ ‌o‌ ‌Valongo‌ ‌ainda‌ ‌em‌ ‌fins‌ ‌do‌ ‌século‌ ‌XVIII,‌ ‌pelo‌ ‌marquês‌ ‌do‌ ‌Lavradio.‌ ‌Anteriormente,‌ ‌os‌ ‌escravos‌ ‌eram‌ ‌vendidos‌ ‌nas‌ ‌ruas‌ ‌da‌ ‌área‌ ‌central‌ ‌da‌ ‌cidade,‌ mormente‌ ‌nas‌ ‌proximidades‌ ‌do‌ ‌largo‌ ‌do‌ ‌Paço,‌ ‌na‌ ‌rua‌ ‌São‌ ‌José‌ ‌e‌ ‌arredores,‌ ‌ao‌ ‌alcance‌ ‌dos‌ ‌olhos‌ de‌ ‌moradores‌ ‌e‌ ‌estrangeiros‌ ‌que‌ ‌chegavam‌ ‌para‌ ‌conhecer‌ ‌a‌ ‌colônia.‌ ‌Assim,‌ ‌sob‌ ‌a‌ ‌alegação‌ ‌de‌ ‌proteger‌ ‌os‌ ‌cidadãos‌ ‌das‌ ‌doenças‌ ‌trazidas‌ ‌pelos‌ ‌navios‌ ‌negreiros‌ ‌e‌ ‌preservar‌ ‌a‌ ‌imagem‌ ‌da‌ capital‌ ‌do‌ ‌Brasil,‌ ‌esse‌ ‌mercado‌ ‌foi‌ ‌transferido‌ ‌para‌ ‌a‌ ‌região‌ ‌onde‌ ‌atualmente‌ ‌compreende‌ ‌as‌ áreas‌ ‌da‌ ‌Saúde,‌ ‌Gamboa‌ ‌e‌ ‌Santo‌ ‌Cristo.‌ ‌A‌ ‌região‌ ‌do‌ ‌Valongo‌ ‌abrigou‌ ‌o‌ ‌desembarque‌ ‌dos‌ ‌navios,‌ e‌ ‌a‌ ‌comercialização‌ ‌dos‌ ‌escravos,‌ ‌nos‌ ‌mercados,‌ ‌trapiches‌ ‌e‌ ‌casas‌ ‌dos‌ ‌negociantes‌ ‌que‌ ‌se‌ ‌localizavam‌ ‌na‌ ‌rua‌ ‌de‌ ‌mesmo‌ ‌nome‌ ‌(hoje‌ ‌rua‌ ‌Camerino).‌ ‌Os‌ ‌homens‌ ‌do‌ ‌Valongo,‌ ‌controlavam‌ o‌ ‌comércio‌ ‌de‌ ‌escravos‌ ‌no‌ ‌maior‌ ‌porto‌ ‌de‌ ‌desembarque‌ ‌de‌ ‌africanos‌ ‌da‌ ‌América,‌ ‌auferindo‌ grandes‌ ‌lucros.‌ ‌Segundo‌ ‌Manolo‌ ‌Fiorentino‌ ‌(1997)‌ ‌e‌ ‌João‌ ‌Fragoso‌ ‌(1998),‌ ‌o‌ ‌mercado‌ ‌de‌ ‌africanos‌ ‌tornou-se‌ ‌uma‌ ‌das‌ ‌atividades‌ ‌coloniais‌ ‌mais‌ ‌lucrativas,‌ ‌responsável‌ ‌pela‌ ‌fortuna‌ mercantil‌ ‌que‌ ‌colocaria‌ ‌tais‌ ‌mercadores‌ ‌no‌ ‌topo‌ ‌da‌ ‌hierarquia‌ ‌econômica ‌e‌ ‌social‌ ‌da‌ ‌colônia.‌ Mesmo‌ ‌depois‌ ‌da‌ ‌lei‌ ‌de‌ ‌1831‌ ‌que‌ ‌proibia‌ ‌o‌ ‌tráfico,‌ ‌muitos‌ ‌donos‌ ‌de‌ ‌armazéns‌ ‌continuaram‌ ‌a‌ trabalhar‌ ‌na‌ ‌clandestinidade,‌ ‌mas‌ ‌em‌ ‌condições‌ ‌mais‌ ‌difíceis‌ ‌por‌ ‌conta‌ ‌da‌ ‌inspeção‌ ‌inglesa.‌ ‌Os‌ negociantes‌ ‌continuaram‌ ‌lucrando,‌ ‌principalmente‌ ‌por‌ ‌conta‌ ‌do‌ ‌aumento‌ ‌do‌ ‌preço‌ ‌do‌ ‌cativo,‌ todavia‌ ‌a‌ ‌atividade‌ ‌tornou-se‌ ‌mais‌ ‌arriscada.‌ ‌A‌ ‌partir‌ ‌de‌ ‌1850,‌ ‌quando‌ ‌o‌ ‌tráfico‌ ‌é‌ definitivamente‌ ‌extinto,‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌interno‌ ‌de‌ ‌escravos‌ perdurou,‌ ‌entretanto,‌ ‌parte‌ dos‌ ‌comerciantes‌ ‌passaria‌ ‌a‌ ‌dedicar‌ ‌seus‌ ‌capitais‌ ‌a‌ ‌outras‌ ‌atividades‌ ‌comerciais‌ ‌e‌ ‌a‌ ‌indústria.‌ ‌

[7] Em 1770, o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, decidiu transferir o desembarque dos navios negreiros (também chamados navios de escravatura) e o comércio de escravos da área central do Rio de Janeiro para uma região mais afastada, conhecida como Valongo, próximo ao morro da Conceição. O mercado de escravos funcionava, até então, no meio da rua Direita, próximo à rua do Cano e à rua de São José, e em outras ruas estreitas do centro da cidade. Sua intenção, ao promover a mudança do mercado para uma área ainda pouco ocupada, parece ter sido evitar, principalmente aos olhos dos estrangeiros, nobres e recém-chegados que desembarcavam na cidade no cais defronte ao Largo do Paço, um espetáculo chocante de homens, mulheres e crianças seminus, geralmente fracos e doentes, em exposição, à venda pelas ruas do Centro. Logo que o Cais do Valongo foi construído (em 1817 passando a se chamar Cais da Imperatriz – com a chegada da princesa Leopoldina) e o porto e o mercado foram transferidos para lá – entre as atuais regiões da Saúde e Gamboa –, a população da área adensou, trapiches, armazéns, mercados, pequenos comércios e residências dos negociantes e traficantes de escravos cresceram nos arredores; pântanos foram aterrados e ruas abertas. Ao desembarcar dos navios, os negros africanos escravizados eram conduzidos aos armazéns e mercados, onde eram alimentados, minimamente vestidos, recebiam cuidados de saúde e higiene (para se recuperarem da viagem e das doenças, e não morrerem) e separados, por idade, nacionalidade e sexo. A maioria dos escravos do Valongo era de homens jovens, entre 13 e 24 anos. No início do século XIX, o movimento comercial da região começou a sofrer um pequeno declínio devido, principalmente, às tentativas de interrupção do tráfico negreiro, primeiramente em 1831, intensificando-se após a lei de 1850 que efetivamente extinguiu o tráfico (abolição gradual do tráfico de escravos). Posteriormente, essa região ficou conhecida por ser habitada pela população mais pobre da cidade que, ao longo dos anos, foi subindo os morros em busca de moradia. Tendo em vista a grande concentração de negros (ex-escravos e seus descendentes), a região do Valongo caracterizou-se por manter vivas as tradições da cultura africana, até os dias de hoje.

[8]escravidão se estabelece sob o instituto da violência. A dor era inerente à vida dos escravos e se faz presente ainda hoje nos documentos que dizem respeito a castigos, maus tratos e a principal forma de identificação dos negros: as marcas feitas a ferro quente. Havia três tipos de marcas, as da própria nação africana, culturais, que identificavam a comunidade de origem ou funcionavam como adorno, como desenhou Jean-Baptiste Debret em duas pranchas de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil; as feitas pelos negociantes e proprietários, e as que serviam como punição, para que se reconhecesse quem fugiu ou cometeu algum delito. Ao chegar ao porto de onde sairia o navio negreiro, ainda na África, os escravos eram marcados com as iniciais do traficante responsável por eles, e ao chegar ao Brasil, recebiam novas marcas, desta vez com as iniciais de seus proprietários. Essa prática se repetia quantas vezes fosse preciso, ou seja, a cada vez que o escravo fosse vendido, seria novamente marcado. Embora muitos deles já tivessem marcas de origem, as feitas pelos comerciantes tinham outro significado. Elas se tornavam cicatrizes, quase sempre inalteráveis, que serviam para evitar fugas e, caso elas ocorressem, localizar mais facilmente o escravo. D. Manuel, rei de Portugal, foi um dos primeiros a institucionalizar a marca, no início do século XVI, utilizando-se primeiramente desse recurso nos escravos da Coroa. Outra marca comum era a cruz, gravada no peito dos cativos que haviam sido batizados. Mesmo que algumas vezes vozes se levantassem contra essa agressão, ela somente se extinguiu por um curto momento, entre 1813 e 1818, por razões humanitárias, mas a prática logo foi restabelecida por necessidade de racionalização do negócio negreiro. Os corpos eram marcados em lugares de fácil visualização, como peito, braço, ombros, no ventre, na coxa e até na face. Em 1741 Gomes Freire de Andrade, governador da capitania do Rio de Janeiro, instituiu que os escravos fugitivos seriam marcados com um F (de fugido) quando fossem encontrados, e seriam obrigados a usar doravante um cordão de estacas. Caso se apreendesse um escravo em fuga já com aquela marca F, este teria uma punição mais severa e exemplar, uma orelha cortada. As marcações a ferro quente como punição, bem como a mutilação, foram extintas com o Código Criminal do Império de 1832.

[9] Pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de JaneiroBahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[10] A Intendência de Polícia foi uma instituição criada pelo príncipe regente d. João, através do alvará de 10 de maio de 1808, nos moldes da Intendência Geral da Polícia de Lisboa. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a este órgão, concentrando suas atividades no Rio de Janeiro, sendo responsável pela manutenção da ordem, o cumprimento das leis, pela punição das infrações, além de administrar as obras públicas e organizar um aparato policial eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas perniciosas e subversivas. Na prática, entretanto, a Polícia da Corte esteve também ligada a outras funções cotidianas da municipalidade, atuando na limpeza, pavimentação e conservação de ruas e caminhos; na dragagem de pântanos; na poda de árvores; aterros; na construção de chafarizes, entre outros. Teve uma atuação muito ampla, abrangendo desde a segurança pública até as questões sanitárias, incluindo a resolução de problemas pessoais, relacionados a conflitos conjugais e familiares como mediadora de brigas de família e de vizinhos, entre outras atribuições. O aumento drástico da população na cidade do Rio de Janeiro, e consequentemente, da população africana circulando nas ruas da cidade a partir de 1808, esteve no centro das preocupações das autoridades portuguesas, e nela reside uma das principais motivações para a estruturação da Intendência de Polícia que, ao contrário do que vinha ocorrendo no Velho Mundo, deu continuidade aos castigos corporais junto a uma parcela específica da população. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil na primeira metade do século XIX, e apresentava um caráter também político, uma vez que vigiava de perto as classes populares e seu comportamento, com ou sem conotação ostensiva de criminalidade. Um dos traços mais marcantes da manutenção desta ordem política, sobreposta ao combate ao crime,  se expressa em sua atuação junto à população negra – especialmente a cativa – responsabilizando-se inclusive pela aplicação de castigos físicos por solicitação dos senhores, mediante pagamento. O primeiro Intendente de Polícia da Corte foi Paulo Fernandes Vianna, que ocupou o cargo de 1808 até 1821, período em que organizou a instituição. Subordinava-se diretamente a d. João VI, e a ele prestava contas através dos ministros. Durante o período em que esteve no cargo, percebe-se que muitas funções exercidas pela Intendência ultrapassavam sua alçada, em especial àquelas relacionadas à ordem na cidade e às despesas públicas, por vezes ocasionando conflitos com o Senado da Câmara. Desde a sua criação, a Intendência manteve uma correspondência regular com as capitanias, criando ainda o registro de estrangeiros.

[11] Nascido no Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana era filho de Lourenço Fernandes Viana, comerciante de grosso trato, e de Maria do Loreto Nascente. Casou-se com Luiza Rosa Carneiro da Costa, da eminente família Carneiro Leão, proprietária de terras e escravos que teve grande importância na política do país já independente. Formou-se em Leis em Coimbra em 1778, onde exerceu primeiro a magistratura, e no final do Setecentos foi intendente do ouro em Sabará. Desembargador da Relação do Rio de Janeiro (1800) e depois do Porto (1804), e ouvidor-geral do crime da Corte foi nomeado intendente geral da Polícia da Corte pelo alvará de 10 de maio de 1808. De acordo com o alvará, o intendente da Polícia da Corte do Brasil possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetidos os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da ordem e segurança pública. Durante as guerras napoleônicas, dispensou atenção especial à censura de livros e impressos, com o intuito de impedir a circulação dos textos de conteúdo revolucionário. Tinha sob seu controle todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Foi durante a sua gestão que ocorreu a organização da Guarda Real da Polícia da Corte em 1809, destinada à vigilância policial da cidade do Rio de Janeiro. Passado o período de maior preocupação com a influência dos estrangeiros e suas ideias, Fernandes Viana passou a se ocupar intensamente com policiamento das ruas do Rio de Janeiro, intensificando as rondas nos bairros, em conjunto com os juízes do crime, buscando controlar a ação de assaltantes. Além disso, obrigava moradores que apresentavam comportamento desordeiro ou conflituoso a assinarem termos de bem viver – mecanismo legal, produzido pelo Estado brasileiro como forma de controle social, esses termos poderiam ser por embriaguez, prostituição, irregularidade de conduta, vadiagem, entre outros. Perseguiu intensamente os desordeiros de uma forma geral, e os negros e os pardos em particular, pelas práticas de jogos de casquinha a capoeiragem, pelos ajuntamentos em tavernas e pelas brigas nas quais estavam envolvidos. Fernandes Viana foi destituído do cargo em fevereiro de 1821, por ocasião do movimento constitucional no Rio de Janeiro que via no intendente um representante do despotismo e do servilismo colonial contra o qual lutavam. Quando a Corte partiu de volta para Portugal, Viana ficou no país e morreu em maio desse mesmo ano. Foi comendador da Ordem de Cristo e da Ordem da Conceição de Vila Viçosa, seu filho, de mesmo nome, foi agraciado com o título de barão de São Simão.

 

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