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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Sexta, 03 de Agosto de 2018, 13h33
 Construindo a Corte: o Rio de Janeiro e a nova ordem urbana

Renata William Santos do Vale
Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio
Pesquisadora do Arquivo Nacional

Costuma-se referir ao ano de 1808 como sendo decisivo para a Corte portuguesa e a família real. A migração para o Brasil, fuga ou viagem, programada ou às pressas, produziu um marco sem precedentes na história do Império colonial português, pôs em prática a idéia do império luso-brasileiro, e promoveu grandes transformações, entre as mais importantes, a que tornou a colônia uma metrópole. A nova sede do Império, o Rio de Janeiro, foi certamente a cidade que sofreu as maiores modificações no espaço urbano e nos costumes.

O Arquivo Nacional dispõe de diversos fundos e coleções que proporcionam ao pesquisador a possibilidade de vislumbrar algumas destas transformações, dentre eles a Série Saúde, que permite observar uma nova postura frente às questões sanitárias e à saúde pública, e o privilegiado fundo Polícia da Corte, que registra as posturas tomadas pelo Estado para imprimir uma nova ordem social e geográfica à cidade.

 Antes de 1808, o Rio de Janeiro - embora já capital da colônia do Brasil desde 1763 - era uma cidade colonial de proporções moderadas. A cidade ocupava o espaço desde o mar até as franjas dos morros e a região central não ia além do Campo de Santana. O Rio era uma cidade de casas térreas simples, de ruas estreitas, boa parte delas carecendo de calçamento, ocupadas por escravos, libertos, brancos pobres, comerciantes, artesãos e uma pequena presença de senhoras brancas. Os atrativos sociais eram poucos e limitavam-se a idas à igreja, procissões e festas religiosas, e a passeios no Passeio Público e outras poucas áreas propícias a caminhadas. A Corte joanina, quando aqui chega, encontra uma cidade colonial, não exatamente pequena, mas acanhada, simples, que nos próximos anos realizaria um grande esforço para se adequar à nova condição de Corte e de sede do Império português.

Até a chegada da Corte, os governadores da cidade e os vice-reis já realizavam esforços, quase sempre com verbas reduzidas, para tornar o Rio de Janeiro menos insalubre e para melhorar a ordem urbana. Alguns dos que se destacaram neste processo foram Gomes Freire de Andrade, último governador da cidade antes da mudança da capital de Salvador para o Rio em 1763, quando os próprios vice-reis passam a administrá-la. Destes, destacamos Luís de Almeida Mascarenhas, o marquês do Lavradio (1769-1778) e seu sucessor, Luís de Vasconcelos (1779-1790).

É importante também lembrar que os vice-reis administravam todo o Estado do Brasil, e realizavam obras nas outras capitanias, além do Rio de Janeiro. Juntos, estes três administradores ergueram e realizaram obras importantes para a nova capital da colônia, principalmente na área de saneamento, abastecimento, defesa, entre outras. Destacamos o Convento de Santa Teresa, a criação de Academias Literárias e Científicas (como a dos Felizes, em 1736, visando à ilustração da colônia), a construção da antiga Casa da Moeda - depois Casa dos Governadores, Palácio dos Vice-Reis e, por fim, Paço Real -, a reconstrução do aqueduto da Carioca (cuja primeira versão era da época de Aires de Saldanha), a autorização da primeira tipografia na colônia, em 1747, além da abertura de ruas (como a do Lavradio, por exemplo), o aterramento de charcos e pântanos, a construção de chafarizes, praças, fortalezas, calçamento de ruas, e do próprio Largo do Paço, entre outras ações nas áreas do comércio, agricultura e indústria.

Um dos aspectos mais comentados pelos recém-chegados sobre a cidade, e que constituiu um problema e grande desafio na empreitada de civilizar e tornar o Rio uma cidade habitável para os europeus, eram as condições de salubridade. A cidade concentrava-se em vales, cercada de grandes morros que, no dizer dos homens da época, dificultavam a circulação do ar, o que favorecia a proliferação de doenças, além de manter um calor sempre abafado e úmido nas ruas e casas.

Logo depois da chegada da Corte e da família real, o príncipe regente encomendou ao físico-mor do reino, Manoel Vieira da Silva, uma memória na qual avaliasse as condições de salubridade da nova Corte e sugerisse soluções para os problemas existentes. Em seu relato, Vieira avalia que, embora os morros realmente perturbassem a circulação do ar, o maior problema da cidade eram os pântanos e charcos, que deixavam o ar sempre úmido, o que, associados ao intenso calor, conformavam ambiente propício para o desenvolvimento dos "miasmas e febres perigosas" que resultavam nas epidemias que freqüentemente assolavam a população.

A solução proposta para este problema não seria, como já aventado desde aquela época, a derrubada de um dos morros - o do Castelo - para facilitar a circulação dos ventos. O mais acertado seria aterrar os brejos e alagadiços, abrir largas ruas e impedir a população de construir tantas casas baixas em qualquer lugar, dificultando, deste modo, a ventilação do centro da cidade. Veremos que esta sugestão do físico-mor, entre outras, foi aceita e nortearia as obras e reformas que se seguiram e que transformaram o Rio de Janeiro na nova capital.

Outra questão que cresceu logo depois da migração da Corte foi a acomodação de todos, o que gerou uma crise habitacional. Sem nos prendermos à questão de qual foi o número exato ou mais aproximado de pessoas que aportaram a princípio no Rio de Janeiro acompanhando a família real e a Corte, houve uma quantidade considerável de famílias e pessoas que necessitavam de moradia ao chegar aqui, inclusive o próprio príncipe, e que perfaziam uma demanda habitacional que a cidade não tinha como oferecer, a menos que desalojasse seus próprios moradores, o que acabou por ocorrer.

As "aposentadorias", como se chamavam esses despejos por ordem real, geraram, além do problema inicial da falta de lugar para morar, disputas e ódios entre os súditos da cidade e os que vinham de Portugal, que tomavam as melhores casas e chácaras dos nobres do lugar. Isso causou um aumento exorbitante no preço das casas e dos aluguéis, e desestimulou as novas construções, pois temia-se que, ao fazê-las, elas poderiam ser confiscadas sem indenização. Além das dificuldades existentes decorrentes da pouca quantidade de casas para abrigar tantos novos súditos de uma vez (e que não parariam de chegar nos anos seguintes), havia também o problema da pouca qualidade e simplicidade das casas, inadequadas para abrigar altos membros da nobreza e do governo. Falta de água, saneamento e víveres foram outros impasses que aconteceram decorrentes da aluvião de novos súditos para uma cidade sem preparo para abrigá-los em tão grande número.

Para tentar resolver esses problemas práticos e urgentes, o príncipe regente cria a Intendência Geral de Polícia da Corte nos moldes da que havia em Lisboa, órgão que desempenharia o papel de remodelar a cidade, realizando obras de melhoramento, além de policiar as ruas, não somente reprimindo o crime, mas disciplinando a população e imprimindo novos hábitos mais "civilizados" e de acordo com a nova ordem pública urbana.1

Criada em decreto de 10 de maio de 1808, a Intendência de Polícia da Corte acumulava várias funções, o que a assemelhava mais a um órgão como uma prefeitura dos dias atuais, do que necessariamente com uma delegacia de polícia. Algumas de suas principais atribuições eram: a segurança, a investigação dos crimes e captura dos criminosos, a realização de obras públicas e de abastecimento, e a solução de questões ligadas à Ordem pública, dentre elas a vigilância da população, a repressão e correção de comportamentos considerados inaceitáveis.

Outra particularidade da Intendência era a dimensão do seu poder, ela representava a autoridade do monarca e, portanto, acumulava os poderes legislativo, executivo e judiciário, tendo o intendente o status de ministro. Elaborava, também, editais e posturas, estabelecendo leis e regras de comportamento, promovia devassas, julgava os suspeitos de crime, e executava as punições. Trabalhavam com a Intendência os juízes do crime das freguesias mais importantes da região central da cidade - Candelária, Santa Rita, Sé, São José e Santana - responsáveis pelo policiamento, por realizar as devassas sobre suspeitos e crimes, e por punir os culpados, acumulando os papéis de julgar e policiar.

O primeiro intendente de polícia foi Paulo Fernandes Viana, natural do Rio de Janeiro, desembargador da Relação, ouvidor da Corte e cavaleiro da Ordem de Cristo, que comandou a instituição com mão de ferro até 1821, quando foi afastado do cargo por revolucionários na ocasião da convocação das Cortes e adoção de uma Constituição liberal em Portugal. Segundo Thomas Holloway, esse é o começo de um longo projeto que culminou com as reformas do prefeito Pereira Passos na primeira década do século XX, estas com a clara preocupação de apagar o que remetia ao passado colonial, diferentemente do que acontecia no período joanino. Mas que também procurava criar uma memória fundadora para a cidade, associada a este período no qual o Brasil, sede do Império, dava início ao processo de deixar de ser colônia, e no qual o Rio de Janeiro, além de encetar uma tradição de capital e centro irradiador de cultura, que marca a cidade até os dias atuais, recebeu ares de Europa, já com as obras de melhoramento realizadas por Viana, a edificação de grandes monumentos e a criação de órgãos importantes, como o Real Teatro de São João, o Jardim Botânico, a Academia Real de Belas Artes, a construção de chafarizes e fontes, e a Real Biblioteca, por exemplo.

As casas baixas eram, em geral, erguidas pelos proprietários, que não tinham noções de arquitetura e construção. Disto resulta a ausência de um padrão estético, e muitas construções pouco seguras e baratas que, além de normalmente desrespeitarem o espaço público invadindo ruas e praças, por vezes vinham abaixo. Essas eram as construções que prevaleciam na área central da cidade e que se pretendia combater com a remodelação proposta. Maria Beatriz Nizza da Silva descreve, assim, uma típica casa térrea e seus materiais mais comuns: A casa térrea era dividida em sala, alcova, um quarto e cozinha. Como dizia Freycinet outro viajante europeu, as habitações cariocas obedeciam ao princípio de ter uma grande sala dando para a rua e o resto distribuído em alcovas e corredores. Quanto aos materiais de construção, convém ressaltar que janelas com caixilhos de vidro eram então consideradas um luxo no Rio de Janeiro e a maioria tinha rótulas, ou seja, engradados de madeira. As casas assentavam em esteios de madeira.7

 Um edital de 11 de junho de 1808 (Polícia da Corte, Códice 318, p. 26v) proibia a construção de novas casas térreas no centro da cidade, alegando que elas comprometiam a salubridade do ar; no entanto, esta medida visava ao melhoramento urbanístico da cidade, aumentando o número de sobrados, e estimulando o crescimento da cidade em direção às áreas além do antigo perímetro urbano (a rua da Vala, atual Uruguaiana). Realizava-se assim, uma ampliação da cidade para a região do Campo de Santana, aterrando o alagado de Pedro Dias e criando a cidade nova. Essa região, que compreendia nessa época principalmente o Campo de Santana e a Praça Tiradentes, foi a que mais cresceu ao longo do período joanino, vindo a abrigar residências de nobres e funcionários do governo, como o próprio Paulo Fernandes Viana, e mesmo a Intendência de Polícia da Corte. Entretanto, esta mudança apontava também na direção de uma certa especialização das funções de cada área ou freguesia da cidade. Se durante o período colonial, as moradias do centro se confundiam com o local de trabalho - na frente ficavam as oficinas e nos fundos a casa propriamente - com a chegada da Corte, a tendência de nobres e comerciantes era habitar as áreas mais distantes, enquanto o centro se torna o local por excelência do comércio,8 dos negócios e, ao mesmo tempo, das habitações populares.

As freguesias de Santa Rita e de Santana eram as regiões onde se concentravam mais moradias das populações pobres, e os bairros de São José e da Candelária, onde se localizavam o Paço e a Praça de Comércio (onde hoje é Casa França-Brasil), se destacavam como áreas do poder. É também durante este momento que começa um crescimento em direção aos arredores - os membros da elite dirigente, assim que conseguem estabelecer-se, mudam-se para as redondezas do Paço ou da Lapa, principalmente os que atuavam no governo. Já aristocratas e comerciantes ricos iniciam uma expansão em direção a outras áreas, consideradas menos insalubres e de clima mais ameno, nas encostas das montanhas da cidade. Freguesias como Glória, Catete, Laranjeiras e Botafogo passam a ser procuradas, e outras, como Catumbi e São Cristóvão, local da nova residência do Rei, também sofrem um aumento desta população mais abastada, que procura nelas instalar suas chácaras e casas nobres, a exemplo da princesa Carlota Joaquina, que se estabelece com suas filhas em uma chácara em Botafogo.

Apesar da proibição da construção de novas casas térreas no centro, há vários documentos no fundo de Polícia da Corte que exemplificam como este problema persistiu ainda por longo tempo. Paulo Fernandes Viana encarregava os juízes do crime dos bairros centrais (Sé e São José, por exemplo) e da Câmara de vistoriar as casas naqueles bairros, sobretudo na rua do Ouvidor, avaliar as condições delas e indicar a melhor solução: reformá-las ou derrubá-las (Códice 329, vol. 03, ofícios de 27 de junho e 4 de julho de 1815, e 5 e 9 de fevereiro de 1816). Chegou-se mesmo a criar um modelo de inspeção das casas da Corte, documento presente também na seção D. João nas Escolas, no qual o intendente tenta regular a qualidade das construções e estabelecer um padrão de vistoria (Códice 329, vol. 03, 16 de fevereiro de 1816). Essas obras de melhoramento se refletiram em calçamento de ruas, reformas de calçadas, abertura de estradas, aterramento de pântanos, limpeza de terrenos baldios, iluminação da cidade, vistorias sanitárias em armazéns, vendas, padarias, entre outras tentativas de reformular o espaço urbano.9

Até mesmo os cemitérios viraram alvo das reformas. Desaconselhada sua existência em áreas populosas, pelo risco de espalhar doenças e contaminação, os cemitérios, no entanto, somente foram retirados dessas freguesias anos depois de constatado o perigo que representavam. Um ofício de Paulo Fernandes Viana solicitando a retirada do cemitério dos pretos novos aponta vários problemas vividos pela cidade: o risco de doenças, já mencionado, se levarmos em consideração que não havia um padrão para as covas, quase sempre muito rasas; o problema de um pântano crescente no centro da cidade; e a incômoda presença da escravidão, em uma de suas piores faces. É importante notar que Paulo Fernandes Viana não demonstrava preocupação com a situação dos escravos ou se compadecia de sua condição; de fato, o intendente criticava os traficantes de escravos pelo descaso com a limpeza do bairro e sugeria uma punição para os negociantes que pudessem ser identificados (Códice 329, vol. 03, 9 de dezembro de 1815).

Neste ofício emerge um assunto delicado e problemático para o projeto civilizador que se pretendia implantar: como criar uma imagem de civilização em uma cidade cuja população era grandemente composta de escravos, aos quais freqüentemente se associavam imagens de barbárie e atraso? Como remover as marcas coloniais e criar uma imagem de metrópole numa cidade que dependia para tudo do trabalho escravo - inclusive para realizar as obras que dariam ao Rio essa nova feição? De acordo com Kirsten Schultz, ainda, para os oficiais da Coroa, "civilizar" o Rio de Janeiro, torná-lo metrópole, era também confrontar um atributo colonial mais impressionante do que treliças e hospitais mal administrados. Com efeito, a diferença mais notável entre a velha corte e a nova não era a arquitetura ou os costumes, mas o fato que metade da população da nova corte era escrava. ... Se tornar o Rio de Janeiro em uma corte metropolitana significava erradicar as características coloniais da cidade, então parecia que o uso do trabalho escravo, assim como das treliças, seria renunciado.10

No entanto, não era isso que acontecia. Uma cidade que se acostumou a usar o trabalho escravo para tudo, desde o transporte de pessoas (em liteiras e cadeirinhas) até a remoção de esgoto (carregado nas costas pelos ‘tigres'11), cuja sociedade associava o trabalho braçal à degradação, não poderia abrir mão do regime escravista. A saída encontrada, ao que parece, foi usar essa mesma mão-de-obra para criar a nova cidade, a nova Corte.12 Assim, o espaço urbano experimentava uma nova ordem, o Rio de Janeiro tornava-se a nova Corte nas Américas, diminuindo para isso suas feições coloniais, enquanto se apoiava em um alicerce colonial para que todas essas mudanças chegassem a acontecer: a mão-de-obra escrava. Kirsten Schultz parece apontar a solução para este problema: neste sentido, assim como os cortesãos portugueses ensinaram às elites da cidade a serem metropolitanas, os moradores e oficiais do governo da cidade ensinariam os cortesãos a serem, com efeito, coloniais; a reconhecer os meios de preservar a ordem e a civilidade entre as práticas brutais da escravidão.13

A transferência da família real e da Corte portuguesa, com todo seu aparato burocrático e seus hábitos europeus, para a cidade do Rio de Janeiro em princípios do século XIX, foi um projeto e um acontecimento de grandes proporções sem precedentes na história do Brasil, que deixou, certamente, marcas profundas nas feições e nos hábitos da cidade e seus moradores, e na colônia como um todo. O Rio de Janeiro viveu um verdadeiro "surto" de urbanização, com grandes obras de reformas e melhoramentos que transformaram a cidade em uma nova Corte, adequada a seu novo papel como sede do Império português. Porém, essas reformas implicaram mais do que mudanças físicas e geográficas no espaço urbano; criou-se mesmo uma nova ordem urbana, na qual a cidade, seus habitantes e seus costumes foram disciplinados à moda européia, emitindo um ar civilizado necessário à nova Corte. Mas também ensinaram aos que chegavam de fora alguns hábitos e aspectos da vida colonial.

Uma passagem de John Luccock acerca da impressão dele sobre a cidade durante sua permanência de dez anos no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1818, é interessante para revelar algumas das mudanças que desejamos aqui neste breve texto apontar: o melhoramento da aparência das ruas foi o fundamento ostensivo da ordem real, tendo sido lembrado que "Tal como a cidade progredira na escala dos privilégios e da importância, assim também devia ela progredir na sua aparência externa". ... Seja como for, de uma penada o Regente fez mais no promover a salubridade e o conforto do Rio, do que se poderia obter pelas sugestões de estrangeiros, sustentados por toda a força da razão, em um século inteiro.14

1 A idéia moderna de polícia que inspira a criação da Intendência em 1808 vem da polícia francesa que surge depois da Revolução de 1789. De inspiração liberal, a polícia seria uma instituição a serviço do cidadão, que garantiria seus direitos e seus deveres no espaço público. Neste sentido, policiar não seria somente reprimir e punir crimes, mas regular a urbanidade dos cidadãos, um comportamento aceitável dentro dos padrões sociais da época. Fazia parte também desse novo papel da polícia, organizar os espaços e civilizar a cidade, intervindo pela promoção de obras públicas visando à melhoria das áreas urbanas. A apropriação desta idéia, no entanto, em um Império do Antigo Regime, composto não de cidadãos, mas de súditos e vassalos, promove uma mudança de sentido do papel da polícia: no Brasil, depois da chegada da Corte, a Intendência teria como atribuição civilizar a cidade e os seus moradores, não voltada principalmente para servir ou garantir os direitos dos cidadãos, mas para representar a autoridade do Rei, promovendo, de forma disciplinadora, e quase sempre truculenta, o controle social em função de criar e manter a ordem. Apud: HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997; e COTTA, Francis Albert. Polícia para quem precisa. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, ano 2, n° 14, novembro de 2006, p. 64-68.
2 Op. cit., p. 47.
3 SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles: the transfer of the portuguese Court to Rio de Janeiro, monarchy and Empire (1808-1821). New York University, 1998, p. 292. Tradução livre do original em inglês: "... the construction of a new court in America depended upon an explicit metropolitanization of the city. In other words, royal officials and Rio´s residents recognized that because the transfer of the court undermined the dichotomy of metropolis/colony, the transformation of Rio de Janeiro into the royal court had to entail a marginalization of the aesthetics and the practices that failed to reflect this change. ... To no longer be colonial meant embracing a colonial project: to civilize."
4 ALGRANTI, Leila M. O Feitor Ausente. Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro - 1808-1822. Petrópolis: Vozes, 1988.
5 A notação completa dos documentos e a ementa de cada um deles podem ser encontradas na seção Textos joaninos, dentro do item A Corte no Brasil.
6 LEITHOLD, T. et RANGO, L. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. Brasiliana, vol. 328. p. 11. (As janelas referidas eram chamadas de rótulas, gelosias ou treliças - madeira trançada - e identificavam a arquitetura colonial.)
7 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 45.
8 E mesmo as ruas começam a se especializar em uma atividade comercial, como é o caso da rua dos Ourives (atual Miguel Couto). Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza. Op. Cit.
9 As ementas desses documentos estão presentes também na seção Textos joaninos.
10 Op. cit., p. 328-329. Tradução livre do original em inglês: "Yet, for royal officials, to "civilize" Rio de Janeiro, to make it metropolitan, was also to confront a more formidable colonial attribute than lattices and poorly-administered hospitals. Indeed, the most striking difference between the old court and the new was not architecture or manners, but rather the fact that half the population of the new court was enslaved. ... If making Rio de Janeiro into metropolitan court meant eradicating the city's colonial features, it thus appeared that the use of slave labor, like the lattices, would be foregone."
11 Os "tigres" eram os escravos encarregados da infeliz missão de carregar os dejetos da cidade para despejá-los no mar. As tinas, nas quais era depositado o esgoto, vazavam e escorriam pelas costas deles, e os ácidos resultantes das reações químicas que aconteciam marcavam de branco sua pele, em forma de tiras, assemelhando-os às marcas dos tigres.
12 Ao mesmo tempo que crescia vertiginosamente a entrada de escravos e a dependência de seu trabalho, aumentavam e se intensificavam, também, os mecanismos de controle, punição e disciplina - diminuindo sua circulação nas ruas pelo estabelecimento do toque de recolher depois do pôr-do-sol, reprimindo reuniões e ajuntamentos em botequins e vendas, e perseguindo capoeiras, aquilombados, punindo severa e exemplarmente seus delitos. Cf. edital que estabelecia o horário de fechamento de botequins, vendas e casas de jogos na seção D. João nas Escolas.
13 Op. cit., p. 346-347. Tradução livre do original em inglês: "In this sense, just as the courtiers taught the city's elites to be metropolitan, the city's residents and officials would teach the courtiers to be, in effect, colonial; to recognize the means of preserving order and civility amidst the brutal practice of slavery."
14 LUCCOCK, John. Notas sôbre o Rio-de-Janeiro e partes meridionais do Brasil, tomadas durante uma estadia de dez anos nesse país, de 1808 a 1818. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 26.

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