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Conjuração em Minas Gerais

Comentário

Escrito por Super User | Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 15h09
A inconfidência mineira

Viviane Gouvea
Mestre em Ciência Política
Pesquisadora - Arquivo Nacional

O calendário brasileiro ganhou mais um feriado em 1890. O dia da morte de um dos envolvidos no movimento que passou para a história com o pejorativo nome de inconfidência mineira tornou-se uma data a ser celebrada: 21 de abril.

Foi durante o período republicano que se popularizou a imagem de Tiradentes como herói nacional, mártir da Independência. Da mesma forma, a revolta que não chegou a eclodir no final do século XVIII em Minas Gerais tornou-se epítome para movimentos de independência. Após décadas de obscuridade, luzes intensas foram lançadas sobre o movimento e suas personagens, que passaram por um processo de mitificação coerente com a nova ideia de Brasil trazida pela República.

Cento e vinte anos depois, o movimento povoa o imaginário dos brasileiros ainda com uma aura de nacionalismo primordial e heroico patriotismo, mas as tentativas de se compreender melhor as ideias e motivações envolvidas e separar fatos e mitos ganham espaço maior. Algumas questões recorrentes, complexas por sua própria natureza, permanecem em aberto, e talvez assim continuem por muito tempo. Os chamados inconfidentes constituíam um bloco ideológica e politicamente coeso? Qual foi o papel desempenhado pelo iluminismo francês no movimento? De que substratos sócio-econômicos provinham os revoltosos?

Apesar da destruição de boa parte do material pessoal dos inconfidentes, a documentação oficial diretamente relacionada com o evento encontra-se no Arquivo Nacional, concentrada nos fundos Inconfidência Mineira e Diversos Códices, neste último caso, especificamente nos nove volumes do códice 5, que contém os autos do processo. Além disso, a correspondência oficial pode ser encontrada nos fundos Secretaria de Estado do Brasil e Negócios de Portugal, material que contribui para um maior entendimento da organização da revolta, das ideias daqueles que a conceberam, e também do próprio funcionamento da justiça colonial.

As Minas Gerais no século XVIII
"Minas Gerais, no transcurso do século dezoito, foi palco de uma verdadeira epopeia, alimentada tanto pela cobiça e coragem dos participantes como pela riqueza em ouro ali encontrada." 1
Desde os anos dos grandes descobrimentos, Portugal sempre teve esperanças de encontrar ouro e prata em suas colônias, esperanças mantidas vivas em especial quando da descoberta de prata na atual Bolívia, então possessão espanhola. O sonho realiza-se na virada do século XVII para o XVIII, em uma região pouco conhecida do colonizador europeu, inóspita e de difícil acesso, recém desbravada por bandeirantes paulistas.

Como é comum ocorrer em áreas acometidas pela "febre do ouro", logo o fluxo migratório tornou-se intenso, apresentando uma diversidade característica. Indivíduos oriundos tanto da metrópole quanto de outras partes da colônia acorriam para a região das minas - onde atualmente se encontram as cidades de Mariana, Sabará, Ouro Preto, São João Del Rei. Chegavam por conta própria, trazendo consigo pouco mais que a roupa do corpo ou, em outros casos, cabedal a ser investido. Se inicialmente havia uma atmosfera geral aberta e até acolhedora, com o esfriar do primeiro entusiasmo e a organização e regulamentação mais firmes da atividade mineradora por parte da Coroa instalou-se uma franca animosidade entre os primeiros mineradores paulistas e os luso-baianos, chamados emboabas.

Muito se tem falado a respeito da sociedade mineradora, das suas diferenças em relação a sociedade colonial presente em outros núcleos, contrapondo-se em especial às áreas de monocultura extensiva. A emergência de uma teia de núcleos urbanos e as próprias exigências e peculiaridades da atividade mineradora originaram não apenas uma forma de sociabilidade diversa tanto das existentes nas grandes fazendas quanto das apresentadas nos núcleos urbanos relativamente mais sofisticados - Salvador e Rio de Janeiro -, como também contribuíram para um processo (ainda que incipiente, ainda que jamais muito intenso) de integração entre algumas regiões da colônia. Distante dos portos principais, localizada em área de difícil acesso e apresentando um crescimento populacional rápido que demandava maior fluxo de mercadorias tanto de Portugal como de outras partes da colônia, a região das minas tornou-se polo dinamizador de atividades de pecuária nos sertões do norte e também nas regiões mais ao sul. Por conta das dificuldades de transporte e acesso, algumas atividades complementares também se desenvolveram na região mineradora, indo da agricultura para abastecimento local ao artesanato e prestação de serviços.

Da avaliação de dados disponíveis, percebe-se também que a sociedade mineradora, embora escravista, possuía melhor distribuição de riquezas do que no resto da colônia e possibilidades maiores de ascensão social. Esta mobilidade alcançava até mesmo os escravos, já que a cessão de uma parte do ouro extraído era uma recompensa comum ao escravo, um incentivo para que ele se dedicasse mais intensamente a encontrar ouro.

Poucos anos depois do seu início, a atividade mineradora passou a se concentrar nas mãos daqueles que conseguiram acumular mais cabedal: a concessão de lavras pela Coroa relacionava-se diretamente com o número de escravos registrados pelo investidor, e a concessão de uma segunda data dependia da exploração da primeira. Logo a metrópole tratou de regulamentar a atividade e dela extrair o máximo que conseguisse: "conhecida a potencialidade da área, a Coroa tratou de montar a estrutura administrativa e o arcabouço legal com vistas a absorver parte do produto das minas. Implantou a máquina arrecadadora dos quintos; criou uma complexa organização burocrática na qual se confundiam funções executivas, legislativas e judiciárias, definiu regras para a concessão de datas minerais e impôs inúmeros impostos e taxas sobre mercadorias e escravos enviados às Gerais".2 Esta estrutura administrativa, coletora de impostos, mostrar-se-ia origem de aspirações, disputas e insubordinações que desaguariam em revoltas locais, em especial, e caracteristicamente, a conjuração de 1789.

Crise da atividade mineradora
Durante seis décadas a riqueza das Minas Gerais atravessou o oceano Atlântico em direção à Europa, às toneladas. A partir de 1760, contudo, os níveis da extração começaram a decair paulatinamente. Durante alguns anos, manteve-se a esperança de que o quadro fosse revertido, até porque muitos - fosse na metrópole, fosse na colônia - acreditavam que o declínio se devesse ao contrabando, desde sempre endêmico na região mineira.

No entanto, já por volta de 1770 percebia-se, na colônia, que a exploração do ouro havia alcançado um limite, imposto pela própria forma de mineração, tecnologias utilizadas na produção - inadequadas para alcançar veios subterrâneos - e pesquisa do campo. Mas durante muito tempo a cegueira e o preconceito dos homens de Estado portugueses em relação aos homens da terra fariam com que aqueles insistissem que apenas o contrabando era responsável pela queda na arrecadação.

A forma de cobrança de impostos alterara-se no decorrer do século XVIII. De início era uma forma de capitação, arrecadação por cabeça, ou seja, de acordo com o número de escravos. Também a forma de cobrança do quinto da produção não era ponto pacífico: cobrança por bateia, por arroba, calculada por média, a cada ano, sobre o ouro em pó, sobre ouro das fundições... Alguns levantes tiveram lugar ainda no início do século XVIII, resultado da indefinição da cobrança e principalmente da fragilidade da estrutura de arrecadação de impostos e administração. Em 1720, a capitania de São Paulo foi desmembrada, sendo criada a capitania das Minas Gerais, em consequência do levante de Felipe dos Santos, resultado de um conflito entre atores políticos em disputa de poder e riqueza em um cenário em que a soberania real e metropolitana não conseguia se impor de forma unitária.

Os levantes que tiveram por palco a região das minas no século XVIII, via de regra, possuíam um viés conservador, posto que a ideia de independência da metrópole e a constituição de um novo Estado não se encontravam na agenda. Normalmente surgiam como reações às mudanças no sistema de arrecadação de impostos. Tal sistema dependia enormemente de representantes reais que intermediavam a coleta de impostos e seu envio às autoridades metropolitanas.

A estrutura política e administrativa baseava-se no Regimento das Minas, que determinava a existência de uma Intendência das Minas em cada vila próxima à área de exploração de ouro. O intendente seria nomeado pelo rei e a ele estaria ligado diretamente. As novas descobertas deveriam ser comunicadas à Intendência, para que esta providenciasse a demarcação dos novos terrenos auríferos, distribuindo as datas entre os mineradores.

Desde a descoberta do ouro, e ao longo do século dezoito, a região das Gerais mostrou-se suscetível a levantes e revoltas: "se tomarmos a história das Minas desde seus primórdios, e ao longo de todo o século XVIII, veremos um histórico, não desprezível, de sedições e motins, com maior ou menor repercussão, nos quais os mineiros, ricos e pobres, procuravam impor certos limites às políticas administrativas metropolitanas, com especial ênfase no que respeita às novas políticas tributárias que não raro se propunham".3 Contudo, ao fim do século XVIII, alguns elementos novos iriam integrar o antigo cenário que fazia da região um caldeirão em constante ebulição.

Primeiro, o concreto declínio da produção aurífera e a diversificação econômica da região; segundo, a independência das colônias inglesas na América do Norte; terceiro, a disseminação de ideais iluministas, que acabavam por levantar questões ligadas ao Estado e à legitimidade dos governos e sua relação com os povos, questões que não se colocavam até então.
A combinação destes elementos novos em um cenário de recorrentes disputas de poder em meio a um universo que ainda não compreendia a distinção entre o público e o privado faria da Conjuração Mineira um marco entre os movimentos autonomistas, e referencial fundamental para a construção da imagem do Brasil como nação independente.

Os inconfidentes: algumas motivações
Uma das dificuldades de se compreender as intenções dos revoltosos e os ideais que mais os influenciaram deve-se à ausência de documentação que mostre o que aqueles homens pensavam e pretendiam. O movimento jamais eclodiu e, por isso, não há panfletos, livros, documentos escritos por eles com o objetivo de disseminar suas ideias e nortear suas ações. O que chegou até nós são processos, e também correspondência oficial entre representantes do poder contra o qual lutavam os inconfidentes, e é a partir desta documentação que podemos reconstituir os acontecimentos e delinear as intenções do movimento.

Um dos fatores críticos que permitiu a aglutinação de indivíduos diferentes em torno do projeto para um levante foi a crise pela qual passava a produção do ouro e, especificamente, a incapacidade de a metrópole perceber a concreta decadência desta produção, insistindo em cobrar impostos atrasados há anos. No entanto, a análise dos envolvidos na conspiração e a existência de um cenário internacional conturbado levam a crer em outros fatores a compor, juntamente com a questão fiscal, um quadro propício para um levante que ultrapassaria os limites do mero interesse econômico imediato de alguns magnatas endividados.

Após a década de 1760 percebe-se que a comarca de Rio das Mortes passa a apresentar um crescimento demográfico substancial, em oposição à comarca de Vila Rica, que começa a perder população. Isso se deve ao declínio da produção de ouro - estreitamente relacionada à Vila Rica - e a diversificação e florescimento da agricultura, pecuária e até mesmo, em certa medida, da nascente produção manufatureira em Rio das Mortes. Já em 1785, o ministro do Ultramar, Martinho de Melo e Castro - substituto de Pombal que tendia para a aplicação estrita do mercantilismo como forma de explorar as colônias com maior lucro possível -, mandava instruções a todos os governadores da América portuguesa no sentido de reprimir as "perniciosas transgressões"4 representadas pela instalação de manufaturas de tecido (dentre outras), sob pena de os colonos do Brasil perceberem que Portugal de fato não se fazia necessário a sua sobrevivência.

A participação significativa de fazendeiros de Rio das Mortes na planejada sublevação indica que o medo da derrama - embora esta fosse atingi-los também - não era o único motor da conspiração que, na verdade, possuía raízes mais complexas do que uma tradicional revolta contra impostos. A percepção da crise pela qual passava a região de Minas, e também as relações desta com a metrópole, variavam, de certo modo, de acordo com a inserção dos indivíduos na estrutura econômica e social. Assim, indivíduos estabelecidos em Rio das Mortes, cujas atividades não se relacionavam apenas com o ouro, enfrentavam não apenas a ameaça da cobrança de impostos atrasados, mas também mais uma tentativa da metrópole de impedir a diversificação de atividades que vinha caracterizando a região, abrindo-lhe espaço, inclusive, para uma autonomia maior em relação a Portugal. Segundo João Pinto Furtado, "podemos confirmar que o levante não se constituiria em simples reação à pobreza e à estagnação econômica que se sucederam à crise da mineração .... O movimento parece, antes, uma reação às virtuais ameaças mercantilistas à continuidade da expansão da riqueza e da diversificação, em especial na comarca de Rio das Mortes, que concentra 58% dos indiciados".5

Pode-se argumentar que apresentar uma quantificação dos indiciados no processo não sustenta, por si só, a tese de que a motivação real da inconfidência residia mais na expansão econômica ameaçada do que na questão da crise da mineração e na cobrança do imposto. Não há necessariamente uma correlação direta entre a quantidade de indivíduos e o seu peso no movimento. No entanto, este dado mostra-se fundamental para indicar o nível de complexidade da inconfidência, cujos participantes apresentavam perfis e interesses diferenciados, o que talvez explique em parte a falta de unidade do movimento, bem como a fragilidade dos seus projetos.

Dentre os revoltosos, contamos fazendeiros, profissionais liberais, soldados (em especial das tropas auxiliares, ou seja, localmente arregimentados e treinados), burocratas e mineradores. Percebe-se também uma certa sobreposição de atividades, e uma quase "divisão do trabalho" dentro da dinâmica do levante, de acordo com a ocupação do indivíduo. Os mais abastados contribuíam financeiramente e os que possuíam força pessoal e armamento também assim colaboravam; os militares, obviamente, com a organização da luta armada; intelectuais e clérigos forneciam a base teórica, o arcabouço jurídico; sem falar nos colaboradores de uma forma geral que contribuíam com sua disposição e capacidade de arregimentação.

A novidade da inconfidência mineira reside na forma com que tradicionais questões se articulavam com ideias novas, permitindo o surgimento de um horizonte possível que incluía nação e independência - mesmo que tais ideais não encontrassem respaldo em conceitos e projetos mais consistentes. O questionamento em relação às amarras impostas pelo pacto colonial, se anteriormente remetia de forma mais direta a disputas por poder dentro do próprio sistema de administração colonial, em fins do século XVIII já possuía também um referencial externo que permitia pensar, ainda que de forma incipiente, questões relativas a identidade e autonomia.

A independência das colônias inglesas da América do Norte representou um poderoso exemplo para os rebeldes de Minas. Menos pelo modelo adotado - uma república baseada na democracia representativa -, e mais por estabelecerem com firmeza o direito de existirem como entidade independente de uma nação europeia. O exemplo dos "ingleses americanos" acirrou ainda mais os ânimos daqueles que já liam alguns filósofos iluministas, em especial os franceses, a discutir conceitos como soberania, governo justo, despotismo, tirania. De fato, autores como Montesquieu e o abade Raynal, aparentemente os mais lidos pelos inconfidentes, exerceram influência no tocante a organização política imaginada no período posterior à emancipação. Quanto ao último, em especial, percebe-se o entusiasmo com que os mineiros acolheram sua defesa do direito de rebelião e à liberdade das nações americanas. Era um autor proibido em Portugal desde 1773, por seus ataques contra o colonialismo tradicional dos países ibéricos, mas chegou relativamente cedo ao Brasil, influenciando os inconfidentes mineiros em fins da década 1780, e posteriormente os baianos de 1798.

A inconfidência que não chegou a eclodir contava, portanto, com uma diversidade de interesses que iam além da decretação ou não da derrama. Afirma Maxwell, ainda em A devassa da devassa: "Subjacente ao confronto dos grupos de interesse, havia o antagonismo mais profundo entre uma sociedade que cada vez mais adquiria consciência de si e autoconfiança (em um ambiente econômico estimulador de auto-suficiência) e a metrópole interessada na conservação de mercados e no resguardo de um vital produtor de pedras preciosas, ouro e receitas". O que de forma alguma significa dizer que o movimento possuía contornos populares, ou que estava disseminado entre a população de um modo geral. De fato, seria altamente improvável que, caso tivesse ocorrido, a revolta tivesse incorporado às suas lideranças aqueles que trabalhavam nos campos e minas das Gerais, ou vagavam pelas ruas de Vila Rica. A adesão da população livre era antes uma questão de tática de guerra. Bom exemplo desse elitismo é dado pela posição dos sublevados em relação à escravidão, condenada inclusive por Raynal: à aparente exceção de Inácio de Alvarenga e Carlos Correia Toledo, todos os participantes do movimento defendiam a manutenção da escravidão, em maior ou menor medida. A despeito da ampliação de horizontes representada pelos planos dos inconfidentes, a revolta ainda se encontrava circunscrita aos homens de posse, posição ou cultura.

A revolta que nunca ocorreu
A chegada do visconde de Barbacena, em 1788, logo desfez as ilusões que porventura houvessem nascido da partida de Cunha Meneses, governador anterior que ganhou notoriedade por defender abertamente os interesses dos seus protegidos portugueses e por perseguir, ainda com mais desenvoltura, os que se colocavam no caminho.
Barbacena chegava com ordens expressas de fazer valer o alvará de 1785 (que limitava a produção nas colônias de bens para consumo interno), coibir os "abusos" e aplicar com rigidez os preceitos da política econômica neomercantilista adotada por Lisboa. Em termos específicos, isto significava encerrar determinados contratos e cobrar dos contratadores o que era devido, reorganizar a estrutura administrativa e, principalmente, cobrar impostos atrasados, enfatizando o alvará de 1750 que regulamentava a cobrança do quinto sobre o ouro produzido, cobrança esta que há muito se encontrava atrasada, o que permitia o lançamento da chamada derrama.

A infame derrama era um confisco generalizado que incidia sobre quem quer que tivesse posses que pudessem ser confiscadas. De acordo com as regras vigentes, o povo de Minas deveria pagar 100 arrobas anuais de ouro à Coroa (supostamente um cálculo médio), e caso tal meta não fosse atingida, o acúmulo se daria até que o pagamento fosse integralmente realizado. A quota deveria ser completada com todo o ouro encontrado nas fundições e se mesmo assim não se chegasse à quantidade devida, o povo deveria completar a diferença através da cobrança de um imposto per capita -  a maldita derrama.

Apesar da severidade das determinações recebidas, Barbacena havia sido instruído pela própria rainha a analisar primeiramente as condições reais da capitania e até que ponto ela poderia suportar as exigências colocadas. Barbacena cumpriu todas as ordens com firmeza: transmitiu as determinações de Lisboa, fez com que contratos fossem revistos, implementou as medidas que limitariam uma produção local que pudesse colocar Minas Gerais em posição autônoma e anunciou a derrama. Entretanto, e seguindo as instruções da rainha, passou a observar de perto as condições da capitania, e o que viu acabou por levá-lo a concluir, meses depois, aquilo que a ambição e o preconceito da metrópole mascaravam: a produção de ouro se encontrava de fato em franca decadência e impor a derrama seria jogar lenha em uma fogueira já acesa pela crise, pelas medidas que limitavam a diversificação da produção e pela influência de ideias e acontecimentos externos. O jovem governador percebeu que intensificar a opressão que se fazia presente sobre os povos de Minas poderia ter consequências desastrosas em uma região que jamais tendera para a paz e a obediência.

Barbacena não se enganava. Em 1788 muitos homens ilustres - pessoas que ocupavam cargos administrativos, inclusive - já se organizavam para um levante. Até hoje, dois séculos depois do ocorrido, os projetos e a organização concretos concebidos por tais homens permanecem obscuros. Sabe-se que algumas tarefas foram distribuídas: o cônego Luís Vieira e Cláudio Manoel da Costa, por exemplo, ocupar-se-iam do arcabouço jurídico do futuro Estado; Domingos de Abreu apoiaria com suporte material, armas e munição; Inácio de Alvarenga Peixoto, Oliveira Rolim e Carlos Correia Toledo responsabilizaram-se por articulações com forças de apoio de outras capitanias; José Álvares Maciel contribuiria na elaboração de leis e no planejamento estratégico; Joaquim da Silva Xavier - Tiradentes - era um formidável propagandista, além de, juntamente com Freire de Andrada, organizaria a ofensiva militar. Este grupo, acrescido de outros indivíduos, reuniu-se algumas vezes durante o ano de 1788 e seus planos ganharam mais firmeza à medida que se tornava plausível a implementação das ordens de Barbacena. De uma coisa os revoltosos estavam certos: seria necessário um evento de proporções catastróficas para mobilizar o grosso da população no levante que eles planejavam conduzir. Tal evento já tinha nome e data marcada para ocorrer: a derrama de fevereiro de 1789.

Qual seria de fato a pretensão dos inconfidentes? Até onde, geográfica e politicamente falando, iam seus planos? Qual era, concretamente, a extensão da revolta?
Como já comentado, o grupo de inconfidentes não possuía uma unidade ideológica sólida. Havia divergências significativas entre eles e a maioria não tinha muita clareza a respeito do que fazer caso o movimento fosse vitorioso. Diziam pretender uma "república". Mas tal afirmação, há dois séculos, não carregava o mesmo significado que carrega hoje em dia. Referências a governos republicanos podiam muito bem expressar o desejo de viver sob um governo justo, em que o povo sentisse que os seus direitos naturais eram respeitados, e que seu soberano fizesse o melhor pelo seu povo. No contexto das discussões em torno de formas de governo, modelos de Estado, origens da soberania e secularização dos negócios públicos, é plausível que os inconfidentes, referindo-se à república não estivessem falando de uma república nos moldes de Rousseau (aliás ausente das bibliotecas dos revoltosos) e muito menos na republica norte-americana, baseada na democracia representativa. Muito possivelmente aspiravam a um governo justo, em que a "flor da terra" assumisse o comando para melhor responder aos anseios do povo local. A existência de uma constituição escrita, a limitar certos poderes do monarca e tornar o poder municipal das câmaras maior também parece ter sido uma das suas preocupações centrais.

O mesmo pode-se dizer da extensão do separatismo dos inconfidentes. Os seus planos pareciam incluir outras capitanias, outras regiões: esperava-se - possivelmente de forma pouco realista - o apoio do Rio de Janeiro, São Paulo e, talvez, Bahia. É certo que havia um número de contatos estabelecidos com comerciantes do Rio de Janeiro, com algumas famílias influentes de São Paulo. Contudo, jamais surgiu uma prova concreta de que tais indivíduos estivessem de fato integrados à revolta que se planejava. Ao menos, não de forma substancial.
Pouco realista também parece ser a ideia de haver um seguro e maciço apoio externo à causa de Minas. As relatadas conversas com Thomas Jefferson, herói da independência norte-americana, e com outros liberais europeus muito provavelmente mostraram-se apenas e exatamente isso: conversas. Embora faça parte do mito criado em torno da inconfidência, não há evidências concretas de que a sua abrangência tenha ido muito além da própria região das minas.

O levante jamais ocorreu. E muito provavelmente, tal fato não se deve à denúncia realizada por Joaquim Silvério dos Reis em meados de março de 1789. Na verdade, a derrama anunciada para fevereiro não aconteceu, e no início de março do mesmo ano o governador anunciou às câmaras municipais que a cobrança fora suspensa.
Àquela altura, a sucessão de eventos se tornou um pouco obscura. O relato impreciso do governador de Minas Gerais acabou por gerar dúvidas e interpretações equivocadas. Tudo indica que Barbacena não suspendeu a derrama por causa da denúncia, já que esta só ocorreu em meados de março, quando já havia indícios concretos de que a cobrança não ocorreria. Na verdade, existem indícios concretos também de que os próprios inconfidentes, sabendo das intenções de Barbacena, se desmobilizaram no início de 1789, por perceberem que sem um estopim o movimento não teria forças para levantar a população de toda a região.

É provável, inclusive, que os denunciantes do movimento, o principal deles sendo Silvério dos Reis, tenham optado por trair seus companheiros em resultado dessa desmobilização. De fato, sem a decretação da derrama e consequente eclosão do movimento, contratadores como Silvério dos Reis ver-se-iam em maus lençóis, já que, com ou sem derrama, a sua dívida com a Coroa ainda seria cobrada, e sem a revolta perdia-se a perspectiva de não mais ter que prestar contas à metrópole.

Após a denúncia de Silvério dos Reis - que esperava receber, em troca, o perdão das suas vultosas dívidas - o governador passa a agir em segredo. Em vez de instaurar de imediato um processo contra os acusados de conspirar contra Portugal, inicia investigações por conta própria e utiliza a possível revolta como justificativa para a não-instauração da derrama. Esta inversão não foi a única manipulação de informação que Barbacena faria, pois o fato de ter adiado a derrama, e também a sua ação reticente no início de todo o processo eram atitudes que demandavam uma justificativa convincente. Em carta escrita ao vice-rei no final de março de 1789, Barbacena afirmava encontrar-se em posição delicada, sem tropas suficientes para conter um possível movimento e receoso de que qualquer movimento imprudente pudesse desencadear o motim. O governador de Minas aconselhava discrição, que não se fizesse grande estardalhaço em torno do ocorrido e que não pesasse sobre os acusados a suspeita de conspiração para levante, já que tal ato poderia acirrar os ânimos na capitania e colocar o povo contra o governo.

A reação do vice-rei d. Luis de Vasconcelos e Sousa veio apenas depois que o próprio Silvério dos Reis foi enviado ao Rio de Janeiro com a denúncia por escrito e recomendações de Barbacena, que era seu sobrinho. E sua reação não foi a esperada pelo governador de Minas: Silvério foi preso - por presumida participação no levante abortado - e uma devassa instaurada, exatamente o que Barbacena buscava evitar.

A partir daí os inconfidentes vão caindo um a um, inclusive os que integravam um círculo mais próximo ao de Barbacena, que passa a agir com rapidez suficiente para que sua integridade e competência não fossem colocadas em questão. O inquérito em Minas, contudo, ainda demorou quase um mês para ser instaurado, e os eventos ocorridos ainda em Vila Rica - sendo a misteriosa morte de Cláudio Manoel da Costa na prisão, pouco depois de interrogado, o mais notório deles - lançam mais dúvidas do que fornecem resposta para questões ainda pendentes a respeito da inconfidência.

Degredo, morte. E a criação de um mártir
Depois de inicialmente negar sequer a existência de uma conspiração - como de resto todos os inconfidentes fizeram - Tiradentes admite sua culpa e diz ser o único responsável. Juntamente com outros onze companheiros recebeu a sentença de morte. Contudo, somente Joaquim José da Silva Xavier não recebeu o indulto real que transformava a pena de morte em degredo. O motivo para tal permanece um mistério, embora se afirme que Tiradentes encontrava-se em posição socioeconômica mais frágil em relação aos outros inconfidentes, e esta seria a razão para que a culpa recaísse sobre ele. O que se pode afirmar com certeza é que o alferes tinha uma personalidade ousada, demasiadamente loquaz - não sem razão, o maior dos propagandistas do movimento, segundo seus próprios companheiros, chegando às raias da indiscrição - e de fato chamou para si a responsabilidade pelo movimento, enquanto se achava preso.

As sentenças finais foram emitidas já no início dos anos de 1790. Tiradentes morreu na forca, no Rio de Janeiro, em abril de 1792, e o seu nome, assim como todo o movimento do qual fez parte permaneceriam em um limbo por décadas. Entretanto, a partir da repressão aos revoltosos, iniciou-se, por parte de Portugal, um movimento no sentido de relaxar algumas das observâncias estritas, rígidas, contra as quais os próprios inconfidentes se colocavam. No fundo, foi uma resposta mesmo à crise estrutural por que passava o colonialismo de então, cuja razão de ser já se esgotava. Quando d. Rodrigo de Souza Coutinho, o conde de Linhares, foi nomeado ministro do Ultramar em 1796, a crise do sistema colonial e a influência de ideias iluministas sobre estes encontravam-se no centro das preocupações de d. João, já então à frente do governo: entre 1786 e 1794, Goa (Índia), Minas Gerais e Rio de Janeiro testemunharam levantes desse tipo. A renovação do gabinete realizada pelo príncipe regente é consequencia dessa cadeia de eventos.

Não é a toa que uma das primeiras medidas de d. Rodrigo foi realizar um levantamento minucioso sobre a colônia portuguesa na América, o que possibilitou que elaborasse um projeto para tornar mais rentável a exploração, sem que os colonos fossem por demais oprimidos pela cobrança de taxas pouco razoáveis que potencializavam o risco de levantes. Dom Rodrigo incentivou a agricultura, transferiu a Casa da Moeda do Rio de Janeiro para Minas Gerais, propôs transformações na administração das minas e na política fiscal, em uma tentativa de introduzir métodos mais técnicos de exploração e administração das minas. Várias destas medidas faziam parte das aspirações dos revoltosos, não apenas de Minas em 1789, mas de outros levantes subsequentes na colônia chamada Brasil.

O fim do pacto colonial era apenas uma questão de tempo. Em 1882 os ativistas republicanos fundaram o Clube Tiradentes. Embora à época da Independência, em 1822, houvesse quem erguesse sua voz para reapresentar Silva Xavier e seus companheiros como precursores da nação brasileira, a partir da regência o movimento de Minas passa a ser visto por muitos historiadores com olhos ainda conservadores, e descrito como separatista, a ameaçar a unidade nacional. Apenas com o crescimento do movimento republicano a inconfidência se torna símbolo nacional, e seu único militante a morrer na forca, mártir da Independência.

A partir de então se observa a crescente mitificação - ou, mistificação? - de Tiradentes, da inconfidência, e até dos mineiros. A despeito das limitações inevitáveis, dados o tempo e o local em que o levante foi planejado, o pioneirismo dos rebeldes mineiros mostrou-se marco fundamental para a percepção da possibilidade mesma de uma existência que não dependesse intrinsecamente de uma nação europeia. Ao final, tornaram-se símbolo de ideais e de uma nação que não poderiam ter concebido, mas de todo modo, estabeleceram uma série de marcos muito afinados com o nascente Brasil republicano: um movimento contra a franca extorsão de riquezas por parte da Coroa; um herói em certa medida popular a assumir a culpa pela sedição, que viria a morrer na forca no mesmo dia do descobrimento do Brasil pelos portugueses; influência de ideias modernas em contraponto a um suposto obscurantismo que sustentava a monarquia portuguesa. Movimento elitista que jamais foi deflagrado, ideologicamente inconsistente e de alcance geográfico impreciso, passou a representar o ideal republicano de nação brasileira, e seu militante mais audaz, nosso mártir maior.

1 LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores - análise da estrutura populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). São Paulo: IPE/USP, 1981.
2 LUNA, Francisco Vidal. Economia e sociedade em Minas Gerais (período colonial). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 24, p 33-44, 1982.
3 FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope - história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-1789. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
4 Citado por MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
5 FURTADO, João Pinto, op. cit.

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