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Recebimento de escravos para o Arsenal da Marinha

Publicado: Segunda, 25 de Junho de 2018, 12h46 | Última atualização em Sexta, 20 de Agosto de 2021, 14h59

Ofício do major general da Marinha, Inácio da Costa Quintela, para Francisco Antônio da Silva Pacheco, na qual informa que os quarenta escravos do rei d. João VI chegados das ilhas de São Tomé e Príncipe estavam destinados ao serviço no Arsenal Real da Marinha. Manda que sejam encaminhados à Intendência da Marinha para que assentem praça.

 

Conjunto documental: Inspeção do Arsenal da Corte
Notação: VM-21
Data-limite: 1818-1819
Título do fundo ou coleção: Série Marinha
Código do fundo: AX
Argumento de pesquisa: Arsenal Real da Marinha
Data do documento: 11 de janeiro de 1819
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): doc. n° 5

            

Previno a vossa senhoria, para sua inteligência, que os quarenta escravos[1] de sua majestade, chegados proximamente das Ilhas de São Tomé e Príncipe[2] no bergantim[3] Boaventura, são destinados para o serviço do Arsenal Real da Marinha[4], e por consequência se lhes deve passar mostra pela Intendência da Marinha[5], para se lhes assentar praça na Contadoria, a fim de se notarem todas as alterações, que para o futuro ocorrerem.

Deus Guarde a vossa senhoria. Quartel general da Marinha em 11 de janeiro de 1819.

Inácio da Costa Quintela[6]

Major general

Senhor Francisco Antônio da Silva Pacheco[7]

 

[1] ESCRAVOS [AFRICANOS]: pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[2] SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE: arquipélago situado no golfo da Guiné, na costa oeste da África, cuja capital é São Tomé. Abrange, além das duas ilhas que lhe dão o nome, alguns ilhéus adjacentes que foram descobertos pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pedro Escobar em 1471. Dedicando-se inicialmente à cultura da cana-de-açúcar, cuja produção entrou em declínio com o crescimento da atividade açucareira no Brasil, o arquipélago tornou-se um importante entreposto de escravos no período colonial. Essa atividade somente foi encerrada em 1876, quando foi decretada a abolição da escravidão nas ilhas.

[3] BERGANTIM: os bergantins eram navios de remos de traça, muito rápidos e de fácil manobra. Eram equipados com dez a dezenove bancos corridos de bordo a bordo. Envergavam tanto vela redonda quanto latina com um ou dois mastros. Nos primeiros tempos da presença portuguesa no Oriente realizavam as missões de contato, reconhecimento e transporte. Prestavam-se ainda a servir as fortalezas mais importantes, particularmente nas zonas onde a presença naval não era permanente. O bergantim era também uma embarcação de ostentação, favorito de monarcas e grandes senhores.

[4] ARSENAL REAL DA MARINHA: o Arsenal do Rio de Janeiro, fundado em 1763, ano da transferência da capital da colônia pelo vice-rei conde da Cunha, tinha como função reparar e reformar os navios portugueses que vinham ao Brasil. Em 1808, com a chegada da Corte, passa a se chamar Arsenal Real da Marinha, ou Arsenal da Corte, abrigando todos os órgãos da Marinha portuguesa, que também se transfere para a nova sede do Império. Embora a Armada se encontrasse em um momento de dificuldades, o Arsenal foi ampliado para poder prestar melhor apoio à esquadra portuguesa e aos navios estrangeiros que aportavam no Rio de Janeiro, principalmente depois da abertura dos portos e do aumento do volume de comércio. O espaço do Arsenal compreendia as oficinas, os estaleiros particulares e o cais, além das instalações ao pé do mosteiro de São Bento. Os arsenais faziam parte das intendências da Marinha de suas capitanias, mas as administrações eram separadas, havendo um intendente de Marinha e um cargo de inspetor do Arsenal, que se reportava diretamente ao almirante general da Marinha, o infante d. Pedro Carlos. Ao inspetor cabia a administração do Arsenal, participar das operações de navios realizadas nos portos, efetuar obras de melhoramento, bem como cuidar da ordem e do policiamento das áreas portuárias, encaminhar e administrar prisões e recrutar praças.

[5]  INTENDÊNCIA DA MARINHA E ARMAZÉNS GERAIS: criada em 1770, na Bahia, pelo primeiro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, era o órgão responsável pela direção dos Arsenais de Marinha e dos Armazéns Reais. O intendente seria o encarregado da gestão e provimento dos materiais e munição de guerra, e também do abastecimento de provisões e fardamento para os praças a serviço do Arsenal, que trabalhassem nos portos, cais e navios. Também cabia ao intendente a fiscalização e a execução de trabalhos navais, as construções e obras no arsenal, construção de navios, e da visitação dos bosques da Marinha para vistoria dos cortes de madeira. O posto incluía, ainda, a responsabilidade pelas matrículas dos civis e militares empregados a serviço da Marinha e pelos pagamentos. Depois da transferência da Corte para o Brasil e com a criação do cargo de Inspetor do Arsenal da Marinha, o intendente teve suas funções restritas à administração de pessoal e das finanças da Armada. Era uma das maiores autoridades da Marinha, respondendo apenas ao ministro e ao almirante general.

[6] QUINTELA, [MANUEL] INÁCIO DA COSTA (1763-1838): vice-almirante da Armada portuguesa, grã-cruz da ordem da Torre e Espada, Quintela ingressou na Academia da Marinha, tendo concluído o curso em 1791. Foi rapidamente promovido na carreira militar, chegando, em 1801, a comandar uma corveta portuguesa em batalha vitoriosa contra uma fragata francesa. Comandante da nau Afonso, integrou a esquadra que trouxe a família real e a Corte portuguesa para o Brasil em 1807. Chegou ao posto de major-general pouco antes de assumir, em 1821, o cargo de ministro do Reino e da Justiça de d. João VI. Quando retornou a Portugal com a corte e o rei, passou a ocupar a pasta da Marinha. Retirou-se da vida pública em 1826, dedicando-se à poesia, à tradução de textos clássicos, e à redação de uma obra intitulada Anais da marinha portuguesa, publicada postumamente em 1839 e 1840 pela Academia Real de Ciências de Lisboa, da qual foi membro.

[7] PACHECO, FRANCISCO ANTÔNIO DA SILVA: era capitão de mar e guerra da Armada Real, cavaleiro da ordem da Torre e Espada e ocupou o cargo de Inspetor do Arsenal da Marinha.

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