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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 19h04
Parati

Viviane Gouvea
Mestre em Ciência Política - UFRJ
Pesquisadora - Arquivo Nacional 

No final do século XVI, Martim Correia de Sá, filho do então governador-geral Salvador de Sá, desembarca em uma praia remota no acidentado litoral do que é hoje o Sul Fluminense. Seguindo por uma trilha aberta pelos nativos, ele parte em uma expedição formada por centenas de portugueses, com a missão de escravizar indígenas na região até o vale do rio Paraíba. Uma enorme muralha interpunha-se entre essas praias e o interior - o sertão -, coberta por florestas densas e úmidas que se tornavam mais frias à medida que avançavam pelo interior.

Esta serra ganharia, posteriormente, o nome de serra do Mar, à qual se segue a serra da Mantiqueira. Por muitos anos essas montanhas assombraram os exploradores europeus, por serem íngremes, cobertas por matas muito fechadas e sombrias, habitadas por gente e animais que lhes eram estranhos. Ao pé desta muralha foi fundado um povoado que passou a servir de base para a ocupação da região, a partir do início do século XVII.

Embora não haja consenso a respeito, estima-se que a primeira base do povoado tenha sido uma capela em homenagem a São Roque, fundada bem antes da expedição de Martim de Sá, ainda por volta de 1540. Já na primeira década do século XVII chegam os primeiros sesmeiros da capitania de São Vicente/ Itanhaém e ali se instalam definitivamente. Entre as décadas de 1630 e 1640, uma nova igreja é fundada em uma gleba doada pela sesmeira Maria Jacome de Melo, em um local mais ao sul do assentamento original (no atual morro do Forte), e esta acaba sendo o marco de fundação do povoado, que assim ganhou oficialmente uma paróquia.

Seja como for, desde então os viajantes que vinham da cidade do Rio de Janeiro e partiam para explorar o interior passaram a utilizar a trilha aberta por indígenas, que subia a partir desse povoado, ganhava a serra do Facão e Cunha e, posteriormente, alcançava o vale do Paraíba. Já a partir do interior da capitania de São Paulo, trilhas abertas ou por guaianases e goitacases, ou por bandeirantes paulistas, permitiam o avanço interior adentro. Posteriormente, com a descoberta de ouro na região de Ribeirão de Ouro Preto, do Ribeirão das Mortes e do Rio das Velhas, começa a corrida à região e a abertura de uma comunicação terrestre que unisse as minas a algum porto de escoamento tornou-se premente. Mais do que um simples acesso, fez-se necessário um caminho oficial que permitisse o controle do fluxo de bens que entravam e saíam da região das minas.[1]

Foi pouco antes das primeiras descobertas de ouro no interior que a confusa fundação oficial da vila de Parati (até então povoado) ocorreu. Azevedo Pizarro cita, em 1822, um documento de 1661 que retrata esse processo. O documento, assinado pelos "oficiais da câmara da vila de Angra dos Reis da Ilha Grande", questiona a instalação de um pelourinho no povoado então chamado vila de Nossa Senhora dos Remédios, oficialmente subordinado à vila de Angra, por parte do representante desta, elevando o à categoria de vila. A ação foi levada a cabo por antigos moradores da localidade nas figuras do capitão Domingos Gonçalves de Abreu e do capitão-mor de São Vicente/Itanhaém (capitania à qual os distritos de Parati como da vila de Angra se encontravam subordinados) Jorge Fernandes da Fonseca, e à revelia das instâncias a quem supostamente cabia uma decisão dessa monta, ou seja, a própria câmara da vila de Angra. O protesto caiu no vazio. A vila de Nossa Senhora dos Remédios de Parati passou a existir oficialmente em 1667, com a aprovação do rei d. Afonso VI da sua criação. Ela foi consequência em grande parte da pressão exercida pelos próprios moradores que - fato até então inédito na colônia -, sob a liderança dos já citados capitães, se rebelaram e exigiram a elevação do povoado à categoria de vila, independente de Angra dos Reis, ainda em 1660, quando foi erguido o pelourinho para que se fizesse a justiça e se cumprissem as leis;[2]

No começo do século seguinte `XVII] forão alguns deles assentar vivenda na falda d'uma alta serra na extrema sul da Bahia a que o almirante Martim Affonse de Souza posera o nome de Angra dos Reis, edificarão uma capela de que era padroeiro São Roque, e ali viverão um verdadeiro estado de independência a ponto que o ouvidor geral João Velho de Azevedo, no decurso do ano de 1654, representava ao governo que aquela povoação, onde oito anos antes se havia edificado uma nova igreja da invocação de Nossa Senhora dos Remédios, se achava sem justiças, nem câmara, e era um valhacouto de malfeitores. À requerimento de Domingos Gonçalves de Abreu, capitão da dita povoação, veio a Ella em 1660 Jorge Fernandes da Fonseca, capitão mor da capitania de São Vicente, e levantou um pelourinho, e a elevou à categoria de Villa com o nome de Paratii.[3]

A elevação à vila foi consequência não apenas da pressão local, mas também da existência de um caminho fundamental que levava ao interior, onde àquela altura já se sabia haver ouro. Pela posição estratégica da vila, a falta de regulamentação e controle oficiais poderia se mostrar extremamente problemática, e mesmo depois de criadas a câmara e a cadeia, as queixas em torno de atividades de contrabandistas na região de Parati e em toda a baía de Angra dos Reis jamais cessaram.

As antigas trilhas uniam-se a novos caminhos que permitiam uma ligação, ainda que dificultosa, entre a vila de São Paulo de Piratininga, o Rio de Janeiro e a região das minas, e incluía outras cidades e povoações do vale do Paraíba. A viagem do Rio para as minas podia levar até três meses, e o trecho entre Parati e Sepetiba tinha que ser coberto por mar. Nesse momento, uma viagem já perigosa tornava-se ainda pior com a ameaça de saqueadores, piratas, além de condições variáveis de navegação. Documentação encontrada no fundo Secretaria de Estado do Brasil do Arquivo Nacional, em especial na correspondência do vice-rei com outras autoridades, reafirma a atuação intensa de contrabandistas e corsários espanhóis na região, incluindo Angra, Ilha Grande e Parati.

A maior parte do caminho por terra constituía-se de picadas e trilhas abertas por indígenas e exploradores, sem ingerência oficial. O fato passou a ter maior relevância depois da descoberta da região das minas, quando a Coroa imediatamente passou a controlar os caminhos pelos quais o ouro passaria. Em uma tentativa de minimizar esse descontrole, a metrópole determinou, no início do século XVIII, que todo o ouro vindo da região das minas fosse embarcado em Parati, e em 1703 surge a Casa de Registro de Parati. Também em 1703 uma carta régia determinava a criação de uma trincheira para defesa do porto da vila. As dificuldades de vigilância em relação aos desvios do ouro nesse caminho são descritas em vários documentos do fundo Secretaria de Estado do Brasil, em especial por meio de informações prestadas ao provedor do registro Manuel Dias de Meneses. Na Casa de Registro de Parati junto ao pé da serra, por exemplo, havia apenas um sargento, dois soldados e um escrivão para fazer a cobrança do quinto.

A rota do ouro necessariamente teria que ser uma rota oficial, sob controle da Coroa. O caminho novo foi iniciativa de Arthur de Sá Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro, que nos últimos anos do século XVII contratou Garcia Rodrigues, tarimbado sertanista, filho do bandeirante Fernão Dias Paes para realizar o projeto.. O novo traçado dispensava a passagem por Parati e a consequente travessia por mar até as cercanias do Rio de Janeiro. Em 1700 estava pronta a picada para pedestres, e durante os anos seguintes o caminho foi aprimorado para permitir a passagem de animais de carga. Mais tarde, entre 1720 e 1725, um trecho foi alterado no novo caminho, introduzindo uma variante que passava pela serra da Estrela e pela atual cidade de] Petrópolis, encontrando o caminho original na região do atual município de Paraíba do Sul. Aberto pelo oficial Bernardo Proença, o trecho acabou sendo incorporado definitivamente à Estrada Real. A viagem então poderia ser feita em cerca de dez dias, e não havia mais a necessidade de passar por Parati. Logo, o uso do velho caminho tornou-se proibido como forma de coibir o contrabando (os descaminhos). Documentos também da Secretaria de Estado do Brasil mostram que em virtude da pressão exercida pelos habitantes de ambas as regiões (em Minas, porque a utilização de apenas um caminho dificultava ainda mais o já complicado abastecimento de alimentos; e em Parati, pelos prejuízos advindos da sua exclusão da rota de comércio) o caminho velho seria reaberto, embora apenas para ida - o ouro teria, de qualquer forma, que sair da região de extração pelo caminho novo. Um requerimento de comerciantes ao governador do Rio de Janeiro, datado de 1710, solicita permissão para chegar à região das minas através do caminho de Parati, devido à falta de alimentos do caminho novo. A petição foi concedida.

Em 1720, a vila de Nossa Senhora dos Remédios de Parati perde a Casa de Fundição, e a capitania de São Paulo e Rio do Ouro é desmembrada, criando-se a capitania de São Paulo. No processo, Parati acaba incorporada à nova capitania. Contudo, o movimento não deu bons resultados: pelo relato do então governador do Rio de Janeiro, Luiz Vahia Monteiro, percebe-se a dificuldade de vigiar e controlar o que acontecia nas redondezas, posto que o governador, responsável pela vila de Angra dos Reis, nada podia fazer contra os malfeitores que conseguissem se evadir para território fora de sua jurisdição. Além disso, o ouvidor do Rio de Janeiro continuava a exercer jurisdição sobre Parati, embora em termos civis a vila pertencesse a São Paulo. A situação, incômoda aos habitantes da região e especialmente ao governo do Rio de Janeiro, resultou no retorno de Parati à alçada da capitania do Rio de Janeiro, em 1727.

A importância da atividade mineradora para o desenvolvimento da região tende a ser redimensionada nos dias de hoje: sua influência direta durou pouco tempo, em um período em que o fluxo ainda não se tornara tão intenso. Embora a atividade tenha impulsionado o desenvolvimento inicial da região e do seu porto, foi na verdade a sua condição de distribuidor e mesmo produtor de gêneros de primeira necessidade, voltados para o mercado da região das minas e, já no século XIX, do vale do Paraíba, que dinamizou a economia da região.

A vila sobreviveu ao chamado ciclo do ouro, apesar de ter diminuído de importância. Em dezembro de 1813 foi elevada à categoria de condado, e em 1822 "constatou-se a passagem pela cidade de 160.914 cabeças de homens e animais": eram riquezas das Gerais, no começo, e, posteriormente, o café do vale do Paraíba sendo embarcados para a Europa, na medida em que escravos, especiarias e, sobretudo, o luxo europeu chegavam para os barões do café. No ano de 1844 Parati torna-se cidade.[4]

A produção de aguardente e de açúcar permaneceu como o carro-chefe da economia local até meados do século XIX, produtos estes que eram comercializados através da antiga rota do ouro. A atividade cafeeira, também no século XIX, no vale do Paraíba deu novo impulso ao comércio na região, em especial às atividades de exportação e tráfico ilegal de escravos. Mas a chegada de uma ferrovia em 1870, ligando São Paulo ao Rio de Janeiro através do vale do Paraíba, tornou o antigo caminho de burros completamente obsoleto. Após a abolição da escravidão e a proclamação da República, a cidade caiu em um isolamento do qual sairia apenas na segunda metade do século XX.

Paradoxalmente, esse isolamento de mais de um século permitiu que a cidade, hoje considerada monumento histórico nacional, se apresentasse aos olhos dos viajantes do século XXI como um cenário colorido de uma vila colonial. Predominam o azul e o branco, possivelmente consequência da influência maçom na região, responsável ainda, segundo indícios, por diversos padrões arquitetônicos e urbanísticos da cidade.[5]

[1] Para maiores detalhes acerca da utilização inicial do antigo caminho dos guaianases e posterior abertura do caminho novo, consultar Os caminhos do ouro e a estrada real `Os caminhos do ouro e a estrada real. COSTA, Antônio Gilberto (org.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005`, e Estrada real: o presente ilumina o passado `Estrada Real: o presente ilumina o passado = le présent éclaire le passé. Brasil: Liberato Produções, 2008].
[2] A obra Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdição do vice-rei do Estado do Brasil, de Azevedo Pizarro e Araújo, apresenta o histórico do processo de ocupação e também de autonomia de Parati. ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro. MORAES, Rubens Borba de (Prefaciador). Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1945-1948. O trabalho de José Diuner de Mello - Paraty: notas históricas, Instituto Histórico e Artístico de Paraty (1994) -, mais recente, também apresenta algumas informações valiosas.
[3] J.C.R Milliet de Saint Adolphe, Diccionario geographico historico e descriptivo do Império do Brazil. Paris, 1863. In: Tricentenário de Parati: Notícias históricas. Publicação do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 1960.
[4] Informações do site oficial da cidade; disponível em
[5] Sobre a presença da maçonaria em Parati, FRANÇA, Antônio Carlos. Histórias e Crendices sobre os Maçons nos Caminhos e Descaminhos do Ouro. In: XVII Simpósio de História do Vale do Paraíba, 2003, Paraty. Jornal do Instituto de Estudos Valeparaibano, 2003. FRANÇA, Antônio Carlos. Paraty, uma relíquia da Maçonaria do Brasil. In: XV Simpósio de História do Vale do Paraíba, 2000, Quatis-RJ. Anais do XV Simpósio de História do Vale do Paraíba. Quatis-RJ : Prefeitura Municipal de Quatis, 2000. v. 1. p. 28-29. Além do artigo Um breve olhar sobre a maçonaria, de Sérgio André Barros Melo Carvalho, in Cadernos do CNFL da UERJ, vol 11, n. 5, agosto de 2007.

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