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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 19h19
Descobertas

Viviane Gouvea
Mestre em Ciência Política
Pesquisadora - Arquivo Nacional

Única na história é essa ideia de isolar uma região, na qual toda a vida civil foi subordinada à exploração de um bem exclusivo da Coroa.

(Spix & Martius. Viagem pelo Brasil)

A incessante busca por ouro empreendida pelas nações europeias no limiar da Idade Moderna ajudou a impulsionar o seu movimento de expansão pelo globo, e tem suas raízes não apenas no tradicional valor imputado ao mineral, mas também no cenário econômico que então se configurava. A riqueza das nações, que em diferentes épocas seria encarnada pela agricultura ou alguma outra atividade, nos séculos XV e XVI incorporava-se na quantidade de metal precioso (ouro e prata) acumulada pela Coroa, seguindo-se os preceitos do bulionismo, uma das faces do mercantilismo da época, seguido em especial por Portugal e Espanha, que pregava pura e simplesmente o entesouramento de riquezas como forma de prosperidade.

Portugal sempre sonhou em encontrar metais ou pedras preciosas em suas terras americanas. Durante quase dois séculos, as esperanças foram frustradas, apesar de descobertas incipientes nos atuais estados de São Paulo e Paraná`1`, até que a existência substancial de ouro começou a se fazer anunciar onde atualmente se encontra o estado de Minas Gerais, na região de Sabará, no rio das Velhas, em 1695. Acredita-se que o bandeirante paulista Borba Gato, ou um grupo a ele ligado, tenha sido responsável pela descoberta.[2]

A região é inóspita, pouco conhecida dos europeus, explorada somente por grupos de bandeirantes paulistas cuja atividade principal consistia em desbravar sertões em busca de riquezas e indígenas para escravizar. Mas a descoberta de ouro atrai milhares de pessoas. De acordo com Bóris Fausto, "durante os primeiros sessenta anos do século XVIII, chegaram de Portugal e das ilhas do Atlântico cerca de seiscentas mil pessoas, em média anual de oito a dez mil, gente da mais variada condição, desde pequenos proprietários, padres, comerciantes, até prostitutas e aventureiros".[3] Durante as décadas seguintes, ocorreria a extração do mineral em quantidade nunca vista na Europa. Os problemas financeiros de Portugal foram, se não sanados, mitigados. Em constante débito para com a Inglaterra, sua aliada, com quem mantinha relações comerciais francamente desfavoráveis, Portugal acabou por deixar a maior parte do ouro brasileiro atravessar o canal da Mancha ou migrar para os bancos de outros países europeus: Holanda, França, cidades italianas.

Em fins da década de 1720, a Coroa portuguesa recebe mais uma boa notícia: diamantes são encontrados, e em abundância, na sua colônia americana, na região de Serro do Frio, norte de Minas Gerais. A importância econômica da extração de diamantes talvez tenha sido menor, mas não o foram os cuidados que a administração metropolitana dedicava à atividade.

Na verdade, as pedras começaram a circular na região em 1714, quando o faiscador Francisco Machado da Silva encontra, casualmente, um cristal excepcionalmente duro. Posteriormente ele encontraria outras semelhantes, dadas de presente a José Leitão e outras ao capitão de dragões José de Almeida e Vasconcelos. Este último as mandou lapidar e, mantendo em segredo o máximo que podia a sua nova atividade, dedicou-se a explorar as pedras.[4] No entanto, os diamantes começaram a brotar em abundância das lavras que se supunham auríferas da região e, em 1721, Bernardo da Fonseca Lobo, garimpando suas lavras em busca de ouro, depara-se com as pedras. Até então, diamantes eram encontrados apenas na Ásia, mais precisamente, Índia e Bornéu,[5] e não por acaso havia algumas dúvidas quanto à autenticidade das pedras, dúvidas estas que não arrefeceram o ânimo de quem se dispunha a explorá-las. Com o passar dos anos, e apesar de um certo descaso do próprio Fonseca Lobo, os diamantes começaram a ser negociadas na região.[6] Em fins dos anos 1720, já havia um fluxo de aventureiros em direção a Minas para tentar a sorte.

Até que ponto as segundas intenções prevaleciam no menosprezo em relação aos diamantes encontrados, tomando-os por cristal e evitando comunicar à metrópole a possibilidade de haver tal riqueza na colônia é uma questão que continua em aberto. Uma vez que o governador de Minas, d. Lourenço de Almeida, retornou a Lisboa após deixar seu cargo na colônia com a inacreditável quantia de 18 milhões de cruzados, pode-se afirmar que, pelo sim ou pelo não, o governador resolveu se organizar para tirar proveito das tais pedras, já a partir de 1726. Alguns anos depois já não era possível manter a Coroa alheia à sua existência, e o governador, depois de ter explorado o diamante juntamente com o ouvidor Rodrigues Banha, envia o próprio Fonseca Lobo e uma caixa de diamantes a Lisboa, em 1730.

O rei de Portugal já ouvira alguns relatos a respeito das pedras brilhantes que afloravam nos rios da sua colônia. Por isso desconfiaria da versão dos seus representantes na colônia, de que apenas recentemente havia-se confirmado a autenticidade dos diamantes, e envia o governador interino, Martinho de Mendonça, à capitania para apurar os fatos. [7] Nenhum dos envolvidos foi formalmente acusado ou denunciado, apesar da forte suspeita da Coroa da existência de uma exploração sistemática e organizada por funcionários da metrópole e à revelia desta.

Controlar uma atividade extremamente lucrativa e de realização ao alcance de quase qualquer indivíduo (muitos garimpeiros tentavam a sorte com pouca técnica e não muito capital investido, embora ao longo dos anos a atividade passasse a exigir mais e mais escravos, e fosse permitida a um número cada vez menor de pessoas), instalada do outro lado do oceano, em uma terra inculta e desprovida de um aparelho administrativo e fiscalizador adequado mostrou-se tarefa complicada e bastante difícil. A cada nova regra, lei ou édito, novas formas de evitar o imposto sobre as atividades realizadas (em especial, a mineração) surgiam com vigor. Entretanto, a extração de metais e pedras preciosas ocasionou uma intervenção reguladora e uma organização administrativa com fins de arrecadação de tributos jamais vista na colônia.

 

Controle e descontrole nas terras de ouro e diamantes

O deslocamento do eixo de poder da Bahia para o Rio de Janeiro, que se tornou a capital do vice-reinado do Brasil em 1763, ocorreu, em parte, devido às transformações trazidas pela atividade mineradora. Seria necessário um centro mais próximo da região das minas, e que pudesse levar a cabo as reformas administrativas que visavam controlar a atividade e seus lucros. Esta estrutura política e administrativa baseava-se no Regimento das Minas, que determinava a existência de uma Intendência das Minas em cada vila próxima à área de exploração de ouro. O intendente seria nomeado pelo rei e a ele estaria ligado diretamente. As novas descobertas deveriam ser comunicadas à intendência, para que esta providenciasse a demarcação dos novos terrenos auríferos, distribuindo as datas entre os mineradores.

As perdas, contudo, jamais puderam ser completamente eliminadas, e a evasão se tornou uma constante. Segundo Paulo Cavalcanti, "quanto mais o estado português apertava o cerco para assegurar a sua arrecadação, aí mesmo é que os desvios do ouro prosperavam, com extrema criatividade".[8] O autor cita, entre outros, joias fabricadas com o ouro extraído na colônia e enviadas para o Reino sob alegação de serem joias de família; moedas vazadas, raspadas, com peso reduzido ou misturadas a outros materiais. Sem falar no clássico golpe do santo em cujo interior se encontrava ouro contrabandeado e nas estratégias que utilizavam os negros para driblar a fiscalização, como salpicar ouro em pó em seus cabelos e roupas. Essa estratégia originou, por exemplo, uma restrição na circulação dos escravos, que tradicionalmente eram enviados por seus senhores para vender quitutes ou bebidas além de um determinado ponto do povoado (no caso específico, é citada a ordem do ouvidor-geral, José Carvalho Mártires, no Arraial do Tejuco).

Logo que foi confirmada a descoberta de ouro, a metrópole tratou de regulamentar a atividade e dela extrair o máximo que conseguisse:

conhecida a potencialidade da área, a Coroa tratou de montar a estrutura administrativa e o arcabouço legal com vistas a absorver parte do produto das minas. Implantou a máquina arrecadadora dos quintos; criou uma complexa organização burocrática na qual se confundiam funções executivas, legislativas e judiciárias, definiu regras para a concessão de datas minerais e impôs inúmeros impostos e taxas sobre mercadorias e escravos enviados às Gerais" [9]

Com os diamantes, não seria diferente. Ao longo das décadas, as formas de arrecadação de impostos iriam variar, acarretando transformações administrativas que teriam influência direta no dia a dia dos colonos de uma forma geral, e não apenas dos mineradores.

No decorrer do século XVIII, a autoridade da Coroa seria incorporada por vários oficiais, governadores, ouvidores e vice-reis cuja política e atuação marcariam momentos de maior ou menor efetividade do poder metropolitano. Na região das minas, muitas vezes a eficiência da estrutura administrativa que se organizava, com maior ou menor sucesso, dependia de como os mais altos representantes da metrópole lidavam com os escalões intermediários, locais da administração e, principalmente, com as elites locais que levavam adiante a empreitada mineradora. Inúmeras revoltas e combates localizados - tanto por disputa das riquezas, como a Guerra dos Emboabas, em 1709, quanto por insatisfações em relação à política tributária, como a revolta de Felipe dos Santos, em 1720, sem falar nos levantes ocasionados por crises graves de abastecimento - deixavam a região em um estado permanente de alerta.

Em 1717 assume o governo da capitania de São Paulo e Minas do Ouro dom Pedro Miguel de Almeida e Portugal, conde de Assumar, trazendo consigo ordens da Coroa e uma determinação própria de conter os ânimos na região, atiçados desde o episódio dos Emboabas. Sua missão maior era colocar em funcionamento a lógica metropolitana de exploração colonial: normalizar e intensificar o trabalho nas minas, cobrar o quinto de forma sistemática e eficiente, garantir que os impostos arrecadados chegassem aos cofres de Sua Majestade e incentivar mais missões exploratórias, visando à descoberta de novas minas. Ainda governador em 1720, quando da sedição de Vila Rica (revolta de Felipe dos Santos), esmagou o movimento agindo com manobras ardilosas e violência típica. Assumar partiu em 1721, quando a capitania já havia sido desmembrada em duas (São Paulo e Minas do Ouro), mas ainda por alguns anos uma aparente calmaria se faria sentir na região. A paz, no entanto, de forma alguma expressa uma total obediência dos colonos às regras e nem um bom funcionamento da estrutura administrativa. Como já comentado, as formas de driblar as regras, visando o lucro próprio, eram muitas, dependendo da imaginação e ousadia daqueles que se dispunham a driblar a fiscalização.

Outra personagem central e bastante marcante no processo foi o governador do Rio de Janeiro entre 1725 e 1732, Luís Vahia Monteiro. Seu governo foi marcado por relações difíceis com a elite local: incapaz de negociar com esta, viu-se constantemente em situações de enfrentamento ao defender com rigidez implacável as leis e determinações da Coroa. No seu zelo e dedicação em evitar a evasão de divisas que por lei pertenciam ao rei, Vahia Monteiro dispôs contra si câmaras locais, funcionários intermediários, negociantes que, muitas vezes, para atingir a sua reputação e credibilidade, imputavam-lhe a fama de irracional e desequilibrado, o que lhe valeu a alcunha de "o Onça". Em correspondência do fundo Secretaria de Estado do Brasil, em especial no conjunto Correspondência dos Governadores do Rio de Janeiro com diversas autoridades, Vahia Monteiro acusava eclesiásticos e altos funcionários da Coroa de se empenharem no contrabando de ouro e sonegação, frequentemente desviando as riquezas para outros países europeus.

Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela, que substituiu Vahia Monteiro no posto de governador do Rio de Janeiro, incorporava um outro estilo de governar. Compreendendo as peculiaridades da colônia portuguesa na América no contexto da exploração de ouro e diamantes, Freire de Andrade saiu-se melhor ao desenvolver relações mais próximas e de cooptação das elites locais. Afirma Vitor Hugo Abreu:

Gomes Freire não poderia ter um confronto com os grupos sociais coloniais, pois dependia deles para a sustentação de sua governança. Não poderia ser tão autoritário como fora Luís Vahia ou tão permissivo quanto foi Manoel de Freitas (Manoel de Freitas da Fonseca, governador interino do Rio de Janeiro em 1732, depois da saída de Vahia Monteiro por motivos de saúde). A solução seria manter negociações com os membros locais, adquirir a confiança deles e tê-los como aliados.[10]

No início da década de 1730, o método de arrecadação de imposto é rediscutido e decide-se pela capitação, em uma tentativa de se evitar as infindáveis questões sobre o modo de cobrança do quinto (se recairia sobre a quantidade extraída em cada período ou sobre uma média, sua periodicidade, entre outras questões). As casas de fundição foram fechadas, o ouro em pó, permitido, e o sistema de capitação, instituído com base no número de escravos de cada unidade de produção, incluindo-se aí outras atividades além da mineradora. Esta abrangência da cobrança traria problemas para a administração real, tornando constantes as queixas por estarem todos submetidos a um tributo que é devido somente pela extração de ouro. O sistema por capitação cairia em 1750, com a ascensão ao trono de d. José I.

A exploração de diamantes mostrou-se uma atividade mais complexa. Em 1731 foi decretado o monopólio régio de exploração das pedras, o que não impediu o afluxo de aventureiros à região, dispostos a arriscarem suas vidas e liberdade desafiando a determinação oficial. Em 1734, o governo da metrópole interdita a região como um todo, incluindo o solo, os rios, os povoados, e suspende a extração das pedras. A intenção era evitar a exploração desenfreada que já fazia com que os preços do diamante no mercado internacional começassem a cair e intensificar o controle quando da retomada da extração. Era o Distrito Diamantino, delimitado por seis marcos e oito postos fiscais, formando um quadrilátero ao redor da sua sede, o arraial do Tejuco. No mesmo ano de sua criação, foi instituída a Intendência dos Diamantes, cujo intendente era a autoridade suprema no distrito, prestando obediência à Junta Diamantina, localizada em Lisboa.

Em 1739, a Coroa reabriu a exploração e estabeleceu o regime de contratos para a exploração das lavras de diamante. Este regime baseava-se na cessão de contratos para arrecadação de impostos sobre a produção de diamantes e também sobre a circulação de bens comercializados. O contratador, indivíduo (em geral, fidalgo) que arrematava os direitos de contrato, era a figura-chave e também o ponto fraco de um sistema bastante vulnerável, desde a concepção, ao nepotismo e à corrupção, por concentrar poderes em excesso nas mãos de uma pessoa cujo estatuto não se definia entre funcionário oficial da Coroa, integrante da estrutura administrativa e um particular a quem cabia funções típicas da administração pública por um período determinado de tempo. As acusações contra Felisberto Caldeira Brant, contratador de diamantes entre 1749 e 1752, mostram, a despeito da polêmica envolvendo o caso Caldeira Brant, quão complexas eram as relações entre a Coroa e seus funcionários coloniais. Estas acusações estão presentes no fundo Secretaria de Estado do Brasil.

A administração na colônia oscilou durante anos entre várias formas de recolher o imposto e também entre diversos estilos de governar, embora o objetivo primordial fosse, obviamente, impor à exploração de riquezas na colônia a lógica mercantilista da metrópole. Até que ponto o poder real se fazia sentir, ou quão eficiente a máquina administrativa conseguiu ser, é alvo de polêmica entre historiadores.

De um lado, as autoridades metropolitanas pareciam se agigantar, pois uma vez longe do centro do poder - o rei -, esses funcionários tomavam para si a voz do soberano, de outro, a imensidão rural da capitania facilitava o alargamento do poder privado e acentuava a sensação de desgoverno.[11]

Falsificadores, contrabandistas e seus descaminhos

O desvio de ouro e diamantes foi uma constante durante todo o período de exploração destas riquezas. Contudo, não obstante este desvio representasse óbvia perda de receita, ele jamais representou um desafio à ordem estabelecida ou à lógica do sistema colonial.

Ainda que o contrabando fosse disseminado entre a chamada "arraia miúda" e entre os próprios escravos (por sua própria conta ou a serviço dos seus senhores), o grosso das riquezas desviadas perdia-se através das mãos de homens ricos da colônia, donos de lavras, comerciantes, funcionários da Coroa (por vezes, incluindo governadores e ouvidores) e clérigos, que criavam redes sem as quais não teria sido possível a apropriação indébita de grandes quantias.

Apesar do prejuízo e da notoriedade de alguns desviadores e suas ações, poucas vezes eles são citados explicitamente ou processados, que dirá punidos. Luís Vahia Monteiro foi uma das poucas autoridades que, desejando proteger os interesses da Coroa acima de tudo, enfrentou abertamente aqueles que percebia estarem a defender seus próprios interesses. Mesmo o governador de Minas, d. Lourenço, foi alvo do governador do Rio de Janeiro, acusado de cúmplice na implantação de uma casa de fundição falsa que desviava ouro com selo falso da Coroa para o comércio internacional. [12]

São poucos os nomes explicitamente citados como contrabandistas e/ou falsificadores na correspondência oficial do período. Um deles é Antônio Pereira de Souza, cujas atividades ilícitas foram apontadas pela primeira vez por Inácio de Souza Jácome Coutinho, juiz de fora da capitania do Rio de Janeiro.[13] O português Antônio Pereira de Souza ocupava o cargo de abridor dos cunhos e fundidor da Casa da Moeda do Rio de Janeiro, responsável, portanto, pelo molde das moedas reais, e por trabalhar na casa da moeda, encontrava-se em posição privilegiada tanto para falsificar como para desviar o ouro da região. Tinha por cúmplices, entre outros, um padre (Manoel Carvalho), outro abridor da Casa de Moedas (Carlos de Matos Quental), e eram acobertados por ninguém menos que o juiz de órfãos do Rio de Janeiro, Antônio Telles de Menezes.

Antônio Pereira chegou a ser preso por Vahia Monteiro, bem como alguns dos seus cúmplices (o padre Manoel Carvalho foi encontrado em uma das suas idas e vindas à região de Parati, um das bases das suas atividades ilícitas), e foi mantido no próprio palácio do governador, que alegou falta de segurança na cadeia pública. Apesar de Vahia Monteiro ter agido regularmente com rigor em casos de desvio das riquezas do rei, no episódio específico do falsificador e contrabandista Antônio Pereira este rigor não foi aplicado, não se sabe se deliberada ou acidentalmente. O fato é que o prisioneiro conseguiu se evadir do palácio. Procurado por toda a capitania, ele seria encontrado meses depois, em 1733, muito próximo à cidade de onde fugira, acobertado pelo próprio Antônio Telles de Menezes. Gomes Freire de Andrade já substituíra Vahia Monteiro no governo do Rio de Janeiro, com o desafio de coibir abusos e desvios de receita sem entrar em confronto direto com indivíduos pertencentes às elites locais, alguns dos quais envolvidos em menor ou maior escala nas redes de contrabando. Contudo, e embora o falsificador tenha sido enviado à Bahia para enfrentar processo em Salvador, sabe-se que nenhum membro desta "sociedade ilícita" chegou a sofrer sanções. Vitor Hugo Abril afirma que Antônio Telles de Menezes continuou no ofício de juiz de órfãos até 1756, e que "o homem de negócio Francisco da Costa Nogueira, mais um membro dessa sociedade com Antônio Pereira, pagou fiança e continuou em seus negócios tanto lícitos quanto ilícitos sendo acusado, ainda no governo de Gomes Freire, de falsificação de barras de ouro e moeda `...]"[14] O sentido desta condescendência pode ser melhor compreendido se levarmos em conta que tais atividades ilícitas baseavam-se no envolvimento de indivíduos de posição e cabedal: contrabando, falsificação e descaminhos não eram atividades para qualquer um; antes, para aqueles em posição de acesso que lhes permitiriam contato direto e privilegiado com a atividade mineradora e subsequente circulação das riquezas. Continua o autor:

A lógica da Coroa portuguesa é negociar com todos os micros poderes representativos em suas colônias. Assim como o governador precisava sustentar seu governo e mando com pactos com a aristocracia de riqueza e poder locais o rei a todo instante precisa negociar com os infinitesimais poderes de seus domínios.

O caso de Manoel Henriques, conhecido por Mão de Luva, desponta décadas depois dos eventos envolvendo Antônio Pereira. Também português, pouco se sabe a respeito das suas origens, ou mesmo, que fim levou. O que se conhece através dos documentos da época (entre o fim dos anos 1770 e início da década de 1780) é que ele liderava um agrupamento na região de Macacu, Rio de Janeiro, dedicado à faiscação e o comércio ilegal de ouro. Esta região, nas cercanias do que atualmente conhecemos por Cantagalo e Nova Friburgo, estava interditada à ocupação durante o período de exploração das minas, exatamente por encontrar-se em local estratégico entre a sede do vice-reinado do Brasil e a região das minas, não muito distante do caminho oficial de circulação de produtos e riquezas. O povoado foi destruído após anos de morosas investigações, durante as quais o governador de Minas, Cunha Menezes, chegou a ser acusado de cumplicidade, embora se defendesse sustentando que tinha homens seus infiltrados no bando, com o objetivo de conseguir informações mais precisas acerca das atividades dos homens do Mão de Luva. Algumas informações a respeito dos eventos relacionados com as atividades do Mão de Luva podem ser apreendidas em documentação do fundo Secretaria de Estado do Brasil, conjunto documental Correspondência da Corte com o Vice-Reinado.

Esgotamento

Na segunda metade do século XVIII, a produção de ouro começa a cair (a decadência da extração de diamantes chegaria apenas na segunda metade do século XIX). Durante um bom tempo, a metrópole, em sua ambição, não enxergou o verdadeiro problema, sistematicamente acusando os "perversos" colonos do Brasil de intenso desvio e contrabando. No entanto, a realidade dos desvios nunca colocou em xeque a ordem estabelecida ou o sistema de expropriação colonial. O que de fato ocorreu foi uma decadência da produção, uma diminuição constante da quantidade de riquezas extraídas da colônia. Os veios superficiais e o ouro de aluvião haviam se esgotado, e a extração de ouro esbarrava nas condições técnicas da colônia do século XVIII.

Apesar da desconfiança da Coroa em relação aos colonos, alguns altos funcionários do rei manifestavam preocupação aberta com a decadência da produção em função da limitação das técnicas frente ao esgotamento do ouro superficial. Missões começavam a ser enviadas a Minas Gerais com o intuito de investigar as causas da decadência e formas de saná-la ou minimizá-la, em especial após a chamada Inconfidência Mineira (1789). Já no início do século XIX, percebemos também uma preocupação com a retomada de outras atividades que pudessem reativar a região, economicamente falando, em especial a agricultura, vista por alguns (em especial aqueles que seguiam a escola fisiocrática) como a verdadeira riqueza da terra. Em 1813, Fernando Delgado de Castilho, governador de Minas Gerais, escreve ao conde de Aguiar, presidente do Real Erário, alertando para a necessidade de se solucionar o problema da decadência econômica da região.

Embora o Brasil jamais recuperasse a dianteira na produção de ouro ou diamantes, no século XX retoma a produção em larga escala e volta a ocupar, se não a liderança, um papel de destaque na produção mundial, com uma nova corrida do ouro, desta vez na região amazônica.

Notas

[1] LICCARDO, Antônio et alli. Paraná na história da mineração no Brasil do século XVII. Boletim Paranaense de Geociências, Ed. UFPR, n. 54, p. 41-49, 2004.  Disponível em http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/novembro2011/geografia_artigos/7art_mineracao_parana.pdf.

[2] FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995.

[3] Idem.

[4] BARBOSA, Otávio. Diamante no Brasil: histórico, ocorrência, prospecção e lavra. Rio de Janeiro: CPRM, 1991.

[5] CHAVES, Mário Luiz de Sá Carneiro; MENEGHETTI FILHO, Ítalo. Conglomerado Diamantífero Sopa, Região de Diamantina, MG: marco histórico da mineração do diamante no Brasil. In: SCHOBBENHAUS, Carlos; CAMPOS, Diogenes de Almeida; QUEIROZ, Emanuel Teixeira; WINGE, Manfredo; BERBERT-BORN, Mylène Luíza Cunha (Ed.). Sítios geológicos e paleontológicos do Brasil. 1. ed. Brasília: DNPM/CPRM/SIGEP, 2002. v. 1. Disponível em http://sigep.cprm.gov.br/sitio036/sitio036.pdf.

[6] REPREZENTAÇÃO que fazem ao Governador dom Lourenço de Almeida os mineyros do Arrayal do Tijuco, por intermédio do Cap. de dragões Joseph de Moraes Cabral. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 7, n. 1-2, p. 306-308, jan./jun. 1902.

[7] FURTADO, Júnia Ferreira. Capital da cobiça. Revista de História, Rio de Janeiro, n. 30, mar. 2008. Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/capital-da-cobica.

[8] OLIVEIRA, Paulo Cavalcante de. Negócios da trapaça: caminhos e descaminhos na América portuguesa. Tese (Doutorado em História Social) ‒ Universidade de São Paulo, 2002.

[9] LUNA, Francisco Vidal. Economia e sociedade em Minas Gerais (Período colonial). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, IEB-USP, v. 24, n. 33-44, 1982.

[10] ABRIL, Vitor Hugo. O descaminho como prática social da América portuguesa: as ilicitudes de um oficial régio (1725-1735). Comunicação apresentada no IV Congresso Internacional de História, Maringá, set. 2009.

[11] FURTADO, Júnia Ferreira. Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial. Apresentação no Seminário Internacional sobre a Historiografia de Minas Gerais, promovido pelo Instituto Amilcar Martins (ICAM), Belo Horizonte, 19 a 21 jul. 2004.

[12] FURTADO, Júnia Ferreira. Capital da cobiça, op. cit.

[13] ABRIL, Vitor Hugo, op. cit.

[14] Idem.

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