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Ouro e Diamantes na Colônia Americana

Decadência do ouro

Publicado: Quarta, 23 de Mai de 2018, 12h53 | Última atualização em Quarta, 18 de Agosto de 2021, 17h35

 Carta de Fernando Delgado de Castilho ao Conde de Aguiar, sobre a decadência da extração do ouro verificada desde 1778. Afirma que isto se deve mais à falta de técnica do que ao esgotamento das reservas, o que levou muitos mineiros às atividades agropecuárias.

 

Conjunto documental: Goiás. Ministério do Império. Ofícios dos Presidentes
Notação: IJJ9 493
Datas-limite: 1771-1820
Título do fundo ou coleção: Série Interior
Código do fundo: AA
Argumento de pesquisa: ouro
Data do documento: 26 de novembro de 1813
Local: Vila Boa
Folha (s): 08

 

Ilmo e Exmo. Snr.
A extração de ouro[1] nesta capitania vai correndo à sorte daquela dos mais produtos minerais, com tão vantajosos passos, que em breve será reduzido a nada o seu quinto[2] tendo diminuído quase progressivamente desde o ano de 1778, que marcou a época do fim da sua abundância e princípios da sua decadência. Isto certamente não é ainda pela falta deste metal, pois creio e creio bem, estar intacta a sua matriz, por não haver memória de mineração[3] regular e metódica nos montes a devo supor, e muito abundante pela grande quantidade que dele tem afluído para os campos e rios, donde até agora tem sido extraviado sem o mais pequeno princípio mineralógico, tanto por se descobrir e encontrar com mais facilidade, como por não ter havido alguém com os conhecimentos e posses para um semelhante trabalho e o que agora é absolutamente impossível, porque a maior parte dos habitantes chamados mineiros, semelhantes ao jogador, que nem sabe ter outro ofício, nem aplicar algum, ganho mais que as coisas supérfluas, ou a ver se faz pelo mesmo caminho, outro maior, finalmente perde tudo, fica pobre e sem [...]. Assim eles vivem na miséria lavando terra já muitas vezes lavada ou vagando a ver se encontram alguma riqueza, ou descoberto, como vulgarmente chamam isto de alguma mancha ou pinta que ainda não fosse encontrada e que tem feito e fará sua desgraça até que esta mesma os obrigue à recorrer  à rica e inextinguível mina da agricultura[4], muito particularmente em um país como este, onde ela paga o trabalho com tanta [...] que em muitos lugares produz trezentos por um, e ordinariamente cem. Tenho a satisfação de que alguns já vão abrindo os olhos, e eu vi com o maior prazer arremataram-se os dízimos de três ou quatro povoações, coisa que não sucedia ha muito tempo, com o aumento de oito mil e duzentos cruzados: a abundância em que já vivem os seus habitantes, produzida pela cultura das terras e criação de gado e juntamente com as minhas persuasões, espero que incite os mais a fazer a sua felicidade e a das rendas reais desta capitania ,que pelo que tenho referido, se acham no mais miserável estado, de sorte que não tem sido prejuízo valer-me de toda a ideia que o meu espírito me pode sugerir para suprir muitas das despesas a que elas são obrigados. [...]

Deus guarde V.Exa. Vila Boa. 26 de novembro de 1813.

Ilmo. e Exmo. Snr. Conde de Aguiar[5]

Fernando Delgado H. de Castelo.

 

[1]OURO: por ser um mineral ao mesmo tempo maleável e de incrível resistência às alterações químicas causadas por outros elementos, há milênios é utilizado na fabricação de ornamentos e na cunhagem de moedas. É frequente que seja trabalhado sob forma de liga com outros metais, que lhe dão mais rigidez. É encontrado geralmente em rios, em forma de pepitas ou incrustado em outros depósitos minerais. Durante muito tempo um dos atributos do ouro foi o lastro de moedas correntes ou, de modo geral, seu uso como padrão de valor. O ouro no Brasil foi descoberto na região que corresponde atualmente a Minas Gerais, em fins do século XVII, por bandeirantes [bandeiras] de São Paulo, após décadas de buscas infrutíferas por diversas expedições. Responsável pela prosperidade da região, embora tenha que se considerar o papel desempenhado pelas atividades de pecuária e agricultura na capitania de Minas Gerais, teve um lugar preponderante na economia da metrópole e de sua maior credora, a Inglaterra. As cargas de ouro, segundo alguns historiadores, são um importante vetor de avaliação da economia portuguesa e das políticas adotadas, como de incentivo às manufaturas nacionais em momentos de crise, por exemplo. Durante o período em que sua extração se manteve no auge, a corrida ao ouro originou tal afluxo de imigrantes (do Reino e de outras partes da colônia), que uma lei foi decretada para tentar conter a evasão da população de Portugal. Atraindo indivíduos de todos os tipos e “cabedais”, a atividade mineradora desencadeou o desenvolvimento de uma sociedade diferente da predominante nas regiões de plantio extensivo: mais urbana e, a princípio, com maior diversidade social. Com um crescimento da produção entre 1730 e 1759, verificam-se nesse processo diferenças importantes entre as regiões: Minas Gerais inicia seu declínio na década de quarenta, quando Goiás e Mato Grosso adquirem visibilidade (COSTA, Leonor Freire et al. O ouro do Brasil: transporte e fiscalidade (1720-1764). Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica e 6ª Conferência Internacional de História de Empresas, 2003. https://ideas.repec.org/p/abp/he2003/083.html). Em consequência, cidades da região que haviam florescido no período, em especial Vila Rica (Ouro Preto), conheceriam a decadência no final do Setecentos. O ouro, principal meio de troca e a principal reserva de valor da capitania, deixou de circular livremente como moeda em 1807 e, como assinala Ângelo Carrara, um alvará de 1. ° de setembro de 1808 proibiu sua circulação, com posterior regulamentação em 12 de outubro do mesmo ano que obrigou a confecção de bilhetes impressos para o troco do ouro em pó nas casas de permuta (A capitania de Minas Gerais (1674-1835): modelo de interpretação de uma sociedade agrária. História Econômica & História de Empresas. v.3 n. 2 (2000). http://www.abphe.org.br/revista/index.php/rabphe/article/view/138)

[2]QUINTO: tributo devido à coroa correspondente a 20% (ou seja, 1/5, um quinto) sobre as riquezas adquiridas. Incidia sobre os produtos como ouro, prata, diamantes, couro, entre outros. O imposto remonta ao alvará de 1557 e visava taxar riquezas que ainda nem haviam sido detectadas na América portuguesa: determinava que aqueles que descobrissem veios de metais preciosos deveriam pagar o quinto a Coroa, depois que estes tivessem sido fundidos. Para a arrecadação do tributo, a coroa estabeleceu os chamados registros, que funcionavam como alfândegas e ficavam em pontos estratégicos localizados nas estradas do Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Para a área mineradora, foram designados funcionários especiais: provedores das minas, superintendentes, ouvidores e guardas-mores, buscando uma melhor fiscalização da atividade mineradora. A primeira forma de arrecadação do quinto ocorreu pelo sistema “de bateia”, entre 1711 e 1713, que consistia no pagamento de dez oitavas (35 gramas) de ouro por bateia (tipo de prato cônico utilizado na mineração). Depois, instalou-se a arrecadação por fintas e avenças, entre 1713 e 1719, ou seja, uma taxa anual repartida entre as comarcas, que contribuíam com uma cota proporcional a sua produção. Em 1719, foram instaladas as oficinas dos quintos, ou casas de fundição, onde o ouro extraído era fundido e reduzido a barras marcadas com o selo real, indicando peso, quilate e ano de fundição, e onde o quinto era recolhido. Durante este período, a porcentagem tributada ao rei variou entre 12 e 20%, por vezes sendo adotada uma taxa fixa resultado de cálculos das médias. Em 1735, foi instituído um sistema de capitação e censo de indústria, baseado na contagem de braços que produziam. Em 1750, a coroa novamente volta ao sistema de cobrança nas casas de fundição, forma definitiva de recolhimento do quinto.

[3]MINERAÇÃO: mineração define todos os processos e instâncias envolvidos na extração de substâncias minerais. No Brasil, a atividade mineradora teve início no século XVII com a descoberta e exploração sistemática de aluviões auríferos em Minas Gerais, e também de diamantes, na mesma capitania, já no século XVIII. Eminentemente predatória, a empreitada mineradora levada a cabo por indivíduos a quem era concedido o direito de exploração, apresentava uma produtividade muito baixa: da forma aluvionar do ouro e dos diamantes decorria um método primitivo de recolhimento destas riquezas, e se inicialmente a quantidade era tanta que permitia aos detentores das lavras e, principalmente, à coroa portuguesa um enorme volume de lucros, logo tornou-se óbvio o esgotamento dos depósitos superficiais de ouro e diamantes. A brusca diminuição na extração demonstrava claramente este esgotamento, que não foi necessariamente das riquezas, mas do método utilizado. A partir das últimas décadas do século XVIII, alguns funcionários do próprio governo português começaram a enfatizar a necessidade de se estudar processos de extração de minérios e, principalmente, de se modernizar o equipamento e o método utilizados na colônia. A situação nas lavras fluviais não era muito melhor do que a das minas em terras, e Azeredo Coutinho, sacerdote e escritor brasileiro que se dedicou a analisar os problemas econômicos da colônia, afirmava: "supondo que naquelas minas haja ainda muito ouro, já contudo não é muito para ser retirado por mãos grosseiras e sem arte." [Citado por Sílvia Figueroa em http://alhe.mora.edu.mx/index.php/ALHE/article/viewFile/23/18]. Algumas medidas foram tomadas pela metrópole no sentido de alterar a situação: a tradução e publicação, em 1790, de dois tratados bastante abrangentes sobre mineração, e o envio de três recém-formados de Coimbra em uma viagem de especialização pelos melhores centros científicos e mineiros da Europa, entre eles José Bonifácio de Andrada, a fim de encontrar soluções e ajustes aos antigos sistemas de exploração que caracterizou a colônia.

[4]AGRICULTURA: durante a maior parte do período colonial o sistema agrícola brasileiro se caracterizou pela grande lavoura monocultora e escravista voltada para exportação, definida por Caio Prado Junior pelo conceito de plantation. Entretanto, podiam ser encontradas também em menor escala as pequenas lavouras, policultoras e de trabalho familiar. Com a chegada da família real e toda a estrutura do Estado português, houve a necessidade de incremento no abastecimento de gêneros agrícolas especificamente para o mercado interno. À época, a estrutura agrária brasileira era pautada pela rusticidade dos meios de produção, pela adubação imprópria e falta da prática do arado, enfim, o que havia era a presença modesta de técnicas modernas de cultivo. D. João VI, atento a essa situação emergencial, criou, em 1812, o primeiro curso de agricultura na Bahia e, em 1814, no Rio de Janeiro, uma cadeira de botânica e agricultura, entregue a frei Leandro do Sacramento. O objetivo era o melhor conhecimento das espécies nativas, não apenas para descrição e classificação, mas também para descobrir seus usos alimentares, curativos e tecnológicos. Mais do que isso, a incentivo aos estudos botânicos e agrícolas era parte de uma nova mentalidade de promoção das ideias científicas, que já vinha sendo implementada em Portugal desde o final do século XVIII. A agricultura era vista como uma verdadeira “arte”, pois era o melhor exemplo de como o homem era capaz de “domesticar” a natureza e fazê-la produzir a partir das necessidades humanas. Significava a interferência do Estado em prol do aproveitamento racional das riquezas naturais, orientado pelas experimentações e pela própria razão.

[5]CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

 

 

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