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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 19h52
Mulato ou pardo? - Brasil colonial

 Raimundo Agnelo Soares Pessoa
Universidade Federal de Goiás

Os mulatos são os descendentes do intercurso sexual entre pessoas negras e brancas. Essa informação inicial, contudo, a despeito de já adiantar bastante sobre os mulatos não permite vislumbrar todos os seus matizes. É necessário trazer à cena outras nuances desse tipo social inventado no Brasil colonial. Uma das primeiras que se apresenta é a que traz à tona a particularidade de existir mais de um vocábulo para fazer referência a essa classe de gente.

No conjunto dos termos que fazem referências aos mulatos, encontram-se na documentação do Brasil colonial dois que merecem um olhar especial e mais delongado; são os vocábulos mulato e pardo. Uma primeira pergunta que se pode fazer acerca dessa constatação é se essas duas palavras designam pessoas do mesmo tipo social. De saída, pode-se adiantar que ambos os termos são recorrentes nos escritos da época em questão. Entretanto, ao se analisar mais detidamente suas ocorrências e os lugares onde acontecem, isto é, a tipologia de suas aparições, é possível perceber certas especificidades de atributos e usos desses termos. Assim, o que parecia antes ser um discurso unívoco e invariante começa a apresentar outras facetas. Para avaliar essa questão, acompanhemos inicialmente duas séries de citações. Primeiramente, estão reproduzidas sete menções nas quais somente aparecem referências ao termo mulato.
`01]
ALVARÁ (cópia) do rei d. José I, datado de 3 de setembro de 1723, no qual ordena aos ouvidores da capitania de São Paulo que sigam o regimento dos ouvidores da capitania do Rio de Janeiro no que tange ao julgamento de crimes. Lembra que no Rio de Janeiro era aplicada pena de morte aos crimes cometidos por índios e escravos, e seria proveitoso que na capitania de São Paulo os crimes cometidos por "escravos, índios e mulatos bastardos, ainda que forros, que estes eram os mais insolentes", fossem julgados com pena de morte sem que se pudesse recorrer à sentença.[1]

`02]
Capitania de Minas Gerais, 1726.
ORDEM (cópia) proibindo a eleição para vereador, juiz ordinário e governo das vilas da capitania de Minas Gerais de qualquer homem mulato até o quarto grau ou qualquer um que seja casado ou viúvo de mulata.[2]

`03]
Capitania do Rio de Janeiro, 1789.
RELATÓRIO remetido pelo vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos, ao conde de Resende, no qual informa sobre as constantes desordens na cidade do Rio de Janeiro decorrentes da predominância de negros e mulatos entre a população local. Observa que seriam necessários meios de punição exemplar e incentivo ao trabalho. Menciona, ainda, o projeto de criação de uma casa de correção. No entanto, enquanto não se construía a casa, os detidos eram enviados para a fortaleza da ilha das Cobras e, mesmo, ao calabouço.[3]

`04]
Capitania do Rio de Janeiro, 1738.
REQUERIMENTO remetido por José da Silva Paes, brigadeiro de infantaria dos exércitos, ao capitão Bento Pereira Barbosa, tratando de denúncia sobre a conduta do mulato Diogo Mendes em relação à viúva Antônia Nunes, na casa da mesma. Solicita que o mulato seja preso e levado à sua presença [4]

`05]
Capitania do Rio de Janeiro, 1771.
CARTA remetida pelo marquês de Lavradio ao juiz de fora da cidade do Rio de Janeiro, Jorge Boto Machado Cardoso, informando sobre o requerimento de autoria de Antônio Pereira da Costa, para que fossem presos os mulatos, Ricardo e Manoel da Costa, e permanecessem na prisão até que fosse capturado o escravo que fugiu com o auxílio de ambos.[5]

`06]
Capitania do Rio de Janeiro, 1738.
BANDO remetido por José da Silva Paes, brigadeiro de infantaria dos exércitos, informando que por lei era proibido fabricar, vender ou dar facas com ponta aguda, chamadas flamengas ou holandesas, a escravos, negros forros ou cativos, mulatos e índios. Somente poderiam ser fabricadas e vendidas as com pontas arredondadas, tendo por pena a prisão e serventia por seis anos nas fortalezas do Rio Grande de São Pedro os que desobedecessem à ordem.[6]

`07]
Capitania do Rio de Janeiro, 1783.
DEVASSA promovida pelo ouvidor-geral do crime do Rio de Janeiro onde o frade Bernardo Magalhães, organista do convento do Rio de Janeiro, com 53 anos de hábito é acusado de estar frequentemente ébrio, e de conviver com uma quadrilha de mulatos "peraltas", dos quais um estaria constantemente em sua companhia. Junto com estes mulatos teria promovido "indecentíssimos entremeses e bailes", para divertir outros dois frades do mesmo convento. O acusado não possuía nem dinheiro nem escravos, pois segundo o ouvidor "tudo é pouco para gastar com aquelas más companhias".[7]

Essas menções ao termo mulato encontradas em alvarás, ordens, cartas, ofícios, pareceres, devassas, requerimentos, versando sobre variados temas, e cobrindo, de um modo geral, todo o período colonial brasileiro, têm em comum, pelo menos, dois aspectos: em primeiro lugar, como já mencionado, todas elas fazem referência direta e exclusivamente ao mulato; em segundo lugar, a série inteira tem um tom nitidamente desabonador ou caluniador acerca desse tipo social. Claramente, em nenhuma das referências há alusão às atitudes ou às ações honradas dessa classe de gente. Todas elas corroboram a opinião, corrente na época, de que os mulatos de fato não eram pessoas merecedoras ou dignas de confiança.
Passemos agora a outra série de sete menções - usando o vocábulo pardo.

`01]
Capitania do Rio de Janeiro, 1767.
CARTA DE PATENTE remetida por Antonio Rolim de Menezes Moura, conde de Azambuja, à Secretaria de Estado, conferindo patente a João Francisco Muzzi no posto de sargento maior comandante das oito companhias dos homens pardos forros. As companhias teriam sido levantadas na cidade do Rio de Janeiro por ocasião de guerra para proteger a capitania. João Francisco Muzzi não receberia soldo algum, somente honras, privilégios, liberdade e isenções.[8]

`02]

Capitania de Pernambuco, 1657.
CONSULTA do Conselho Ultramarino à rainha regente d. Luísa de Gusmão, sobre o requerimento do alferes reformado Rafael Pires, homem pardo, natural da capitania de Pernambuco, filho de Francisco Pires, pedindo mercê de uma companhia de infantaria e de tenças em Pernambuco, em remuneração de serviços prestados.[9]

`03]
Capitania de Alagoas, 1772.
REQUERIMENTO do ministro e mais irmãos da mesa da venerável Ordem Terceira da Penitência, sita no convento de São Francisco da vila do Penedo, ao rei `d. José] a pedirem a conservação do esquife na sua posse, dada a disputa que lhes fazem os homens pardos confrades da confraria e irmandade de São Gonçalo Garcia.[10]

`04]
Capitania de Alagoas, 1796.
REQUERIMENTO do sargento-mor Libório Lázaro Leal, do terço de infantaria auxiliar dos homens pardos da guarnição da vila do Penedo, à rainha `d. Maria I] a pedir licença para vir ao reino a tratar de seus interesses.[11]

`05]
Capitania do Rio de Janeiro, 1788.
PORTARIA ao sargento-mor comandante do terço auxiliar de infantaria dos homens pardos libertos, Jose Miguel Solano, para alistar na posição de tambor a Manoel da Silva, que foi tambor de Barros, do terço auxiliar de infantaria da freguesia da Candelária.[12]

`06]
Capitania do Rio de Janeiro, 1805.
CARTA PATENTE conferida pelo vice-rei do Brasil, d. Fernando José de Portugal, a José Joaquim Vilela do posto de alferes da companhia dos homens pardos da freguesia de São Francisco Xavier do engenho velho do terço das ordenanças da cidade. O agraciado não receberá soldo algum, mas somente honras, privilégios, liberdade, isenções e franquezas.[13]

`07]
Capitania do Ceará, 1802.
OFÍCIO do governo interino do Ceará ao `secretário de estado dos Negócios da Marinha e Ultramar`, visconde de Anadia, `João Rodrigues de Sá e Melo`, sobre a prisão no forte de São Luís, por oito dias, do sargento-mor Antonio José Moreira Gomes, por inquietações e turbulências, e do pardo João da Silva Tavares, mestre de gramática latina.[14]

Nessa série sobre os pardos somente a última menção altera a regularidade das referências. Ironicamente tal exceção envolve um professor. Poderíamos indagar que inquietações ou turbulências teria provocado o mestre de gramática latina para ter ido parar em uma cela de prisão. Efetivamente, não sabemos o que aconteceu. Espera-se que tudo não tenha passado de um mal-entendido; uma ideia proferida em uma ocasião inapropriada. Desse modo, seja lá como for, o fato é que, comparando as duas séries - excluindo ou não as estripulias do mestre de latim -, percebe-se que, enquanto a referência aos mulatos, no primeiro grupo de citações, ocorre essencialmente em situações de desabono, acerca dos pardos verifica-se precisamente o oposto.
A título de exemplo, cotejemos os escritos do letrado frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (Sant'ana do Jaboatão/PE, 1695 e Salvador/BA, 1779). Esse religioso da ordem de São Francisco, da província de Santo Antônio do Brasil, exerceu, além dos ofícios próprios dos clérigos, os de cronista (de sua própria ordem), de genealogista, de poeta, de sermonista e de membro da Academia brasílica dos renascidos. No âmbito intelectual, destaca-se a sua atuação como cronista. Nesse aspecto, segundo o historiador José Honório Rodrigues, a obra mais importante de frei Jaboatão como cronista/historiador é o Orbe seráfico, novo brasílico, de 1761. Editado pela primeira vez em Lisboa, esse escrito descreve a atuação da ordem de São Francisco nas terras brasílicas e é o resultado de uma decisão da própria ordem, que desejava que tal história fosse escrita.[15]
Além, do Novo orbe seráfico brasílico, utilizaremos ainda, de frei Antônio de Santa Maria de Jaboatão, o Discurso histórico, geográfico, genealógico, político e encomiástico - recitado na nova celebridade, que dedicaram os pardos de Pernambuco, ao santo da sua cor, o beato Gonçalo Garcia, na sua igreja do Livramento do Recife, em 1751`16`, um dos poucos escritos coloniais conhecidos dedicados exclusivamente à questão dos "mulatos" do Brasil. O tema básico desse texto, que é um meio termo entre um sermão e um relato, é a discussão em torno da biografia do beato São Gonçalo Garcia. O intuito de frei Jaboatão com o Discurso histórico era provar que o beato Gonçalo Garcia, de ascendência indiana com português, possuía a cor parda ou mulata. A discussão se desenvolve ou se justifica em função da inexistência de um santo da mesma cor e acidente[17] dos mulatos: "quantas calúnias, quantos opróbrios, que de desprezos, e irrisões, não têm ouvido os pardos sobre a falta, que tinham de santo da sua cor; atribuindo-se esta falta ao defeito da mesma cor; como se a cor, por acidentes, pudesse ser sujeito de alguma maldade."[18] A necessidade, portanto, de provar a existência de tal santo se justificava em função das muitas calúnias sofridas pelos pardos por não possuírem um santo padroeiro de sua cor.[19] A função de São Gonçalo, seria, assim, legitimamente intervir a favor dos mulatos nas "instâncias superiores". Os escritos de frei Jaboatão são fundamentais para se entender a partilha no uso dos termos pardo e mulato. Vejamos.
Assim foram também nomeados para acompanharem o exército, que no ano de 1695 mandou de Pernambuco o seu governador Caetano de Mello de Castro, a expugnação dos Palmares de negros levantados, que ia por sessenta anos estavam fortificados neste lugar em uma serrania, entre a vila da Alagoa, e a povoação de Porto Calvo, para onde se haviam retirado muitos, desde o tempo do holandês, fugidos a seus senhores, aos quais depois se foram agregando outros mais, assim cativos, como forros, crioulos, mulatos, e facinorosos, causando notáveis danos, e insultos de roubos, mortes, e outros excessos escandalosos desde o rio de São Francisco ate os confins de Pernambuco, e foram vencidos com grande resistência, mortos, e presos, e arrasada aquela tão forte, como abominável colônia, assistindo a toda esta arriscada empresa religiosos menores.[20]
A irmã Catarina Paes Landim, ou das Chagas, foi natural desta vila das Alagoas, filha de Manoel Landim, e de sua mulher Catarina Paes. A vinte e nove de outubro de 1689 casou com Antonio de Azevedo Castro, natural do arcebispado de Braga, o qual foi síndico do convento. Depois de casada entrou na ordem terceira a quinze de julho de 1720, e professou a vinte e quatro de agosto de 1721. No estado de casada viveu sempre em boa paz, e união com seu marido, mas nunca faltando às obrigações de cristã; ouvindo missa, não só nos dias de preceito, mas em todos os do ano; e assim mesmo frequentava os santos sacramentos, e ofícios divinos; e nas funções da ordem nunca teve falta voluntária. Não teve filhos; mas teve uma mulatinha, filha de uma sua escrava, a quem criou com o recato de filha própria, e quando teve capacidade a forrou, e a casou com um pardo oficial de alfaiate, e barbeiro, por nome Antonio dos Santos, que ainda hoje vive mui honrada, e cristãmente com a dita sua mulher, que se chama Margarida Rodrigues.[21]
Todavia, para que essa suposta partição seja melhor compreendida e se entenda as especificidades de uso dos termos mulato e pardo, uma análise mais conceitual dos vocábulos torna-se imprescindível. Iniciemos as ponderações acerca desses dois termos por Raphael Bluteau.[22] Diz o dicionarista que mulata, e, por conseguinte mulato, é como se denomina a filha de branco com negra, ou de negro com mulher branca. Até aí nenhuma novidade. Diz ainda o letrado que "este nome vem de mu, ou mulo, animal gerado de duas outras diferentes espécies."[23] Bluteau, como se vê, dá ao termo mulato uma explicação razoavelmente simples, curta, concisa, direta e totalmente dentro daquilo que se poderia classificar de senso comum. Aliás, como, em tese, deveria ser, pois, tais escritos - vocabulários em língua vulgar, no caso em português - tinham como objetivo servir para consultas rápidas e pontuais.
Acerca da palavra pardo, Bluteau dá uma explicação no mesmo tom da anterior. Pondera o letrado que parda é a "cor entre o branco, e o preto, própria do pardal, donde parece lhe veio o nome."`xxiv] Logo abaixo, após a definição primeira do vocábulo pardo, em uma sub entrada do verbete, encontra-se a seguinte informação: "homem pardo. Vid. mulato."[25] Portanto, a partir das descrições de Bluteau, não restam dúvidas de que mulato e pardo descrevem o mesmo tipo étnico. Essa acepção de Bluteau é similar à que encontramos em outros escritos do Brasil colonial. Desse modo tomaremos mulato e pardo, e suas variantes masculinas e femininas, como termos distintos, mas usados para descrever um mesmo grupo de pessoas. Contudo, no âmbito social, tais termos apresentam diferenças e sutilezas.
Outro termo que apesar de aparecer com menos frequência nos escritos coloniais exige que façamos certas ressalvas quanto a seu uso, trata-se do vocábulo mestiço. Recorremos mais uma vez ao texto de Bluteau. Encontra-se dicionarizado, no Vocabulario portuguez, o vocábulo mestiço da seguinte forma: "diz-se dos animais racionais e irracionais. Animal mestiço. Nascido de pai e mãe de diferentes espécies, como mu, `e] leopardo".[26] Em uma sub entrada, logo após a entrada principal, aparece novamente o vocábulo mestiço com as essas informações: mestiço é aquele "nascido de pais de diferentes nações. v. g. filho de português e de índia, ou de pai índio e mãe portuguesa."[27].
Nota-se, pois, que, segundo Bluteau, a acepção primitiva, do termo mestiço designa o produto do ajuntamento carnal entre europeus (no caso do Brasil, o português) com índios. É oportuno acrescentar aqui que, desde os primórdios da colonização do Brasil, o termo mestiço, apesar de ter sido usado majoritariamente para designar genericamente os filhos de índios com portugueses, também era usado, em certas situações, para designar os filhos de negros com índios.[28] Acrescenta-se, também, que a historiografia brasileira quase sempre usa a palavra mestiço indistintamente como sinônimo de pessoas nascidas desses intercursos sexuais, tais como mulato, cafuzo e o próprio mameluco, esse último, o "verdadeiro dono" do vocábulo.
Esclarecido, pois, que pardo e mulato descrevem a mesma classe de gente e definidos esses dois termos, tudo indica não haver mais dúvidas acerca de seus significados. Sendo assim, será que se pode dar a questão por encerrada? A resposta não é tão evidente assim, senão, vejamos.
Uma primeira resposta que se deve dar para o questionamento vai no sentido de se explicar a existência de mais de um termo para designar supostamente uma mesma categoria. Como vimos, nesse aspecto, Bluteau não ajudou muito. Assim, é somente a partir da análise interna das fontes, isto é, da tipificação das circunstâncias do aparecimento dos termos que é possível vislumbrar uma explicação um pouco mais acurada para a existência de dois vocábulos distintos para descrever os filhos de brancos com negros.
Um reexame das duas séries de menções dos termos mulato e pardo, atentando, desta vez, para as circunstâncias de aparecimento de tais referências, permite perceber que o vocábulo pardo é usado, preferencialmente, naquilo que se poderia chamar de documentação oficial ou formal. É o caso, por exemplo, das normas escritas (alvarás, provisões, avisos, cartas régias, regimentos etc.), dos documentos que trazem informações relativas aos corpos militares, aos cargos da república, às irmandades religiosas etc.
No tocante à instituição militar, a despeito do complicado e confuso sistema de organização existente nos trópicos, (regimentos, ordenanças, milícias, terços, quadra, companhia, linha paga, corpos auxiliares etc.)`29`, três classes, distribuídas em três divisões marcavam aí sua presença: os brancos, reinóis ou principais da terra; os negros, normalmente aqueles não submetidos ao estado de servidão - a tropa dos Henrique Dias; e os mulatos. Todavia, o termo usado para designar este último grupo nos quadros militares não era mulato, e sim pardo. Dizia-se o "regimento dos homens pardos" ou "o terço dos homens pardos" etc. Essa mesma prática - o uso do complemento homens pardos ou simplesmente pardos - é observada nos documentos oficiais: testamentos, livros de registros de nascimentos, livros de registros de mortes, livros de registros de batizados, nomes das irmandades religiosas etc. A partir desses exemplos, percebemos que, na documentação de caráter oficial, o termo pardo era categoricamente o preferido, em detrimento do vocábulo mulato. O próprio padre Antônio Vieira, no sermão que trata justamente dessa questão, qual seja, a existência de irmandades separadas de negros, brancos e mulatos, usa para designar estes últimos o termo pardo.[30] Há quem diga que o próprio padre era mulato e, sabedor do peso pejorativo do termo, conscientemente preferiu usar a palavra pardo.[31] É uma ideia tentadora, contudo, difícil de ser defendida e confirmada. Mas, indo além das possíveis razões pessoais do padre Antônio Vieira, percebe-se que as circunstâncias em que figuram o termo mulato são quase sempre situações de calúnia.
Tudo indica, pois, que estamos diante de uma diferenciação sutil, porém significativa. Quando os filhos de brancos com negros se "comportavam" de modo reprovável eram denominados mulatos, enquanto que ao se "comportarem" de modo tido como "conveniente", eram denominados de pardos. Essa partilha vista estritamente pelo viés dos tipos étnicos (filhos de brancos com negros) parece servir tão somente para designar uma mesma classe de gente. Porém, como tipo social, há especificidades nos usos dos vocábulos mulato e pardo.
O procedimento para examinar essa separação pode ser o mesmo utilizado para analisar as circunstâncias e a forma das referências aos mulatos nos fontes documentais citadas acima. Em outras palavras, analisar as situações discursivas em que o termo mulato é mencionado e as circunstâncias em que ele aparece no discurso é possível descobrir certas particularidades no uso do vocábulo em exame. Fica evidente que o discurso acerca dos mulatos como tipo social "desprezível" nasceu para dar resposta a um problema específico e localizado. Esse discurso caluniador é dirigido àqueles mulatos que vivem sob a proteção de alguém de honra, algumas vezes o pai biológico, outras o "padrinho" protetor. É somente aí - vivendo sob o apadrinhamento de pessoas brancas - que os mulatos podiam experimentar certas regalias, e, portanto, serem vistos com desconfianças pelas classes de estima do Brasil colonial.
É razoável afirmar, por conseguinte, que os mulatos, vivendo nesse lócus privilegiado, tiveram maior probabilidade de vislumbrar ou mesmo experimentar um viver em estado de regalias, ou nobreza; e foi justamente esse viver ou tentar-se viver em estado de nobreza que suscitou, a seu respeito, um discurso desabonador. É a partir desse lugar singular que os mulatos podem experimentar os dois lados principais em torno da servidão - cativeiro e liberdade. A desconfiança se explica em função dos mulatos se situarem nesse lugar fronteiriço. Dessa perspectiva, a principal causa da tensão se deveu ao fato de os mulatos filhos de nobres ou principais da terra, experimentarem, de certo modo, o acesso facilitado ao mundo dos brancos; saindo assim do estado de servidão para o estado de nobreza. Essa espécie de habilitação espúria colocava em dúvida certas verdades estabelecidas na sociedade do Brasil colonial. O discurso pejorativo sobre os mulatos, de certo modo, tinha como missão justamente recolocar as coisas naqueles moldes que a sociedade da época julgava serem os certos. A invenção do mulato é a solução que a sociedade do Brasil colonial encontra para concertar uma transgressão das regras sociais estabelecidas.

 


[1] ARQUIVO NACIONAL (AN). Secretaria de Estado do Brasil. Correspondência de São Paulo com o vice-rei do Brasil. Códice 111, p. 7.
[2] AN. Diversos códices - SDH. Cópia de documentos diversos relativos à província de Minas Gerais, com um discurso de instrução aos governadores da mesma província pelo professor João Teixeira Coelho, desembargador da relação do Porto. Códice 1070, p. 68.
[3] AN. Secretaria de Estado do Brasil. Relatório do vice-rei Luís de Vasconcelos. Códice 72, v. 1, p. 26 e 27.
[4] Ibidem. Registro original de correspondência dos governadores do Rio de Janeiro, destes com outros e com diversas autoridades. Portarias, ordens, bandos etc. Códice 87, v. 15, p. 175v.
[5] Ibidem. Registro da correspondência do vice-reinado com diversas autoridades. Códice 70, v.7, p.24.
[6] Ibidem. Registro original de correspondência dos governadores do Rio de Janeiro, destes com outros e com diversas autoridades. Portarias, ordens, bandos etc. Códice 87, v. 15, p. 129v e 130v.
[7]AN. Diversos códices - SDH. Devassa feita pelo escrivão da Ouvidoria-geral do crime, da relação da cidade do Rio de Janeiro, contra os frades do convento de Nossa Senhora do Carmo da mesma cidade. Códice 1064, p. 41.
[8] AN. Secretaria de Estado do Brasil. Ordens régias pelo governo-geral do Brasil e governo do Rio de Janeiro. Códice 128, v. 21, p. 6v e 7.
[9] ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU). Administração Central (ACL), Conselho Ultramarino (CU) 015, Cx. 59, D. 5082. Projeto resgate de documentação histórica barão do Rio Branco.
[10] Ibidem, CU 004, Cx. 3, D. 201.
[11] Ibidem, D. 252.
[12] AN. Secretaria de Estado do Brasil. Vice-reinado. Portarias. Códice 73, v.17, p.123v.
[13] Ibidem. Patentes concedidas pelo vice-rei do Brasil. Códice 146, v.4, p.8 e 9.
[14] AHU ACL, CU 006, Cx. 17, D. 957.
[15] A edição utilizada neste texto é a elaborada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, composta de 5 volumes, publicados entre 1858 e 1862. O título dessa edição é Novo orbe seráfico brasílico ou chronica dos frades menores da província do Brasil. RODRIGUES, José Honório. História da história da Brasil - 1ª parte - Historiografia colonial. 2 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1979, p. 302-305.
[16] JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Discurso histórico, geográfico, genealógico, político, e encomiástico. In: LINS, Rachel Caldas; ANDRADE, Gilberto Osório de. O elogio do homem pardo. Ciência de Trópicos. Recife, v. 12, n. 1, p. 79-105, jan./jun. 1984. No século XVIII, esse texto veio a público em pelo menos duas edições: uma, em edição própria, impressa na cidade de Lisboa em 1751, na oficina de Pedro Ferreira; outra, incluída em uma coletânea de textos do frei Jaboatão, denominada Jaboatão mystico em correntes sacras dividido. Corrente primeira panegyrica, e moral. Lisboa: Officina de Antonio Vicente da Silva, 1758.
[17] "Acidente. O que não é da substância das coisas, que pode estar, e não está nelas, sem sua destruição." BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721, v. 1, p. 70.
[18] JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Discurso..., p. 82.
[19] Calúnia era o termo usado na época para designar as infâmias (outro termo de época) sofridas por uma pessoa ou grupo delas. RIBEIRO, Sotério da Sylva. Summula triunfal da nova e grande celebridade do glorioso e invicto martyr S. Gonçalo Garcia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 153, tomo 99, p. 7-104, 1926, p. 12. JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Discurso..., p. 82.. Sotério da Sylva Ribeiro é o pseudônimo de frei Manuel da Madre Deus, cf. Ibidem, p. 79.
[20] JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou chronica dos frades menores da província do Brasil. Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858-1862, 1ª parte, v. 2, p. 114.
[21] JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo orbe seráfico brasílico ou chronica dos frades menores da província do Brasil. Impressa por ordem do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858-1862, 2ª parte, v. 2, p. 613.
[22] BLUTEAU, Raphael. op.cit.
[23] Ibidem, v. 5, p. 628.
[24] Ibidem, v. 6, p. 265.
[25] Idem.
[26] BLUTEAU, Raphael. op. cit., v. 5, p. 455.
[27] Idem.
[28] INFORMAÇÃO geral da capitania de Pernambuco. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, v. 28, p. 118-496, 1908, p. 483.
[29] MELO, Edilberto de Oliveira. Raízes de militarismo paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1982.
[30] VIEIRA, Antônio. Sermão XX (Da série - Maria, rosa mística). In: ______. Sermões. Obras completas do padre Antônio Vieira. Porto: Lello & Irmão Editores, 1951, v. 12, p. 87.
[31] RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 204.

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