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Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 20h07
A saúde pública no período colonial e joanino

 Flavio Coelho Edler
Pesquisador do Programa de Pós-Graduação
em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz

Para entendermos as propostas, a legislação e as instituições que regulamentavam a organização sanitária do império luso-brasileiro, no período assinalado, devemos averiguar, inicialmente, quais eram as condições de saúde dos habitantes e as concepções relativas à salubridade e às doenças de que padeciam colonos, índios e escravos.

A herança sanitária colonial

Como é sabido, a escravização e a matança iniciadas com a captura ou desocupação de terras contribuíram menos que as doenças importadas para o que a historiografia chama de catástrofe demográfica da população indígena. Os índios foram vítimas de sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, febre tifoide, malária, disenteria e gripe, trazidas pelos colonizadores europeus, doenças para as quais não tinham defesa genética.

As condições de saúde da população negra eram igualmente deploráveis. Embora houvesse uma multiplicidade de situações e atividades exercidas pelo escravo africano, bem como formas de tratamento recebido por parte dos senhores, os cronistas do período colonial sublinham que os negros que prestavam serviço na terra trabalhavam quase sem descanso, sempre mantidos com muito açoite e, em geral, mal alimentados. O regime de trabalho nas minas era totalmente diverso daquele que se observava nos engenhos de açúcar. Nos principais centros urbanos, como Olinda, Recife, Salvador e Rio de Janeiro, os escravos exerciam atividades variadas, desde os serviços domésticos até o artesanato passando pelo comércio ambulante e o carregamento de fardos e mercadorias. A ancilostomíase, conhecida como opilação, as doenças de carência, como o escorbuto, ou infecciosas, como a tuberculose e a malária, não chegavam a distinguir a população de escravos negros do restante da população de mulatos, brancos pobres e cafuzos que viviam na base da pirâmide social.

Quanto às condições de saúde da população branca, é impossível uma generalização, tal era a variedade de situações em que se encontravam nesse período. Ser nobre ou plebeu, viver nos grandes centros urbanos ou refugiado em engenhos e fazendas; ser homem de negócios, médico, advogado, pertencer ao clero regular, morar em conventos ou aldeias no sertão, instalar-se em zona de mineração, conduzir tropas de gado, tudo isso afetava o ritmo de vida, o regime alimentar e o padrão de salubridade, não importa qual camada social se ocupava. Está claro que barnabés, mascates, artesãos, oficiais mecânicos, carreiros, feitores, capangas, soldados de baixa patente, mendigos e pobres sitiantes não viviam em condições muito melhores que algumas categorias de escravos e se distanciavam muito da elite branca.

A Igreja católica era o suporte da vida cultural da colônia e as ordens religiosas constituíam a ponta de lança da Igreja na propagação da fé e da cultura cristã. Para o cristão, o bem-estar físico era secundário face à salvação espiritual. Além do mais, a doença podia ser percebida alternativamente como uma expressão do pecado ou da graça divina. O corpo, concebido como o repositório da alma imortal, permaneceu como um legítimo objeto de cuidado. Os ensinamentos bíblicos e o exemplo de Jesus apontavam a devoção aos doentes como uma benção divina, não restrita apenas a praticantes treinados. A fé cristã enfatizava que o cuidado e a cura deveriam ser uma vocação popular, um ato de humildade consciente, portanto, um componente vital da caritas cristã. Nas procissões organizadas pelas confrarias, nas igrejas ou no refúgio do lar, orações e preces solicitavam a intervenção dos santos. Cada qual segundo sua especialidade. São Sebastião era invocado para proteger das epidemias. Santa Lúcia, contra as dores de dentes. Contra a peste e quebradura, Santo Adrião. Contra sezões, Santo Alberto.

Perante as dificuldades e precariedade da vida, a Igreja incentivou os fiéis brasileiros a agrupar-se em confrarias, formadas segundo categorias sociais, para encontrar soluções que abrissem as portas à salvação eterna. A confraria mais antiga do Brasil era a da Misericórdia. Inspirada nos compromissos corporais realizava obras voltadas à alimentação dos presos e famintos, remia os cativos, curava os doentes, cobria os nus, dava repouso aos peregrinos, e enterrava os mortos. Mantida por figurões de grande prestígio social, a ordem se beneficiava dos legados deixados por seus associados e de eventuais recursos diretos da Coroa. Os quatro hospitais abertos no século XVIII pelas ordens terceiras de São Francisco e do Carmo voltavam-se ao acolhimento exclusivo dos confrades. Os hospitais da Santa Casa da Misericórdia, quase todos modestos e em permanente estado de penúria, assistiam a uma população de indigentes e moribundos, desde o século XVI, em quinze cidades brasileiras.

Circunscrita aos centros urbanos de apenas algumas províncias, e relativamente cara, a assistência médica oficial era inacessível para quem se encontrava à margem das confrarias religiosas ou das redes de clientelismo promovidas pelos membros da classe senhorial. Durante todo o período colonial, tanto os raríssimos médicos - então conhecidos como físicos - quanto cirurgiões e boticários (farmacêuticos), representantes da medicina metropolitana, compunham uma ínfima parcela da comunidade terapêutica existente. Pajés, barbeiros, sangradores, algebristas (consertadores de ossos), práticos curiosos, herbaristas, comadres e curandeiros africanos formavam o grosso dos agentes de cura que socorriam os variados estratos sociais.

Mas que relações mantinham os físicos, cirurgiões e boticários portugueses com os demais agentes de cura? Embora geralmente preconceituosos em relação a outros elementos pagãos e "selvagens" da cultura indígena, os colonizadores se interessaram em recolher informações sobre como os indígenas e seus pajés faziam para combater as doenças que grassavam no lugar. De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais brasileiras era a que maior legitimidade popular possuía.

Durante todo o período colonial, os moradores de cidades e vilas solicitam aos governantes a presença de médicos. Cartas eram escritas ao rei manifestando a preocupação constante com a saúde dos súditos, pela "grande falta que têm de médico e botica para haverem de ser curados em suas enfermidades". Mas o que imperava era a dificuldade de acharem médicos dispostos a vir para a colônia. A ausência de uma clientela com recursos que justificassem a saída da metrópole condicionava a permanência no Brasil à obtenção de alguma função ligada, sobretudo, à tropa ou à Câmara.

Como atuavam esses profissionais na América portuguesa? No mundo da colônia a imposição das linhas hierárquicas entre físicos, cirurgiões, e boticários mostrava-se totalmente inoperante. Quando aplicadas, recebiam queixas dos representantes da Coroa, em nome da realidade colonial. O exercício da medicina no Brasil, até a criação da Junta do Protomedicato no reinado de d. Maria I, em 1782, era facultado somente a físicos e cirurgiões portadores de um atestado de habilitação, e licenciados pelos comissários das duas autoridades médicas reinóis: o cirurgião-mor e o físico-mor. Estes representantes diretos do poder real residiam, de início, somente nas povoações maiores, mas a partir do séc. XVIII, os regimentos sanitários passam a ser mais observados, com a presença de comissários em um número maior de cidades e vilas.

Os físicos atuavam como médicos da Coroa, da Câmara e das tropas nas principais cidades e vilas, sendo numericamente pouco expressivos. No século XVIII, em cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, somente três ou quatro físicos exerciam suas atividades. Eles eram responsáveis pelo exame, diagnóstico e o receituário para os pacientes, e aos cirurgiões cabiam os ofícios manuais, considerados socialmente inferiores, que exigiam o uso de ferros de lancetas, de tesouras, de escalpelos, de cautérios e de agulhas. A atuação dos cirurgiões estava restrita às sangrias, à aplicação de ventosas, à cura de feridas e de fraturas, sendo-lhes vetada a administração de remédios internos, um privilégio dos médicos formados em Coimbra. A criação das escolas de medicina, em 1808, veio romper com esta prática de cerceamento feita pela metrópole, possibilitando a formação de médicos no país. Entre 1707 e 1749 oitenta e nove boticários prestaram exames no Brasil. No período de d. Maria I, foram registrados quatorze, enquanto no período joanino, isto é, entre 1808 e 1821, cento e quarenta e oito boticários foram examinados pela Fisicatura-mor.

Regulamentação sanitária

No tocante à legislação sanitária, é preciso registrar que desde 1430 o rei de Portugal exigia que todos os que praticavam medicina fossem examinados e aprovados pelo seu médico, também denominado físico. Em 1448, o Regimento do Cirurgião-mor, sancionado em lei do reino, explicitava dentre os encargos da função a regulamentação do exercício da medicina e cirurgia através de licença, legalização e inspeção de farmácias. Em 1521, já aparece a divisão das atribuições entre as duas maiores autoridades da saúde: o físico-mor e o cirurgião-mor. A Fisicatura era um tribunal. O físico-mor, um juiz. Desde então já aparece a figura dos juízes comissários no reino e seus domínios. No momento em que se estabelece a administração portuguesa no império luso-brasileiro, ainda no século XVI, tem-se notícia da designação de licenciados para o cargo de físico na cidade de Salvador. Onde não houvesse um físico examinador, delegado do físico-mor, os praticantes da arte de curar deviam requerer carta ao físico-mor, com atestado das câmaras locais que comprovassem sua experiência e saber. Se aprovados em exame, recebiam licença para exercer a medicina apenas na localidade em que praticavam, e por determinado tempo. Cartas de lei, alvarás e regimentos respondiam a situações particulares, como infrações à legislação sanitária e aos abusos contra os interesses dos súditos.

Foi em 1640, logo após a restauração de Portugal, que o fisco lançou suas vistas sobre as boticas. Equiparou-as às casas de comércio. O senado da Câmara recebia o imposto. Cabia ao físico-mor fiscalizar, com o auxílio de boticários aprovados, as boticas, a qualidade e os preços dos medicamentos. A lei estabelecia que a separação entre físicos, cirurgiões e boticários era completa, cada qual com atribuições restritas ao seu domínio. Já um alvará do século XVI vedava aos físicos e boticários sociedade comercial nas boticas. Entretanto, a não observância do Regimento da Fisicatura parece ter sido a norma nos tempos coloniais, tal como se infere pelo estabelecido na ordem régia de 3 de março de 1717 ao dr. João Nunes de Miranda, que servia, por comissão, de físico-mor na Bahia: porquanto tenho notícias que geralmente costumam nessa cidade da Bahia curarem cirurgiões de medicina dando purgas e outros remédios de que só podem aplicar os médicos formados na Universidade de Coimbra ou aprovados pelo físico-mor do reino, o que é em notório dano do comum e ter experiência mostrado suceder mil infortúnios e desgraças pela imprudência dos cirurgiões (...).[1]

Não só lojas de barbeiro e boticas vendiam remédios no Brasil. Os estabelecimentos dos ourives, padeiros e outras casas também comerciaram específicos. Os próprios médicos manipulavam e vendiam suas receitas, apesar do alvará real de 1561 proibir-lhes de preparar e vender drogas. Se os cirurgiões praticavam a medicina e os médicos aviavam suas receitas, os boticários receitavam por conta própria.

O regimento de 1744, elaborado pelo físico-mor, a ser observado por seus representantes no Brasil, indica a crescente importância que Portugal emprestava aos estados da América. Todo o dispositivo legislativo, que procurava fazer a Fisicatura próxima e presente através de um pesado aparato burocrático, e as constantes queixas sobre o arbítrio dos comissários revelam que a preocupação central da Coroa era com o fisco. No governo de d. Maria I, em meio à crise da mineração e das reformas administrativas que se seguiram, foram tomadas importantes medidas concernentes à saúde pública. Em 1794 foi publicada a Farmacopeia Geral do Reino e domínios de Portugal, visando regular a produção de medicamentos pelas boticas. Anteriormente, em 1782, a Junta do Protomedicato substituíra, com as mesmas atribuições e competências, os cargos do físico-mor e cirurgião-mor. No entanto, com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, foi recriada a Fisicatura e extinta a Junta do Protomedicato, em 1809. Neste ano, foi criado o cargo de provedor-mor da saúde da Corte e do Estado do Brasil, a quem caberia, junto com seus delegados, conservar a saúde pública. Outra preocupação da Coroa foi com a difusão da prática de vacinação contra a varíola. Desde início do século XIX, as Juntas Vacínicas aplicavam o método desenvolvido por Edward Jenner, que consistia em introduzir o pus vacínico em indivíduos sãos para conter o avanço das "bexigas". Com a abertura dos portos ao comércio exterior, em 1808, as autoridades sanitárias concentraram suas atenções nas medidas higiênicas que respondessem aos interesses dos comerciantes e da agroindústria escravista exportadora, fiscalizando as boticas de bordo, as cargas trazidas, a presença de doenças contagiosas na tripulação. O medo da importação de escravos doentes que pudessem gerar uma epidemia nas cidades portuárias era outra preocupação dos comerciantes. No entanto, a Inspetoria de Saúde dos Portos só seria criada em 1828.

A partir da Independência, a fiscalização do comércio de secos e molhados impróprios ao consumo, das condições gerais de higiene pública, bem como o policiamento das posturas urbanas, das farmácias e do exercício da medicina estiveram a cargo da Fisicatura, auxiliada pelas câmaras municipais e pela inspetoria de polícia. Na corte ou nas províncias pululavam os vendedores ambulantes de remédios secretos. A população não associava competência terapêutica aos diplomas oficiais, e as autoridades faziam vista grossa à multiplicidade de anúncios que ofereciam remédios que prometiam curas imediatas para os mais diversos males. Em 1828, foi extinta a Fisicatura, como órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e regulamentação das artes terapêuticas. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade. Finda a Fisicatura, os Inspetores de Saúde dos governos provinciais iniciaram a fiscalização dos fatores urbanos que se acreditava estarem implicados na produção das doenças. Somente em 1850, em seguida à primeira epidemia de febre amarela, foi criado um órgão central responsável pela gestão sanitária do Império, a Junta Central de Higiene Pública.

 

[1] Apud MARQUES, Vera Regina Beltrão. p. 197.

 

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