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Licença para ensinar

Publicado: Segunda, 25 de Junho de 2018, 14h50 | Última atualização em Quinta, 22 de Julho de 2021, 23h55

Cópia do pedido de Raimundo de São Francisco, homem preto, da Ordem Terceira de São Francisco à rainha Maria I de licença para ensinar a escrever, ler e contar aos seus companheiros "pretos" com base na doutrina cristã. 

Conjunto documental: Correspondência da Corte com o Vice-Reinado
Notação: códice 67, vol. 22
Datas-limite: 1797-1797
Título do fundo: Secretaria do Estado do Brasil
Código do fundo: 86
Argumento de pesquisa: Ordem dos Frades Menores Capuchinhos Italianos
Data do documento: 11 de fevereiro de 1797
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 22

Senhora. Diz. Raimundo de São Francisco, homem preto, natural do Rio de Janeiro e da Ordem de São Francisco[1], que tendo-lhe vossa majestade[2] concedido licença pela provisão inclusa para ensinar a ler, escrever e contar[3], e desejando o suplicante ir doutrinar pelo amor de Deus e movido da caridade cristã os seus irmãos pretos[4], instrui-los nos preceitos de Deus e da Igreja, dos quais tem pouca notícia, tanto pelas grandes distâncias em que vivem das paróquias, como porque não entendendo a língua portuguesa[5], e vendo-se de outra cor, se não facilitam a instrução, que só poderá aproveitar, sendo-lhes dada por outros seus semelhantes, não pode por si só com tão grande trabalho por serem imensos os que povoam a dita cidade e seus distritos. Para que se possa os satisfazer a tão santo, e útil desejo pretende, que vossa majestade lhe conceda faculdade para associar a si alguns companheiros pretos, que o ajudem no referido ministério da instrução cristã no tempo em que os pretos estiverem livres dos trabalhos, em que são ocupados por seus senhores. Pede a vossa majestade seja servida fazer lhe essa graça. E receberá mercê[6]. Raimundo de São Francisco

 Está conforme

 Manoel de Jesus Valdetare

 

[1]3ª ORDEM DE SÃO FRANCISCO: associação religiosa formada por leigos, organizados em torno das ideias e preceitos de São Francisco de Assis. Norteia-se pela utopia franciscana que prega a prática da pobreza, a fraternidade e a igualdade. O surgimento das ordens terceiras a partir do século XII está relacionado a um contexto de renovação do exercício da espiritualidade, inspirada em um cristianismo que valoriza o que teriam sido as práticas dos primeiros discípulos de Cristo, resultando em uma maior participação dos leigos. Foi a primeira das ordens terceiras, intitulada de Ordem da Penitência de São Francisco. Recebeu reconhecimento formal da cúria romana por meio do Memoriale propositi fratum et sororum de poenitentia, em 1221, considerada a primeira Regra da Ordem. Segundo esta, os "irmãos e irmãs da penitência", como eram conhecidos, deveriam manter a austeridade nos trajes, privar-se de bailes, banquetes e ajuntamentos solenes, observar a prática do jejum em alguns dias da semana, além de regularmente frequentar os sacramentos da confissão e da comunhão. Em 18 de agosto de 1289, através da bula Supra montem, o papa Nicolau IV, lhe conferiu reconhecimento canônico como Ordem Terceira de São Francisco de Assis. As primeiras ordens terceiras franciscanas chegaram ao Brasil ainda no século XVII. Em 20 de março de 1619 foi fundada a Ordem Terceira de São Francisco Assis na cidade do Rio de Janeiro. Além das regras que eram comuns a todas as filiais da mesma ordem, havia os estatutos particulares de cada associação que variavam conforme a localidade. Para ingressar na associação o candidato devia apresentar informações sobre seu oficio, estado e "qualidades" enquanto às mulheres exigia-se à autorização de seus maridos. De maneira geral, as exigências relativas à entrada de um membro se baseava nos critérios de pureza étnica, excluindo-se os descendentes de negros, judeus, e cristãos novos, embora o último caso nem sempre tenha ocorrido. O estatuto dos terceiros franciscanos do Rio de Janeiro, de 1801, aboliu o impedimento ao ingresso dos judeus convertidos. É importante ressaltar que os esses critérios não incluíam os descendentes de escravos africanos. Após o processo de seleção o membro passava por um período de preparação para profissão religiosa denominado noviciado. Durante o noviciado, o indivíduo era submetido a exercícios espirituais, além de ser instruído nas regras da associação. Dentro da hierarquia da Ordem, os postos de comissário visitador e irmão ministro representavam os mais altos cargos nos planos espiritual e temporal, respectivamente. Ao comissário cabia os sermões, práticas, profissões de irmãos e mais exercícios espirituais. Somando-se a isso, o comissário visitador participava como membro votante nas reuniões convocadas pela mesa administra da Ordem. A eleição anual do comissário era feita pelos religiosos que deveriam escolher diante de uma lista aprovada previamente pelos irmãos. A escolha do ministro e dos demais mesários era baseada em uma lista elaborada pelo secretário da mesa, o qual indicava três irmãos para o cargo com base nas qualidades necessárias. Essa lista era divulgada ao público um mês antes da eleição, sendo a votação secreta.

[2]MARIA I, D. (1734-1816): Maria da Glória Francisca Isabel Josefa Antônia Gertrudes Rita Joana, rainha de Portugal, sucedeu a seu pai, d. José I, no trono português em 1777. O reinado mariano, época chamada de Viradeira, foi marcado pela destituição e exílio do marquês de Pombal, muito embora se tenha dado continuidade à política regalista e laicizante da governação anterior. Externamente, foi assinalado pelos conflitos com os espanhóis nas terras americanas, resultando na perda da ilha de Santa Catarina e da colônia do Sacramento, e pela assinatura dos Tratados de Santo Ildefonso (1777) e do Pardo (1778), encerrando esta querela na América, ao ceder a região dos Sete Povos das Missões para a Espanha em troca da devolução de Santa Catarina e do Rio Grande. Este período caracterizou-se por uma maior abertura de Portugal à Ilustração, quando foi criada a Academia Real das Ciências de Lisboa, e por um incentivo ao pragmatismo inspirado nas ideias fisiocráticas — o uso das ciências para adiantamento da agricultura e da indústria de Portugal. Essa nova postura representou, ainda, um refluxo nas atividades manufatureiras no Brasil, para desenvolvimento das mesmas em Portugal, e um maior controle no comércio colonial, pelo incentivo da produção agrícola na colônia. Deste modo, o reinado de d. Maria I, ao tentar promover uma modernização do Estado, impeliu o início da crise do Antigo Sistema Colonial, e não por acaso, foi durante este período que a Conjuração Mineira (1789) ocorreu, e foi sufocada, evidenciando a necessidade de uma mudança de atitude frente a colônia. Diante do agravamento dos problemas mentais da rainha e de sua consequente impossibilidade de reger o Império português, d. João tornou-se príncipe regente de Portugal e seus domínios em 1792, obtendo o título de d. João VI com a morte da sua mãe no Brasil em 1816, quando termina oficialmente o reinado mariano.

[3]PARA ENSINAR A LER, ESCREVER E CONTAR: a cadeira de Primeiras Letras destinava-se a ensinar a ler, escrever e contar, e sob orientação inaciana, aprendia-se a religião católica. Em 1722, uma nova cartilha foi apresentada ao rei de Portugal, dom João V, chamada Nova Escola para Aprender a Ler, a Escrever e a Contar, elaborada pelo jesuíta Manoel de Andrade de Figueiredo. Integrava os estudos menores, o aprendizado de gramática e línguas latinas, matemáticas, conhecimentos morais, físicos e econômicos, indispensáveis para a formação do indivíduo. No ensino médio, cursos de humanidades e artes incluíam as aulas de gramática latina, grego e retórica, e artes e ciências da natureza. Durante os primeiros séculos do período colonial, a educação era restrita aos filhos de colonos e índios aldeados. Os jesuítas estiveram à frente do processo educacional até sua expulsão em meados do século XVIII. Após a reforma educacional empreendida por Pombal, o ensino passou a ser responsabilidade do Estado português, inclusive em territórios coloniais, e aulas régias foram introduzidas substituindo as antigas disciplinas oferecidas nos colégios jesuítas. Buscou-se secularizar a educação, preparando uma pequena elite colonial para os estudos posteriores na Europa. A educação formal era um privilégio da elite branca, ficando vetada aos escravos. No Império, a Constituição de 1824, que garantia o direito de todo cidadão brasileiro à instrução pública, não considerava o escravo como cidadão. O veto tornou-se explícito pela resolução imperial de 1º de julho de 1854 que determinava que os professores recebessem por seus discípulos “todos os indivíduos que para aprenderem as primeiras letras, lhe forem apresentados, exceto os cativos, e os afetados de moléstias contagiosas”. Como a maior parte dos cativos exercia atividades que não exigiam o domínio da leitura e da escrita, o índice de analfabetismo era quase geral entre a população escrava. Entretanto, o exercício de algumas profissões também desempenhadas por escravos, como as de alfaiate e carpinteiro, exigiam um conhecimento básico da escrita, leitura e contagem. Nesses casos, acredita-se que este aprendizado tenha se efetuado na casa do senhor, prática bastante incomum, não obstante a valorização dos escravos que sabiam ler e escrever, como se observa nos anúncios de época nos quais era recorrente a descrição das habilidades dos escravos foragidos ou à venda. Além de marcas e cicatrizes, realçavam-se atributos como ofício, habilidade musical, de leitura ou de escrita. No século XVIII, nas irmandades negras, a escrita era produzida pelos brancos que, em uma estratégia de controle ou até mesmo por devoção, ingressavam nessas associações. Variados motivos levavam os negros a aceitar a participação de brancos nas irmandades, dentre eles a falta de instrução para cuidar dos livros e para escrever e contar, exigência de cargos como os de escrivão e tesoureiro. Em 1789, os membros da Irmandade de São Benedito do Convento de São Francisco em Salvador enviam para a coroa portuguesa um pedido de exclusão dos brancos dos cargos de escrivão e tesoureiro, argumentando que, naquele ano (1789), já havia negros letrados, que “a iluminação do século [nos] tem feito inteligentes da escrituração e contadoria”. Considerando-se que as irmandades promoviam a ajuda mútua, por exemplo, na compra de alforrias, pode-se pensar que essa ajuda tenha se estendido ao campo de alfabetização. Os compromissos e outros documentos das irmandades de negros são uma das poucas fontes históricas do período colonial de autoria dos próprios, embora muitas vezes, mesmo nestas associações, a escrita ficasse a cargo de brancos.

[4]IRMÃOS PRETOS: as associações religiosas formadas por leigos desempenharam um papel muito importante na vida dos negros e seus descendentes no Brasil, o que é mais explícito no caso das irmandades. Estas se organizavam geralmente em torno da devoção a um santo, entretanto podiam funcionar ainda como associações de classe, profissão, “cor” e nacionalidade. Na colônia, existiram, portanto, irmandades de brancos, negros e mulatos. Tais associações possuíam um caráter de ajuda mútua, promovendo assistência material em vida e na morte aos seus membros, como era o caso da compra de alforrias. Proporcionavam a convivência de indivíduos de diversas origens sociais e representavam garantia de inserção social e de proteção, principalmente para os segmentos menos favorecidos. Pertencer a uma dessas associações significava dar legitimidade às práticas religiosas, contar com auxílio para as eventuais dificuldades da vida, garantir o sepultamento e a celebração de missas pelas almas. Outro fator positivo era a intensa vida social, como as festas promovidas em homenagem aos santos padroeiros ou de devoção. Acredita-se que as irmandades tenham servido de instrumento para que os africanos e os seus descendentes pudessem manter e transmitir as suas tradições, fazer contatos frequentes e preservar as suas línguas de origem. As ordens terceiras diferenciavam-se das irmandades por estarem subordinadas às tradicionais ordens religiosas de origem medieval. Como as exigências para a entrada em uma ordem terceira baseavam-se nos critérios de pureza étnica, excluía-se a participação de negros e seus descendentes. Entretanto, na prática, a obediência a esses critérios não parece ter sido tão rígida no caso brasileiro. No período pombalino, no bojo das reformas de caráter ilustrado, observa-se uma série de alterações na legislação como a revisão de critérios tradicionais de limpeza de sangue. Assim, no ano de 1773, foi anulada a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e determinado que os escravos residentes em Portugal que se encontravam na quarta geração de cativeiro e os que nascessem a partir da publicação da lei, e estivessem na terceira geração, seriam libertados. Os agraciados pela lei estariam automaticamente habilitados ao exercício de todos os ofícios e honras da monarquia, não pesando mais sobre eles a nota de “infâmia”. Na América portuguesa, o conhecimento dessas novas leis implicou no questionamento da antiga legislação discriminatória, o que permitiu, em alguns casos, a participação de negros e seus descendentes nas ordens terceiras.

[5]NÃO ENTENDENDO A LÍNGUA PORTUGUESA: provindos de diferentes regiões do continente africano, os negros escravizados no Brasil não compartilhavam uma mesma língua de origem. O convívio entre indivíduos de diferentes “nações” começava no litoral da África, onde aguardavam a partida do navio negreiro que os levariam à América na condição de escravos. Acredita-se que essa situação provisória tenha propiciado a adoção de uma língua veicular, compreensível a todos e de matriz africana. No entanto, ao desembarcarem no Brasil, eram vendidos a diferentes senhores, ocorrendo uma nova separação e mistura de povos. A política de separar os escravos de uma mesma etnia foi adotada, sobretudo, para evitar que a identidade comum facilitasse a resistência ao cativeiro. Assim, o português, língua do colonizador, foi imposta como padrão, a despeito do caldeirão cultural e linguístico do povo negro escravizado. Cabe ressaltar que, o próprio português se transformou sob a influência das diversas línguas de origem africana, bem como dos diferentes idiomas indígenas. Os africanos recém-chegados que não tinham nenhum conhecimento da língua portuguesa eram conhecidos como boçais. Os que estavam no Brasil há algum tempo e, portanto, tinham mais domínio do português, recebiam a alcunha de ladinos. Já os escravos nascidos no Brasil, integrados à cultura local, eram conhecidos como crioulos.

[6]MERCÊ: O mesmo que graça, benefício, tença e donativos. Na sociedade do Antigo Regime, a concessão de mercês era um direito exclusivo do soberano, decorrente do seu ofício de reinar. Cabia ao monarca premiar o serviço de seus súditos, de forma a incentivar os feitos em benefício da Coroa. Desse modo, receber uma mercê significava ser agraciado com algum favor (concessão de terras, ofícios na administração real, recompensas monetárias), condecoração ou título pelo rei, os quais eram concedidos sob os mais variados pretextos. Em 1808, após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi criada a Secretaria do Registro Geral das Mercês, subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, quando da recriação, no Rio de Janeiro, dos órgãos da administração do Império português. Tinha por competência o registro dos títulos de nobreza e de fidalguia concedidos como graça, benefício e recompensa pelo monarca. As formas mais frequentes de mercês eram os títulos de nobreza e fidalguia, com as terras e tenças correspondentes, os hábitos das Ordens Honoríficas, cargos e posições hereditários. A concessão de mercês era também uma forma do monarca balancear os privilégios entre seus súditos, mantendo os bons serviços prestados por quem já havia conquistado alguma graça e incentivando o bom trabalho dos que almejavam obtê-las. Com a transferência da Corte da Europa para a América, poder-se-ia crer que os súditos da terra passariam a obter mais mercês, mas a hierarquia que havia entre a metrópole e a colônia, reproduzida na concessão de benefícios acabaria por se manter na colônia, mesmo depois da elevação a Reino Unido. Poucos títulos de nobreza foram concedidos, uma vez que na América não havia a nobreza de sangue, de linhagem, mas somente a concedida por grandes favores prestados ao reino, políticos ou militares. Entre as ordens honoríficas observa-se que houve a concessão de mais títulos, mas a maioria de baixa patente ou menor importância, os mais altos graus ainda eram reservados para a nobreza metropolitana. Mesmo concedendo hábitos, títulos de cavaleiros, posições e cargos, as mercês reservadas aos principais da colônia eram inferiores àquelas reservadas aos grandes da metrópole.

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