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Sala de aula

Escrito por cotin | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 20h17 | Última atualização em Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 20h18

Repressão ao Tráfico

Notificação ao príncipe regente informando sobre o destino da embarcação Saudade que ancorou em Nova Nazaré. Segundo o documento, esta embarcação estava praticando o comércio de escravos e ancorou no porto de Luanda, em razão de possíveis ataques e apreensão da carga. A embarcação foi abordada pelo navio Bertioga sob o comando do lord Morgell que, alegando estar auxiliando e protegendo o comércio na costa da África,  solicitou explicações e despachos para o mestre do navio.  Através desta fonte, ilustra-se uma das situações presentes no cotidiano de quem se dedicava ao tráfico de escravos no início do século XIX.


Conjunto documental: Ministério dos Estrangeiros e da Guerra. Conselho Supremo Militar
Notação: 4H-69
Datas - limite: 1811-1811
Título do fundo ou coleção: Diversos GIFI
Código do fundo: OI
Argumento de pesquisa: escravos, tráfico de
Data do documento: -
Local: Angola
Folha(s): _

 

“Diz Francisco Dias Forte, mestre do brigue nacional Saudade, pertencente a praça da Bahia, que saindo daquele porto em 28 de maio do corrente ano a comércio lícito de escravos[1] em Cabinda[2], com escalas pelas Ilhas de Cabo Verde[3], São Tomé e Príncipe[4], com efeito derrotou o brigue naquela direção até a altura do Cabo de Palmas. Chegando ai determinou o caixa de negociação Antônio José de Souza e Araújo, seguir costa abaixo até Cabinda e como se no trajeto houvesse notícia de que uma galera espanhola denominada Dama de Cádiz havia atacado uma embarcação na Bahia chamada Marcial, roubando-lhe 600 escravos, mandou o caixa fundear o navio em um surgidouro de Nova Nazareth, que demore já ao sul do equador e aí pôs sua feitoria[5] e abriu negócio. Trinta dias ou mais esteve ali o brigue do suplicante e com em parte começassem a faltar mantimentos e em parte a se corromperem pelos danos causados pela água, mandou o caixa seguir o brigue para Luanda em reino de Angola[6] afim de ai se abastecer dos que carecia para a população e para os escravos que devia reter. Entendido porém o suplicante que a viagem para Luanda poderia ser condenada a má sorte de contrabando de escravos[7] se o Brigue fosse encontrado por algum cruzador britânico, pretextou a necessidade de arribada por força maior de mar e vento de baixo de cujos pressupostos entrou, fez os seus protestos sucessivos  e preparava-se a receber os mantimentos que fora buscar, quando acontecendo estar no mesmo porto fundeado a corveta Bertioga, o comandante desta lhe comunicou haver suspeitas contra o brigue do suplicante e ser por isso  necessário que ele lhe fizesse ser os meus despachos e lhe contasse as circunstâncias e sucesso da viagem. Prestou-se o suplicante imediatamente a requisição daquele comandante e devendo esperar em resposta que se desse por satisfeito e lhe prestasse o auxílio que lhe pedira, não aconteceu assim, antes ao contrário mandou um escaler com gente, afim de suspender-se o brigue, como com efeito se suspendeu para Cabinda, asseverando que ali o auxiliaria, por ser porto que se compreendia nos da estação do seu comando. Apenas fora de Luanda o brigue, mandou o comandante  para dentro dele um cabo e quatro soldados armados, e dando reboque ao brigue, assim foi levado até Cabinda prometendo todavia que dali o faria comboiar pelo brigue escuna Feliz, até o porto do seu negócio. Chegado porém o brigue a Cabinda outro projeto concebeu o comandante da Bertioga, por quanto ordenou que o brigue do suplicante devia seguir para o Rio de Janeiro devidamente protestando para este violento procedimento as desconfianças ou suspeitas infundadamente levantas em Angola, sendo uma delas de não ter carga alguma a bordo quando era patente onde se havia a descarregado, acrescentando que só aqui podia purificar-se dessa desconfianças. Tais são as circunstancias os procedimentos que arrastaram os suplicante a esse porto onde acaba de entrar debaixo de presa e a onde assim se acha sem causa junta, nem motivo algum se quer plausível para cobrar procedimento tão irregular e arbitrário. E porquanto tudo o que o suplicante tem recontado é fiel verdade e põe em toda a sua luz a sem razão, a injusta e possível arbitrariedade com que o comandante da Bertioga se houvera contra o brigue do suplicante, cuja a viagem e negociação ficou esta arte inteiramente malograda e perdida com irremediável dano de seus proprietários, seguradores e mais interessados, em nome de todos os quais tem o suplicante devida e oportunamente protestado, para em tempo chamar aquele comandante a responsabilidade e o obrigar por si e por quem mais o deva fazer, a indenização dos avultadíssimos prejuízos, perdas e danos e lucros cessantes, provenientes de semelhantes fato, recorre portanto o suplicante a benigna e suprema providência V.M.I. Para que haja por bem mandar relaxar incontinente ao dito brigue Saudade e restitui-lo ao comando e posse do suplicante, salvo o seu direito as ações que lhe competirem por si e por quem representa, contra referido comandante Lord Morgell, que havendo sido mandado para auxiliar e proteger o comercio nacional na costa de África se tem desta sorte tornado o seu perseguidor.” 

 

[1] ESCRAVOS [AFRICANOS]: pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[2] CABINDA: pequena porção de terra limitada ao norte pela República do Congo e ao sul e oeste pela República Democrática do Congo (antiga República do Zaire), compreende uma parcela do antigo reino do Luango e a quase totalidade dos velhos reinos do Ngoio e Cacongo. Portugueses, holandeses e ingleses estabeleceram postos de comércio, fábricas de extração de madeira e de óleo de palma nessa região. Após 1830, e especialmente nos anos de 1840, os esforços antiescravistas britânicos estimularam os negociantes a multiplicar os pontos de embarque, visando o contrabando de escravos para as plantações do Brasil e Cuba. Cabinda parece ter servido como o maior ponto de aterrissagem para mercadorias vindas do Brasil, Inglaterra e Estados Unidos. Depois de descarregar as mercadorias em Cabinda, os negociantes as direcionavam – por barco ou por terra – para a Ponta da Lenha, onde seriam utilizadas para adquirir escravos. Em praticamente todas as listagens de escravos vindos para o Rio de Janeiro, havia referências aos cabindas, grupo que parecia tão numeroso quanto o dos angolas ou congos. Por ocasião da Conferência de Berlim (1884-1885), quando simultaneamente nasceram o Congo Belga (ex-Zaire e atual República Democrática do Congo) e o Congo Francês (ex-Congo Brazzaville e atual República do Congo), a atribuição de Cabinda a Portugal foi internacionalmente confirmada, adotando-se a designação Congo português.

[3] CABO VERDE: província ultramarina portuguesa próxima à costa africana descoberta em 1460. O arquipélago tornou-se um ponto estratégico nas rotas marítimas, em função de sua posição geográfica que o colocava a meio caminho da América do Sul e da Europa. O arquipélago é composto por dez ilhas divididas em dois grupos: o grupo de barlavento [Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boavista] e o grupo de sota-vento [Maio, Santiago, Fogo e Brava]. A colonização iniciou-se logo após sua descoberta e Cabo Verde passou a monopolizar o tráfico de escravos da Guiné quatro anos depois. Através de uma carta régia de 1466, foi concedido aos habitantes de Cabo Verde o direito perpétuo de fazer o comércio e o tráfico de escravos, em todas as regiões da Costa da Guiné (do rio Senegal à Serra Leoa). Mercadores fixam-se na ilha de Santiago (primeira a ser povoada), dando início a uma próspera comunidade de comerciantes marítimos que, ao longo dos séculos, vão abastecer de mão de obra escrava o sul dos Estados Unidos, o Caribe e o Brasil. Com a proibição do tráfico negreiro, a economia do arquipélago entrou em decadência.

[4] SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE: arquipélago situado no golfo da Guiné, na costa oeste da África, cuja capital é São Tomé. Abrange, além das duas ilhas que lhe dão o nome, alguns ilhéus adjacentes que foram descobertos pelos navegadores portugueses João de Santarém e Pedro Escobar em 1471. Dedicando-se inicialmente à cultura da cana-de-açúcar, cuja produção entrou em declínio com o crescimento da atividade açucareira no Brasil, o arquipélago tornou-se um importante entreposto de escravos no período colonial. Essa atividade somente foi encerrada em 1876, quando foi decretada a abolição da escravidão nas ilhas.

[5] FEITORIAS: de origem mediterrânea e medieval, as feitorias eram armazéns fortificados de que se valeram os portugueses no desenvolvimento das suas atividades comerciais. As primeiras feitorias portuguesas surgiram por ocasião da conquista da costa africana, sendo estes os locais destinados ao comércio com os nativos. Com a descoberta do Brasil e o início da exploração do pau-brasil, as feitorias foram instaladas também aqui, com o mesmo propósito de possibilitar o desenvolvimento da atividade comercial. O fim do período das feitorias no Brasil coincide com o início do seu processo de colonização, marcado pela criação das capitanias hereditárias.

[6] ANGOLA: localiza-se na região sudoeste da África. Como colônia portuguesa tem seu início em 1575, a partir do contrato de conquista e de colonização recebido da Coroa pelo explorador Paulo Dias de Novaes, face ao sucesso obtido na corte do Ndongo, conforme J. Vansina no capítulo “O reino do Congo e seus vizinhos” (História Geral da África, vol. V, Unesco, 2010). A colônia viria a se chamar Angola, nome atribuído pelos portugueses, inspirado no título ngola dado ao rei do Ndongo, região constituída mais pela submissão de grupos a uma autoridade maior, por alianças ou guerra, do que por uma delimitação territorial como explica Marina de Mello e Souza (Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola. São Paulo: Edusp, 2018). No ano seguinte é criada a vila de São Paulo de Luanda, da qual Dias de Novaes foi o primeiro governador e capitão geral, conforme o modelo implantado no Brasil, instalando-se com famílias de colonos e soldados portugueses. As pressões metropolitanas para se impor na região e as suspeitas surgidas entre os líderes locais de que os portugueses vinham para ficar levaram à eclosão de uma guerra iniciada em 1579 que durou até 1671. Entre 1641 e 1648, Angola esteve sob domínio holandês, em um movimento que não pode ser dissociado da ocupação da região nordeste da América portuguesa. Se desde o início de sua presença, os portugueses dedicaram-se ao comércio de escravos, primeiro para São Tomé e depois para o Brasil, esse negócio tornar-se-ia a principal atividade econômica da região, fazendo de Angola a grande exportadora de mão de obra compulsória para a América. Segundo a base de dados americana Atlantic Slave Trade, calcula-se que tenham saído de Angola, entre 1501 e 1866, quase 5,7 milhões de escravos. Criaram-se relações bilaterais entre Brasil e Angola, onde o primeiro produzia matérias-primas e alimentos – quer para a agro exportação, quer para o mercado interno, e Angola forneceria a força de trabalho cativo. Este eixo é, para parte da historiografia, constitutivo do sistema atlântico luso e sustenta a concepção de uma monarquia pluricontinental, na qual Angola, destacando-se a cidade de Luanda, já no século XVII era um dos seus polos. A independência de Angola só foi declarada em 1975, marcando também o fim do colonialismo português.

[7]  CONTRABANDO DE ESCRAVOS: o início do século XIX foi marcado pelas pressões da Coroa britânica para extinguir o comércio da escravatura. Com relação ao Império português, desde os primeiros tratados comerciais firmados com a Inglaterra, em 1810, o príncipe regente d. João comprometeu-se em abolir o tráfico de escravos africanos [ver abolição gradual do tráfico de escravos]. Em 1815, por ocasião do Congresso de Viena, as contínuas pressões dos ingleses levaram à instituição da interrupção do tráfico negreiro ao norte da linha do Equador. Apesar de todos esses esforços, o tráfico de escravos da África para o Desta forma, os comerciantes portugueses perdiam áreas importantes fornecedoras de mão de obra escrava, como, por exemplo, a Costa do Marfim. Após consolidada a emancipação política, o governo inglês aumentaria mais ainda o nível de exigências. D. João VI ratificou a decisão do Congresso de Viena e, em novo acordo, concedeu à Marinha britânica o direito de visita e busca, em alto-mar, nos navios suspeitos de tráfico ilegal, ou seja, em áreas não portuguesas. No entanto, o tráfico de escravos continuou bastante intenso e somente foi interrompido em 1850, através da lei Eusébio de Queirós.

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
A escravidão no Brasil colonial
A montagem do sistema colonial
A sociedade colonial: práticas e costumes
O tráfico de escravos da África para a América
 

 

 

 


 

 

 

 


 

Tratado de abolição do tráfico de escravos

Consulta realizada pelo marquês de Aguiar ao príncipe regente d. João a respeito do requerimento do mestre da escuna flor do mar, Luiz Antônio Lessa, que estava solicitando um passe daquele porto até o Pará. De acordo com o documento, a escuna estava transportando negros de Bissau, apesar da publicação do tratado de Abolição dos escravos da Equinocial para o Norte que proibia o tráfico  nessa região.  Abordando a questão da legislação proibitiva do comércio de escravos, o documento enfoca uma das primeiras ações tomadas pela Inglaterra no sentido de extinguir o tráfico de escravos.


Conjunto documental: Ministério do reino. Maranhão. Correspondência do presidente da província
Notação: IJJ9-129
Datas - limite: 1788-1816
Título do fundo ou coleção: Série interior
Código do fundo: AA
Argumento de pesquisa: escravos, repressão ao tráfico
Data do documento: 8 de outubro de 1816
Local: São Luiz do Maranhão
Folha(s): -

“Illmo, Exmo, Snr.

No dia 28 do mês passado, deu fundo fora da Barra deste porto a Escuna Flor do Mar, que é mestre Luiz Antônio Lessa, e como lhe arrebentasse a amarra que entrou na Barra, dando fundo junto a fortaleza da mesma. Constando-me, pois que vinha de Bissau[1] com pretos lhe mandei logo por guardas de saúde[2], e ordem ao governador daquele forte para vigiar, a que não tivesse comunicação com a terra; visto que os seis meses da publicação do Tratado d’ Abolição dos escravos da Equinocial para o Norte[3], estavam findos neste capitania; e portanto já este tráfico, navegação proibida.

Passados dois dias, me requereu o mestre passe para seguir a sua viagem para o Pará, como consta da sua petição ...

Para instruções e fundamento do que devia resolver, lhe fiz exibir os despachos e documentos necessários que legalizassem o que dizia no seu requerimento observando que o passaporte era de Lisboa para Canárias[4], e de há voltar para aquela capital; mostrando ao mesmo tempo pelo termo de arribada, que juntou ter entrado em Bissau abrigado dos sinistros, e temporais; de cujo porto recebera a frete, cento e trinta e quatro pretos, pertencentes a diversos proprietários ali existentes, para conduzir a este Porto, como mostrava pela guia daquela Alfândega; alegando também de os ter recebido de baixo da condição, que sendo-lhe neste porto já desejo(?) de dever continuar o seu destino até o Pará ....

Assim sendo portanto este caso inteiramente novo e desejando eu buscar todos os meios possíveis para resolver o que melhor conviesse ao serviço de Sua Majestade, convoquei no dia 3 do corrente mês, neste Palácio do Governo os Desembargadores da rasgado Relação para a vista do sobredito requerimento e documentos juntos, ouvir seus pareceres.

Depois de ouvirem ler, e examinarem os referidos documentos, a vista do Tratado, e dos dois termos anteriormente aqui feitos sobre este concernente objeto, e de que já tive a honra de remeter as cópias a V.Exa., farão vocalmente de votos unânimes, os quatro desembargadores ... que eu definisse ao dito requerimento consentindo-lhe o passe para o Pará: porque julgaram boa fé, e legitimidade no seu pedido, e documentos; pois lhes parecia estar este caso compreendido no artigo adicional do Tratado, ainda que não expressamente. Portanto não havendo proibição absoluta da venda no Brasil, sendo esta a favor da Agricultura, e correndo ainda o prazo de seis meses a seu benefício naquela capitania, seria muito mais favorável ao bem do Estado excertada (?) esta resolução, uma vez que eram levados antes da proibição, possuídos por isso debaixo da legitimidade e boa fé, podendo-se igualmente entender supridos o passaporte e despacho, com aquela guia, principalmente não se havendo ainda designada a norma pelos dois governos, com que nos cumpria regular nesta, e semelhantes matérias a cerca da qual ainda não houve por bem Sua Majestade[5], declarar e determinar o que se devia praticar não sendo servido ata ao presente ... ou mandato ... pela sua existente, ou nova Legislação.

...

Deus guarde a V.Exa. S. Luís do Maranhão 8 de Outubro de 1816.

Illmo, Exmo, Snr. Marquês de Aguiar[6].”

 

[1] GUINÉ-BISSAU: possessão portuguesa desde 1479, sua ocupação se efetivou com a fundação da vila de Cacheu, em 1588, e o estabelecimento da capitania geral da Guiné portuguesa, em 1630. Em finais do século XVII edificou-se a fortaleza de Bissau, período em que os franceses começavam a afirmar a sua presença na região, e foi restabelecida a capitania de Bissau (1753). A região da Guiné foi uma das principais áreas de abastecimento de mão de obra escrava para as colônias ultramarinas. A designação Guiné acompanhou a expansão marítima portuguesa, englobando diversos pontos da costa ocidental, como Congo, Costa da Mina, Angola e Benguela, nomeando as primeiras conquistas da África.

[2] GUARDA DE SAÚDE: na América portuguesa, a insalubridade das cidades coloniais e a precariedade das condições de higiene da população eram uma constante. A chegada da Corte, em 1808, marcou o início de uma série de medidas na área da saúde pública, no intuito de deter o avanço de epidemias. Entre as medidas adotadas estava a inspeção sanitária dos navios, executada pelo Provedor da Saúde. As autoridades demonstraram uma atenção especial com o embarque e desembarque nos portos, instituindo a obrigatoriedade de visitas de oficiais de saúde, os guardas de saúde, aos navios, sobretudo os negreiros, em uma ação de prevenção sanitária. Esta medida também revelava a preocupação com a saúde dos escravos, visto sua importância comercial.

[3] CONGRESSO DE VIENA (1814-1815): em setembro de 1812, Napoleão Bonaparte ocupa a capital russa, Moscou, certo de que seria o primeiro passo para uma dominação sobre o Império czarista. No entanto, o czar Alexandre recusa a rendição, e os invasores franceses logo se viram em uma cidade abandonada por seus habitantes e deliberadamente queimada por eles. Com sérios problemas de abastecimento e escassez crônica de víveres, encurralado pela chegada iminente do inverno, ao exército francês não resta outro meio a não ser a retirada em uma situação cada vez pior: a saída deu-se com as armas inimigas em seu encalço. A perseguição se estendeu por meses a fio e, enquanto o exército russo atravessava a Europa Oriental e Central a caminho da França, uma aliança de apoio começou a se formar, liderada pela Áustria e Prússia e com o apoio da Grã-Bretanha. Assolados pelo frio e pela fome, perseguidos pelos inimigos russos, os soldados chegam de volta à pátria em reduzido número, esfomeados e maltrapilhos. Em março de 1814, o exército de Alexandre entra em Paris e sela o desastre bonapartista. Apesar do seu breve retorno durante alguns meses no ano seguinte, a era de guerras e política imperialista promovidas pelo monarca francês chegava ao fim. Napoleão parte para o exílio na ilha de Elba, de onde sairia no ano seguinte para tentar retomar seu império. O período de ilusão durou cem dias, interrompido pela derrota em Waterloo diante dos britânicos, depois da qual partiria para seu último exílio na ilha de Santa Helena. A aliança formada em torno da Rússia atuou no Congresso de Viena, iniciado em setembro de 1814, tomando para si a tarefa de “reconstruir a Europa”, muito nos moldes do que havia sido antes da ascensão de Napoleão. O objetivo do congresso era, além de reorganizar o mapa político europeu, reestruturar as relações entre seus diversos estados, incluindo aí suas colônias e políticas comerciais. Determinava, então, que as antigas monarquias europeias depostas por Napoleão reassumissem seus tronos, no entanto a monarquia portuguesa estava estabelecida no Rio de Janeiro desde 1808, uma situação considerada ilegítima, sendo Lisboa a sede do governo reconhecida pelo congresso. Para contornar tal objeção, foi necessária a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve. Além disso, encerrou a chamada “Questão Caiena”, marcada pela discussão entre Portugal e França acerca da delimitação de suas possessões na América pelo rio Oiapoque. Como resultado das discussões em Viena, a França concordou em recuar os limites de sua colônia até a divisa proposta pelo governo português. Entretanto, somente em 1817, Caiena foi realmente devolvida à França, após a assinatura de um convênio entre este país e o novo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. A questão do tráfico de escravos africanos, também foi abordada pelo congresso. A pressão inglesa contra o comércio da escravatura, iniciada em inícios do século XIX, resultou na interrupção do tráfico ao norte da linha do Equador. Esse acordo comprometia áreas importantes de abastecimento de mão de obra escrava na América portuguesa. Em 1817, d. João VI ratificou a decisão e, por um novo acordo, concedeu à Inglaterra o direito de visita e busca nos navios suspeitos de tráfico em alto-mar, sob pena de terem sua carga jogada no oceano. O tom do congresso, como não podia deixar de ser, era abertamente conservador. As nações mais apegadas às fórmulas do Antigo Regime (Portugal, então metrópole do Brasil, entre elas) apostaram em um recuo das ideias liberais e no fortalecimento do colonialismo. Contudo, se uma onda conservadora varreria a Europa, ela não foi capaz de impedir o desenvolvimento e avanço do liberalismo político por muito tempo e muito menos o de conter o movimento de libertação das antigas colônias, em especial, nas Américas. O colonialismo ganharia outras feições, teria outros senhores a comandar de forma diferente antigos territórios, mas o modelo ibérico encontrava-se esgotado.

[4] CANÁRIAS, ILHAS: conhecidas na Antiguidade como “Ilhas Afortunadas”, localizam-se no oceano Atlântico, ao norte da costa da África. Habitado originalmente pelo povo guanche, a partir do século XIV, o arquipélago, formado por sete ilhas, mostrou-se estratégico para as frotas navais que competiam pelo domínio do Oceano Atlântico e das terras até então descobertas na costa africana. Foi sucessivamente visitado por navegantes vindos de Portugal (que o ocuparam em 1335), italianos, franceses e espanhóis, até que o papa Clemente VI reconheceu a soberania espanhola sobre as ilhas em 1344, em prejuízo dos portugueses, que também as reivindicavam. Pelo Tratado de Alcáçovas, celebrado entre os dois reinos ibéricos, em 1749, e ratificado no ano seguinte, Portugal obtinha o reconhecimento do seu domínio sobre a ilha da Madeira, o arquipélago dos Açores, o de Cabo Verde e a costa da Guiné, enquanto que Castela recebia as ilhas Canárias, entre outras resoluções.

[5]JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[6] CASTRO, D. FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E (1752-1817): 1o conde de Aguiar e 2o marquês de Aguiar, era filho de José Miguel João de Portugal e Castro, 3º marquês de Valença, e de Luísa de Lorena. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, ocupou vários postos na administração portuguesa no decorrer de sua carreira. Governador da Bahia, entre os anos de 1788 a 1801, passou a vice-rei do Estado do Brasil, cargo que exerceu até 1806. Logo em seguida, regressou a Portugal e tornou-se presidente do Conselho Ultramarino, até a transferência da corte para o Rio de Janeiro. A experiência adquirida na administração colonial valeu-lhe a nomeação, em 1808, para a Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, pasta em que permaneceu até falecer. Durante esse período, ainda acumulou as funções de presidente do Real Erário e de secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foi agraciado com o título de conde e marquês de Aguiar e se casou com sua sobrinha Maria Francisca de Portugal e Castro, dama de d. Maria I. Dentre suas atividades intelectuais, destaca-se a tradução para o português do livro Ensaio sobre a crítica, de Alexander Pope, publicado pela Imprensa Régia, em 1810.

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
A escravidão no Brasil colonial
A montagem do sistema colonial
A sociedade colonial: práticas e costumes
O tráfico de escravos da África para a América

Apresamento de Navios Negreiros

 Carta do inspetor da Contadoria José Caetano Gomes ao rei d. João VI, informando do requerimento enviado pelos armadores dos navios de escravatura apreendidos pelos ingleses. Segundo o documento, os armadores estavam reclamando suas perdas baseando-se no acordo firmado com a Inglaterra na Convenção de Viena em 1815.   Por este documento,  verifica-se os primeiros esforços da coroa britânica no sentido de por fim ao tráfico de escravos.


Conjunto documental: Junta do comércio, falências comerciais
Notação: caixa 369, pct.03
Datas - limite: 1813-1840
Título do fundo ou coleção: Junta do comércio, agricultura, fábrica e navegação
Código do fundo: 7x
Argumento de pesquisa: escravos, repressão ao tráfico
Ementa: carta do inspetor da contadoria, José Caetano Gomes à sua majestade:
Data do documento: 08 de outubro de 1821
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): _

“Acompanho a informação que me deram os dois contadores sobre o requerimento de José Tavares França, que baixou à Real Junta[1]  com aviso da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, de 28 de maio de 1821, e para vossa alteza[2]  conhecer a sem razão semelhante requerimento, vou resumir este negócio desde seu princípio. Os armadores dos navios de escravatura[3]  tomados pelos ingleses, fizeram as suas contas e justificações para reclamarem em Londres as suas perdas e lucros arbitrados. Com o ajuste da Convenção de Viena[4]  de 22 de janeiro de 1815, em que o governo inglês prometeu 300 mil libras esterlinas[5] e seus juros para sua majestade indenizar estas perdas, voltaram os autos que estavam na Inglaterra ao Rio de Janeiro. Por eles formaram os armadores um mapa, onde diziam qual era a sua perda real e o excesso das 300 mil libras serem lucros, a ratear pelos capitães desembolsados. Assinaram todos este mapa por si, e como procuradores[6]  de outros pedindo uma e muitas vezes a confirmação a sua majestade, que consultando esta Junta, assentiu à pretensão, conhecendo que sendo as 300 mil libras para eles, e consentindo todos unânimes era justo que se confirmasse o que pediam no mapa. Depois de muitos meses sem que no decurso deles aparecesse um só requerimento nesta Junta contra este mapa; depois de baixar a consulta à favor, José Tavares França, que tinha assinado por si, e como procurador de outros reclamou a sua assinatura, e as que tinha feito como procurador, com o pretexto de não ter poderes para ajustes, e haver no mapa quantias exageradas em alguns navios, em seu prejuízo. Consultou de novo a Junta e mandou sua majestade que não valesse mais o mapa, que se examinasse todos os autos dado por árbitros, para se conhecer a perda real de cada um, e fossem sentenciados os laudos segundo seu merecimento pela Junta.

Requer novamente José Tavares a sua majestade, pedindo que se lhe mande dar vista dos laudos em todos os autos, para dizer contra o que lhe parecesse. Consultou a Junta ser injusta esta pretensão ... que ia suscitar, sem outra utilidade mais que a de satisfazer paixões particulares de uns contra outros, e que só se devia permitir vista a cada um, para dizer sobre os seus autos o que lhe conviesse. Foi sua majestade servido assentir ao parecer da Junta.

Não fica ainda aqui José Tavares; torna a requerer a sua majestade contra a confirmação das sentenças de três navios, designado quantias excessivas dadas pelos árbitros. Foram os autos chamados à Junta e examinados nela escrupulosamente, se achou ser uma calúnia, e falsas as alegações, o que assim se consultou a sua majestade que mandou escusar o requerimento, sem mais consequência.

Agora pretende novamente sem título algum ser tesoureiro de ausentes para receber as pequenas carregações de particulares, e soldados não pagos, de que já foi repelido por uma consulta.

Quer que se lhe paguem fretes de gêneros, que foram em navios tomados de que ninguém se lembrou ainda, e despesas feitas com os processos há tantos anos, anos depois de estar tudo acabado, e não merecem atenção, por se deverem em tal caso contemplar todos os interessados, que sendo tantos nenhum o fez, sendo lhe reservado esta lembrança tão fora de tempo. Parece-me que deve ser escusado o requerimento do suplicante. Vossa alteza real mandará o que for servido O deputado inspetor da Contadoria José Caetano Gomes. ”

 

[1] REAL JUNTA DO COMÉRCIO (BRASIL): em 23 de agosto de 1808, em consequência da abertura dos portos ao comércio estrangeiro, foi estabelecida no Brasil a Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, em substituição à Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, incorporando suas funções. Foi organizada segundo o modelo da Real Junta do Comércio de Lisboa, instrumento de fiscalização e gestão do comércio ultramarino, importante no fomento à atividade agrícola e industrial. A junta acumulava funções judiciais e administrativas e entre suas funções, destacam-se: matricular os negociantes de grosso trato e seus caixeiros; regular a instalação de manufaturas e fábricas; cuidar do registro de patentes de invenções; conceder provisões de fábricas; administrar a pesca de baleias; faróis; estradas, pontes e canais; importação e exportação; além de solucionar litígios entre negociantes; dissoluções de sociedades mercantis; administração de bens de negociantes falecidos ou de firmas falidas ou em concordata, entre outros. Teve como primeiro presidente o conde de Aguiar, Fernando José de Portugal e Castro, que tomou posse em 18 de maio de 1809. Contam-se entre seus deputados, negociantes de grosso trato que exerciam o tráfico de africanos, evidenciando o papel de destaque dessa atividade no Brasil, o que incluía o recebimento de comendas como a Ordem de Cristo entre outras distinções. (FLORENTINO, Manolo et al. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (Séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31 (2004), 83-126).

[2] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[3] NAVIOS DE ESCRAVATURA: pouco se sabe como eram os navios que transportaram milhões de africanos escravizados pelas rotas de comércio do Atlântico. Segundo Jaime Rodrigues, no Dicionário da escravidão e liberdade (2018), são narrativas de viajantes e ilustrações de artistas estrangeiros que nos trazem limitadas informações do que representou a migração forçada de africanos para o continente americano. Chamados navios negreiros ou tumbeiros foram se transformando e adaptando-se ao comércio de mercadoria humana ao longo dos mais de três séculos em que cruzaram o oceano. O tráfico de escravos para o Brasil fazia-se em diferentes embarcações, no entanto, usualmente, eram navios bastante manobráveis devido as águas rasas dos ancoradouros africanos; velozes, para escapar da marinha britânica após a proibição do tráfico em 1831, e baratos, para atenuar os prejuízos em caso de naufrágio ou captura. Ainda segundo Rodrigues, em seu artigo Dossiê Tráfico Negreiro (História Viva, abril de 2009), na Bahia encontravam-se os principais estabelecimentos para construção e reparo desses navios, utilizando como matéria prima as madeiras obtidas no nordeste brasileiro, transportadas por indígenas até o litoral. Mas, foi o porto do Rio de Janeiro que registrou o maior número de entrada de navios negreiros na América, principalmente após a transferência da Corte no século XVIII, onde também seria instalada a infraestrutura necessária para construção e reparo naval. Tais embarcações realizavam a travessia atlântica atulhadas de negros cativos – de cem a seiscentas pessoas de acordo com a capacidade da embarcação –, muitas vezes numa quantidade maior do que seria suportada. Os escravos eram separados por sexo, mantidos nus, amontoados, com as mãos ou pés atados, acorrentados uns aos outros, mal alimentados – numa tentativa de diminuir sua resistência – e sujeitos a doenças. Passavam toda ou grande parte da viagem, que poderia durar de um a três meses, no porão do navio – divididos em três patamares, com altura de menos de meio metro cada um. Eram locais úmidos, mal ventilados, apertados e mal-cheirosos. O índice de mortalidade era bastante elevado – seja pelas epidemias que assolavam os navios ou pela violência da tripulação –, chegando a 1/4 do número de pessoas embarcadas. Rebeliões eram frequentes, e algumas revoltas resultavam na conquista da embarcação pelos escravos, como a do navio espanhol Amistad, em 1839. Capturados por um navio de guerra norte-americano, foram julgados pela Suprema Corte dos EUA, que os declarou livres, de acordo com o direito internacional que proibia o comércio de escravos. Os navios de escravatura transportaram cerca de 12,5 milhões de africanos para outras terras, sobretudo na América. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos negros, um total de 4,8 milhões de africanos.

[4] CONGRESSO DE VIENA (1814-1815): em setembro de 1812, Napoleão Bonaparte ocupa a capital russa, Moscou, certo de que seria o primeiro passo para uma dominação sobre o Império czarista. No entanto, o czar Alexandre recusa a rendição, e os invasores franceses logo se viram em uma cidade abandonada por seus habitantes e deliberadamente queimada por eles. Com sérios problemas de abastecimento e escassez crônica de víveres, encurralado pela chegada iminente do inverno, ao exército francês não resta outro meio a não ser a retirada em uma situação cada vez pior: a saída deu-se com as armas inimigas em seu encalço. A perseguição se estendeu por meses a fio e, enquanto o exército russo atravessava a Europa Oriental e Central a caminho da França, uma aliança de apoio começou a se formar, liderada pela Áustria e Prússia e com o apoio da Grã-Bretanha. Assolados pelo frio e pela fome, perseguidos pelos inimigos russos, os soldados chegam de volta à pátria em reduzido número, esfomeados e maltrapilhos. Em março de 1814, o exército de Alexandre entra em Paris e sela o desastre bonapartista. Apesar do seu breve retorno durante alguns meses no ano seguinte, a era de guerras e política imperialista promovidas pelo monarca francês chegava ao fim. Napoleão parte para o exílio na ilha de Elba, de onde sairia no ano seguinte para tentar retomar seu império. O período de ilusão durou cem dias, interrompido pela derrota em Waterloo diante dos britânicos, depois da qual partiria para seu último exílio na ilha de Santa Helena. A aliança formada em torno da Rússia atuou no Congresso de Viena, iniciado em setembro de 1814, tomando para si a tarefa de “reconstruir a Europa”, muito nos moldes do que havia sido antes da ascensão de Napoleão. O objetivo do congresso era, além de reorganizar o mapa político europeu, reestruturar as relações entre seus diversos estados, incluindo aí suas colônias e políticas comerciais. Determinava, então, que as antigas monarquias europeias depostas por Napoleão reassumissem seus tronos, no entanto a monarquia portuguesa estava estabelecida no Rio de Janeiro desde 1808, uma situação considerada ilegítima, sendo Lisboa a sede do governo reconhecida pelo congresso. Para contornar tal objeção, foi necessária a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve. Além disso, encerrou a chamada “Questão Caiena”, marcada pela discussão entre Portugal e França acerca da delimitação de suas possessões na América pelo rio Oiapoque. Como resultado das discussões em Viena, a França concordou em recuar os limites de sua colônia até a divisa proposta pelo governo português. Entretanto, somente em 1817, Caiena foi realmente devolvida à França, após a assinatura de um convênio entre este país e o novo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. A questão do tráfico de escravos africanos, também foi abordada pelo congresso. A pressão inglesa contra o comércio da escravatura, iniciada em inícios do século XIX, resultou na interrupção do tráfico ao norte da linha do Equador. Esse acordo comprometia áreas importantes de abastecimento de mão de obra escrava na América portuguesa. Em 1817, d. João VI ratificou a decisão e, por um novo acordo, concedeu à Inglaterra o direito de visita e busca nos navios suspeitos de tráfico em alto-mar, sob pena de terem sua carga jogada no oceano. O tom do congresso, como não podia deixar de ser, era abertamente conservador. As nações mais apegadas às fórmulas do Antigo Regime (Portugal, então metrópole do Brasil, entre elas) apostaram em um recuo das ideias liberais e no fortalecimento do colonialismo. Contudo, se uma onda conservadora varreria a Europa, ela não foi capaz de impedir o desenvolvimento e avanço do liberalismo político por muito tempo e muito menos o de conter o movimento de libertação das antigas colônias, em especial, nas Américas. O colonialismo ganharia outras feições, teria outros senhores a comandar de forma diferente antigos territórios, mas o modelo ibérico encontrava-se esgotado.

[5] LIBRA ESTERLINA: unidade monetária e moeda inglesa, que após a revolução industrial começou a ser aceita internacionalmente.

[6] PROCURADOR: na esfera pública, como funcionários do Estado, os procuradores atuaram em cargos providos pelo rei, como o procurador dos feitos da Coroa, por exemplo, cargo criado em 1548, e tendo por finalidade representar a Coroa nos assuntos relativos à Fazenda. Também foram providos em cargos como o procurador dos índios para dispor sobre a validade do cativeiro indígena, ou representaram instâncias como as Câmaras municipais, representando as oligarquias locais do Brasil ou de Goa por exemplo, junto às Cortes. Ainda no âmbito privado encontra-se a figura do procurador em contratos de arrematação de negociantes, que da colônia disputavam os contratos na metrópole por meio de procuradores, como nos casos da cobrança de tributos, adquirindo ainda participação nas sociedades (Luiz Antônio Silva Araújo, Contratos na América portuguesa (1707-1750) Disponível em https://www.academia.edu/download/56270738/Artigo_Encontro_Aracaju.pdf).

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
A escravidão no Brasil colonial
A montagem do sistema colonial
A sociedade colonial: práticas e costumes
O tráfico de escravos da África para a América
 


 

Corso

Carta enviada ao vice-rei conde de Rezende pelo desembargador José Antônio Ribeiro, informando sobre o requerimento de José Antônio de Santana, mestre da corveta Rainha dos Anjos. Segundo o documento, esta embarcação, carregada de escravos, havia sido apresada por um corsário francês e levada para Montevidéu. Este documento testemunha a importância dos escravos enquanto mercadorias, visto serem os navios negreiros alvos de corsários.

Conjunto documental: Alfândega do Rio de Janeiro
Notação: caixa 495, pct 01
Datas - limite: 1714-1807
Título do fundo ou coleção: Vice-reinado
Código do fundo: D9
Argumento de pesquisa: escravos, tráfico de
Data do documento: 18 de setembro de 1799
Local: Rio de janeiro
Folha(s): -

Leia esse documento na íntegra

 

“Ilmo e Exmo Senhor

Para melhor informar à V. Exª o requerimento de José Antônio de Santana, mestre da corveta Rainha dos Anjos, procedi a justificação judicial de testemunhas, e à vista delas, se reconhece a verdade de que a mesma embarcação saindo de Angola[1] carregada de escravos[2] fora apresada pelo corsário[3] francês republicano, e levada a Montevidéu, de onde viera por conta, e risco do mesmo proprietário carregada de efeito do país para o porto desta cidade com destino de os enviar ao Reino.  Pelo que, como se verifica que não fora a comerciar, está no termo de ser admitida à descarga, e despacho d’ Alfândega[4] para nela pagar os competentes direitos de entrada[5]. Deus guarde à V. Exª. Rio 18 de setembro de 1799. 

Illmo. e Exmo. Sr. Conde de Rezende[6]

 Juiz e ouvidor d’Alfândega

O desembargador José Antônio Ribeiro.”

 

[1] ANGOLA: localiza-se na região sudoeste da África. Como colônia portuguesa tem seu início em 1575, a partir do contrato de conquista e de colonização recebido da Coroa pelo explorador Paulo Dias de Novaes, face ao sucesso obtido na corte do Ndongo, conforme J. Vansina no capítulo “O reino do Congo e seus vizinhos” (História Geral da África, vol. V, Unesco, 2010). A colônia viria a se chamar Angola, nome atribuído pelos portugueses, inspirado no título ngola dado ao rei do Ndongo, região constituída mais pela submissão de grupos a uma autoridade maior, por alianças ou guerra, do que por uma delimitação territorial como explica Marina de Mello e Souza (Além do visível: poder, catolicismo e comércio no Congo e em Angola. São Paulo: Edusp, 2018). No ano seguinte é criada a vila de São Paulo de Luanda, da qual Dias de Novaes foi o primeiro governador e capitão geral, conforme o modelo implantado no Brasil, instalando-se com famílias de colonos e soldados portugueses. As pressões metropolitanas para se impor na região e as suspeitas surgidas entre os líderes locais de que os portugueses vinham para ficar levaram à eclosão de uma guerra iniciada em 1579 que durou até 1671. Entre 1641 e 1648, Angola esteve sob domínio holandês, em um movimento que não pode ser dissociado da ocupação da região nordeste da América portuguesa. Se desde o início de sua presença, os portugueses dedicaram-se ao comércio de escravos, primeiro para São Tomé e depois para o Brasil, esse negócio tornar-se-ia a principal atividade econômica da região, fazendo de Angola a grande exportadora de mão de obra compulsória para a América. Segundo a base de dados americana Atlantic Slave Trade, calcula-se que tenham saído de Angola, entre 1501 e 1866, quase 5,7 milhões de escravos. Criaram-se relações bilaterais entre Brasil e Angola, onde o primeiro produzia matérias-primas e alimentos – quer para a agro exportação, quer para o mercado interno, e Angola forneceria a força de trabalho cativo. Este eixo é, para parte da historiografia, constitutivo do sistema atlântico luso e sustenta a concepção de uma monarquia pluricontinental, na qual Angola, destacando-se a cidade de Luanda, já no século XVII era um dos seus polos. A independência de Angola só foi declarada em 1975, marcando também o fim do colonialismo português.

[2] ESCRAVOS [AFRICANOS]: pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, tem sido estudado. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[3] CORSÁRIO: o saque, a pilhagem e o apresamento de embarcações e povoados vulneráveis há séculos têm sido realizados por grupos organizados, atuando sob as ordens de um soberano ou de forma independente. O termo pirataria define uma atividade autônoma, sem qualquer consideração política ou razões de estado (comerciais ou estratégicas), já o chamado corso integrava uma política deliberada de interceptação de carga comercial e disputa por territórios entre estados legais. Ocorria de forma intermitente em consequência do conflito de interesses de nações com algum poderio naval. Embora a intensificação das guerras de corso significasse um acirramento do conflito entre os estados, não necessariamente em tempos de paz os ataques cessavam. Muitas vezes, corsários e piratas se confundiam, pois a pilhagem facilmente saía do controle dos soberanos que a legitimavam. A partir do século XV, com as descobertas marítimas, tais atividades deslocaram-se do mar Mediterrâneo para o oceano Atlântico. Seu apogeu deu-se nos séculos XVII e XVIII, quando a Europa passava por intensa expansão da atividade marítima. Alguns corsários conquistaram uma posição bastante influente frente a seus soberanos, caso do inglês Francis Drake, que viveu na segunda metade do século XVI. Foi nomeado vice-almirante britânico depois de anos infernizando os espanhóis em suas possessões americanas e desempenhar um papel de destaque na batalha que derrotou a até então Invencível Armada e garantindo para os ingleses a supremacia dos mares, durante o episódio, chegou a aliar-se a escravos refugiados no Panamá em uma operação que terminou na pilhagem da caravana que transportava a carga anual de ouro peruano. Muitas vezes corsários presos pelos inimigos a quem atacavam contavam com um tribunal específico para determinar se estavam a serviço de um soberano ou se agiam por interesse próprio, em busca de lucro ilegal. O corso, conquanto uma atividade reconhecida como dentro de uma ordem legal, ainda assim representava um risco para aqueles que nele atuavam, já que não havia garantias de proteção por parte dos seus soberanos, que por vezes lhes davam as costas quando o vento que orientava as alianças políticas mudava de direção. Para os governos que o realizavam, entretanto, as vantagens se apresentavam de forma clara, embora não necessariamente constante: a conquista de territórios ultramarinos, assim como o estabelecimento de rotas estáveis de comércio e navegação implicavam um investimento que nem todas as coroas conseguiriam sustentar. O corso era uma forma de auferir os lucros decorrentes da empreitada da colonização e expansão marítima, sem arcar com seus custos, e ainda desestabilizar o inimigo e potencial concorrente.

[4] ALFÂNDEGAS: organismo da administração fazendária responsável pela arrecadação e fiscalização dos tributos provenientes do comércio de importação e exportação. Entre 1530 e 1548, não havia uma estrutura administrativa fazendária, somente um funcionário régio em cada capitania, o feitor e o almoxarife. Porém, com a implantação do governo-geral, em 1548, o sistema fazendário foi instituído no Brasil com a criação dos cargos de provedor-mor – autoridade central – e de provedor, instalado em cada capitania. Durante o período colonial, foram estabelecidas casas de alfândega, que ficaram sob controle do Conselho de Fazenda até a criação do Real Erário em 1761, que passou a cobrar as chamadas “dízimas alfandegárias”. Estas, no entanto, mudaram com a vinda da família real em 1808 e a consequente abertura dos portos brasileiros. Por esta medida, quaisquer gêneros, mercadorias ou fazendas que entrassem no país, transportadas em navios portugueses ou em navios estrangeiros que não estivessem em guerra com Portugal, pagariam por direitos de entrada 24%, com exceção dos produtos ingleses que pagariam apenas 15%. Os chamados gêneros molhados, por sua vez, pagariam o dobro desse valor. Quanto à exportação, qualquer produto colonial (com exceção do pau-brasil ou outros produtos “estancados”) pagaria nas alfândegas os mesmos direitos que até então vigoravam nas diversas colônias.

[5] DIREITO DE ENTRADA: os direitos de entrada eram as taxas que incidiam sobre os produtos e mercadorias que entravam no país, sendo a alfândega o órgão responsável pelo recolhimento desses tributos. Taxas alfandegárias.

[6] CASTRO, D. JOSÉ LUÍS DE (1744-1819): 2º conde de Resende foi governador e capitão-general da Bahia de 1788 a 1801, de onde seguiu para o Rio de Janeiro como vice-rei do Estado do Brasil até 1806. Considerado um administrador colonial com baixa popularidade, durante sua administração ocorreram a Conjuração Mineira e o julgamento e condenação dos envolvidos, dentre eles, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, preso, enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro. Foi responsável também pelo fechamento e pela devassa da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, academia voltada para literatura e filosofia natural, acusada pela sedição conhecida como a Conjuração do Rio de Janeiro, ocorrida em 1794. A administração de conde de Resende contribuiu para a urbanização da cidade do Rio de Janeiro e melhoria das condições sanitárias. Em relação à iluminação pública, instalou lamparinas com óleo de peixe, criou o primeiro Regulamento de Higiene, em 1797, e acabou com o despejo sanitário no Campo de Santana, aterrando a área contaminada e transformando-a em um grande “rossio”. Concluiu a reforma do Paço dos Vice-Reis, entre outras importantes obras de canalização e distribuição de água. Em 1792, a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho foi criada, instituição encarregada da formação de engenheiros militares no país. A nomeação como Marechal de Campo, em 1795, sugere que atuou nas guerras contra a França, entre 1793 e 1795, concomitantemente com o vice-reinado. De volta a Portugal, foi nomeado Conselheiro de Guerra e recebeu a Grã-Cruz da Ordem de São Bento de Avis.


Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
- No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
- No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
- A escravidão no Brasil colonial
- A montagem do sistema colonial
- A sociedade colonial: práticas e costumes
- O tráfico de escravos da África para a América

 

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