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Sala de aula

Escrito por cotin | Publicado: Sexta, 23 de Fevereiro de 2018, 19h17 | Última atualização em Quinta, 14 de Junho de 2018, 13h30

Bando do governador do Rio de Janeiro

Bando do governador do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Moraes, decretando que qualquer francês residente na cidade embarcasse no dia 28 de agosto, às três da tarde, em um navio em direção ao reino. Manda espalhar a ordem nos lugares mais públicos, advertindo que quem escondesse um francês em sua casa poderia ser punido.

Conjunto documental: Governadores do Rio de Janeiro
Notação: códice 77, vol. 22
Datas-limite: 1710-1713
Título do fundo ou coleção: Secretaria de Estado do Brasil
Código do fundo ou coleção: 86
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 27 de agosto de 1711
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 51 e 51v

 

Francisco de Castro Moraes 

Em os navios da presente frota se hão de embarcar os prisioneiros franceses[1] para cujo efeito mando que todos os sobreditos franceses estejam juntos amanhã, que se contarão 28 do presente mês pelas três horas da tarde no largo fronteiro às casas de palácio para se lhes nomearem as embarcações em que devem passar, e todo o que faltar não aparecendo às horas do dito dia será retido, e não embarcará nem se lhe dará licença para sair da prisão, e todo o morador que em sua casa tiver francês algum, e for consentido ou concorrer para que haja falta em se apresentar será castigado severamente, e preso pelo tempo que me parecer. E para que chegue a notícia de todos, e não possam alegar ignorância mandei lançar este bando[2] a som de caixas pelas ruas mais públicas desta cidade, fechando-se no lugar costumado e se registrará nos livros da Secretaria deste governo e no mais o que tocar. Dado nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro[3] aos vinte e sete dias do mês de agosto de mil e setecentos e onze, o secretário João de Oliveira a fez. Francisco de Castro Moraes[4].

 

[1] Refere-se aos franceses que foram presos durante a segunda invasão ao Rio de Janeiro, que ocorreu em 12 de setembro de 1711, sob o comando do corsário francês René Duguay-Trouin, numa tentativa de reparar e vingar a derrota sofrida por Jean François Du Clerc, que tentara ocupar a cidade alguns meses antes. Depois de pilhar a cidade e afastar a população para o interior, Duguay-Trouin exigiu o pagamento de um resgate sob pena de destruí-la. Libertou os prisioneiros feitos na primeira invasão e os cripto-judeus – judeus que praticavam sua fé e seus costumes em segredo, por receio de perseguições religiosas – que seriam enviados à Inquisição em Portugal. O governador Francisco de Castro Morais acabou permitindo que o corsário levasse todo o ouro e riqueza que conseguisse encontrar, tendo em vista que, na fuga para o interior, a população carregara consigo seus pertences de valor, tornando impossível arrecadar o resgate exigido. Enquanto esteve ocupada, a cidade do Rio de Janeiro foi duramente saqueada e teve vários prédios e construções destruídos pelo fogo ou pela tropa invasora.

[2] Nome dado a uma determinação ou decreto do governador, tratando de repasse de ordens régias sobre determinados assuntos, tendo, na maioria das vezes, caráter circunstancial para atender as necessidades momentâneas. O bando deveria ser lido nas ruas da vila ou arraial e fixado nos lugares públicos mais frequentados.

[3] A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada tendo como marco de referência uma invasão francesa. Em 1555, a expedição do militar Nicolau Durand de Villegaignon conquista o local onde seria a cidade e cria a França Antártica. Os franceses, aliados aos índios tamoios confederados com outras tribos, foram expulsos em 1567 por Mem de Sá, cujas tropas foram comandadas por seu sobrinho Estácio de Sá, com o apoio dos índios termiminós, liderados por Arariboia. Foi Estácio que estabeleceu “oficialmente” a cidade e iniciou, de fato, a colonização portuguesa na região. O primeiro núcleo de ocupação foi o morro do Castelo, onde foram erguidos o Forte de São Sebastião, a Casa da Câmara e do governador, a cadeia, a primeira matriz e o colégio jesuíta. Ainda no século XVI, o povoamento se intensifica e, no governo de Salvador Correia de Sá, verifica-se um aumento da população no núcleo urbano, das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar no entorno. No século seguinte, o açúcar se expande pelas baixadas que cercam a cidade, que cresce aos pés dos morros, ainda limitada por brejos e charcos. O comércio começa a crescer, sobretudo o de escravos africanos, nos trapiches instalados nos portos. O ouro que se descobre nas Minas Gerais do século XVIII representa um grande impulso ao crescimento da cidade. Seu porto ganha em volume de negócios e torna-se uma das principais entradas para o tráfico atlântico de escravos e o grande elo entre Portugal e o sertão, transportando gêneros e pessoas para as minas e ouro para a metrópole. É também neste século, que a cidade vive duas invasões de franceses, entre elas a do célebre Duguay Trouin, que arrasa a cidade e os moradores. Desde sua fundação, esta cidade e a capitania como um todo desempenharam papel central na defesa de toda a região sul da América portuguesa, fato demonstrado pela designação do governador do Rio de Janeiro Salvador de Sá como capitão-general das capitanias do Sul (mais vulneráveis por sua proximidade com as colônias espanholas), e pela transferência da sede do vice-reinado, em Salvador até 1763, para o Rio de Janeiro quando a parte sul da colônia tornou-se centro de produção aurífera e, portanto, dos interesses metropolitanos. Ao longo do setecentos, começam os trabalhos de melhoria urbana, principalmente no aumento da captação de água nos rios e construção de fontes e chafarizes para abastecimento da população. Um dos governos mais significativos deste século foi o de Gomes Freire de Andrada, que edificou conventos, chafarizes, e reformou o aqueduto da Carioca, entre outras obras importantes. Com a transferência da capital, a cidade cresce, se fortifica, abre ruas e tenta mudar de costumes. Um dos responsáveis por essas mudanças foi o marquês do Lavradio, cujo governo deu grande impulso às melhorias urbanas, voltando suas atenções para posturas de aumento da higiene e da salubridade, aterrando pântanos, calçando ruas, construindo matadouros, iluminando praças e logradouros, construindo o aqueduto com vistas a resolver o problema do abastecimento de água na cidade. Lavradio, cuja administração se dá no bojo do reformismo ilustrado português (assim como de seu sucessor Luís de Vasconcelos e Souza), ainda criou a Academia Científica do Rio de Janeiro. Foi também ele quem erigiu o mercado do Valongo e transferiu para lá o comércio de escravos africanos que se dava nas ruas da cidade. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes, tornando-se um dos principais portos negreiros e de comércio do país. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos de Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro da capitania. A cidade deu um novo salto de evolução urbana com a instalação, em 1808, da sede do Império português. A partir de então, o Rio de Janeiro passa por um processo de modernização, pautado por critérios urbanísticos europeus que incluíam novas posturas urbanas, alterações nos padrões de sociabilidade, seguindo o que se concebia como um esforço de civilização. Assume definitivamente o papel de cabeça do Império, posição que sustentou para além do retorno da Corte, como capital do Império do Brasil, já independente.

[4] Governador da cidade do Rio de Janeiro no período das duas invasões francesas: de Du Clerc, em 1710 e de DuGuay Trouin, no ano seguinte. Na ocasião do primeiro ataque, conseguiu, a muito custo, evitar a tomada da cidade e prender os franceses, inclusive o líder, Du Clerc, que acabou morrendo preso em 1711. Durante a investida de Trouin teve fraca atuação, não oferecendo grande resistência. Tendo sido avisado de que um grande corso de aproximava do Rio de Janeiro visando tomar a cidade, Morais deu início à preparação dos fortes e tropas, mas acabou suspendendo as medidas preventivas ao não notar nenhuma movimentação no mar. No entanto, os navios da armada francesa surpreenderam os moradores, entrando muito rapidamente na baía, sob neblina, e pegando a cidade despreparada. Alguns atribuem a essa grande surpresa a falta imediata de ação do governador. A população fugiu com seus bens de maior valor para os sertões no entorno da cidade e Morais, temeroso e aguardando socorro das tropas de Antônio de Albuquerque que viriam das Minas Gerais, acabou sucumbindo e permitindo que Du Guay pilhasse a cidade e levassem grande quantia em dinheiro e gêneros, alguns próprios, para que ele reunisse seus homens e deixasse a cidade, o que acabou acontecendo. A pedido dos vereadores, que questionaram a ação do governador, a Coroa mandou que se fizesse uma devassa dos acontecimentos ocorridos e Morais foi condenado por crime de covardia contra a cidade e os bens reais, que traía os princípios de nobreza. Teve seus privilégios cassados e foi responsabilizado pela derrota na invasão, levado à prisão perpétua em um forte na Índia.

 

Capitulação ajustada com Duguay-Trouin

Capitulação ajustada por João de Paiva Souto Maior, em nome do governador Francisco de Castro Moraes, com o corsário francês Duguay-Trouin na qual fica acertada a quantia de 610.000 cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 cabeças de boi para o resgate da cidade do Rio de Janeiro. Também fica acertada a compra de pólvora e outras mercadorias dos invasores franceses por comerciantes do Rio de Janeiro, antes de seu embarque e partida definitivos.

Conjunto documental: Livro original de termos e homenagens
Notação: códice 11
Datas-limite: 1709-1788
Título do fundo ou coleção: Secretaria do estado do Brasil
Código do fundo ou coleção: 86
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 10 de outubro de 1711
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 7-7v

 

Capitulações[1] que o governador Francisco de Castro Moraes[2] ajustou com o inimigo francês nesta cidade cujo teor é o seguinte.

Saibam quantos este público instrumento dado, e passado em pública forma do ofício de mim tabelião virem que no ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil setecentos e onze anos, aos onze dias do mês de novembro do dito ano nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro[3] em pousada do juiz de fora[4] doutor Luís Forte Bustamante aonde eu tabelião fui e sendo aí por ele me foi apresentada uma resposta do senhor governador às capitulações do senhor general francês, cujo teor é o seguinte.

Que promete de pagar seiscentos mil cruzados em doze ou quinze dias; e que por não sentir donde possa tirar mais contribuição deste povo[5], ofereceu a sua senhoria cem caixas de açúcar[6], duzentos bois, e dez mil cruzados em dinheiro, ficando com o sentimento de se não achar com mais para lhe oferecer; e o sobredito ajuste é pelo resgate da soberania da terra, Cidade Redonda[7], e suas fortalezas com todas as artilharias a elas pertencentes.

Que a pólvora se comprará[8] aos senhores oficiais franceses.

Que pela manhã irão os reféns até satisfazer o dinheiro prometido.

Que as mais condições se acomodarão com a intenção de sua senhoria para o embarque das tropas.

E que para as mercadorias enviará homens de negócio que tenham dinheiro para comprá-las[9] ficando desde hoje em paz assim com os moradores do país como com as embarcações que entrarem nele.

Campanha dez de outubro de mil setecentos e onze anos.

Le chevalier Duguay Trouin[10] = Vue par nous chevalier conseiller du roi en ses conseilles, inspecteur general de la Marine et conseiller au parlement de ilegível.

João de Paiva Souto Maior

O qual traslado de instrumento trasladei bem e fielmente do próprio que me reporto, e o corri concertei escrevi e assinei em público e raso nesta cidade aos onze dias do mês de novembro de mil setecentos e onze anos.

Em testemunho de verdade.

João de Carvalho e Matos

 

[1] As capitulações ajustadas entre o governador do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Moraes, e o corsário francês Duguay-Trouin, tornaram-se célebres: por terem sido consideradas vergonhosas, à época da segunda invasão francesa ao Rio de Janeiro em 1711, representam a rendição da cidade ante o inimigo francês que a invadiu sem encontrar maior resistência por parte dos moradores e das tropas locais. A atuação hesitante do governador, que preferiu entregar as riquezas da cidade a enfrentar os invasores, rendeu-lhe a prisão e o degredo.

[2] Governador da cidade do Rio de Janeiro no período das duas invasões francesas: de Du Clerc, em 1710 e de DuGuay Trouin, no ano seguinte. Na ocasião do primeiro ataque, conseguiu, a muito custo, evitar a tomada da cidade e prender os franceses, inclusive o líder, Du Clerc, que acabou morrendo preso em 1711. Durante a investida de Trouin teve fraca atuação, não oferecendo grande resistência. Tendo sido avisado de que um grande corso de aproximava do Rio de Janeiro visando tomar a cidade, Morais deu início à preparação dos fortes e tropas, mas acabou suspendendo as medidas preventivas ao não notar nenhuma movimentação no mar. No entanto, os navios da armada francesa surpreenderam os moradores, entrando muito rapidamente na baía, sob neblina, e pegando a cidade despreparada. Alguns atribuem a essa grande surpresa a falta imediata de ação do governador. A população fugiu com seus bens de maior valor para os sertões no entorno da cidade e Morais, temeroso e aguardando socorro das tropas de Antônio de Albuquerque que viriam das Minas Gerais, acabou sucumbindo e permitindo que Du Guay pilhasse a cidade e levassem grande quantia em dinheiro e gêneros, alguns próprios, para que ele reunisse seus homens e deixasse a cidade, o que acabou acontecendo. A pedido dos vereadores, que questionaram a ação do governador, a Coroa mandou que se fizesse uma devassa dos acontecimentos ocorridos e Morais foi condenado por crime de covardia contra a cidade e os bens reais, que traía os princípios de nobreza. Teve seus privilégios cassados e foi responsabilizado pela derrota na invasão, levado à prisão perpétua em um forte na Índia.

[3] A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi fundada tendo como marco de referência uma invasão francesa. Em 1555, a expedição do militar Nicolau Durand de Villegaignon conquista o local onde seria a cidade e cria a França Antártica. Os franceses, aliados aos índios tamoios confederados com outras tribos, foram expulsos em 1567 por Mem de Sá, cujas tropas foram comandadas por seu sobrinho Estácio de Sá, com o apoio dos índios termiminós, liderados por Arariboia. Foi Estácio que estabeleceu “oficialmente” a cidade e iniciou, de fato, a colonização portuguesa na região. O primeiro núcleo de ocupação foi o morro do Castelo, onde foram erguidos o Forte de São Sebastião, a Casa da Câmara e do governador, a cadeia, a primeira matriz e o colégio jesuíta. Ainda no século XVI, o povoamento se intensifica e, no governo de Salvador Correia de Sá, verifica-se um aumento da população no núcleo urbano, das lavouras de cana e dos engenhos de açúcar no entorno. No século seguinte, o açúcar se expande pelas baixadas que cercam a cidade, que cresce aos pés dos morros, ainda limitada por brejos e charcos. O comércio começa a crescer, sobretudo o de escravos africanos, nos trapiches instalados nos portos. O ouro que se descobre nas Minas Gerais do século XVIII representa um grande impulso ao crescimento da cidade. Seu porto ganha em volume de negócios e torna-se uma das principais entradas para o tráfico atlântico de escravos e o grande elo entre Portugal e o sertão, transportando gêneros e pessoas para as minas e ouro para a metrópole. É também neste século, que a cidade vive duas invasões de franceses, entre elas a do célebre Duguay Trouin, que arrasa a cidade e os moradores. Desde sua fundação, esta cidade e a capitania como um todo desempenharam papel central na defesa de toda a região sul da América portuguesa, fato demonstrado pela designação do governador do Rio de Janeiro Salvador de Sá como capitão-general das capitanias do Sul (mais vulneráveis por sua proximidade com as colônias espanholas), e pela transferência da sede do vice-reinado, em Salvador até 1763, para o Rio de Janeiro quando a parte sul da colônia tornou-se centro de produção aurífera e, portanto, dos interesses metropolitanos. Ao longo do setecentos, começam os trabalhos de melhoria urbana, principalmente no aumento da captação de água nos rios e construção de fontes e chafarizes para abastecimento da população. Um dos governos mais significativos deste século foi o de Gomes Freire de Andrada, que edificou conventos, chafarizes, e reformou o aqueduto da Carioca, entre outras obras importantes. Com a transferência da capital, a cidade cresce, se fortifica, abre ruas e tenta mudar de costumes. Um dos responsáveis por essas mudanças foi o marquês do Lavradio, cujo governo deu grande impulso às melhorias urbanas, voltando suas atenções para posturas de aumento da higiene e da salubridade, aterrando pântanos, calçando ruas, construindo matadouros, iluminando praças e logradouros, construindo o aqueduto com vistas a resolver o problema do abastecimento de água na cidade. Lavradio, cuja administração se dá no bojo do reformismo ilustrado português (assim como de seu sucessor Luís de Vasconcelos e Souza), ainda criou a Academia Científica do Rio de Janeiro. Foi também ele quem erigiu o mercado do Valongo e transferiu para lá o comércio de escravos africanos que se dava nas ruas da cidade. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes, tornando-se um dos principais portos negreiros e de comércio do país. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos de Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro da capitania. A cidade deu um novo salto de evolução urbana com a instalação, em 1808, da sede do Império português. A partir de então, o Rio de Janeiro passa por um processo de modernização, pautado por critérios urbanísticos europeus que incluíam novas posturas urbanas, alterações nos padrões de sociabilidade, seguindo o que se concebia como um esforço de civilização. Assume definitivamente o papel de cabeça do Império, posição que sustentou para além do retorno da Corte, como capital do Império do Brasil, já independente.

[4] Cargo de magistrado criado no Brasil em 1696. Nomeado pelo rei por três anos, possuía as seguintes atribuições: aplicar justiça contra aqueles que cometessem crimes em sua jurisdição; compor as sessões da Câmara; cumprir as funções de juiz dos órfãos nas localidades desprovidas deste ofício de justiça; dar audiências nos conselhos, vilas e lugares de sua jurisdição; garantir o respeito do clero à jurisdição da Coroa. Em fins do século XVIII, assumiu as atribuições antes delegadas ao juiz ordinário ou da terra, pois se acreditava que ele obteria isenção na administração da justiça aos povos, por não possuir vínculos pessoais com os mesmos. Como o próprio nome já diz, originalmente este juiz vinha de fora da colônia, isto é, do Reino. A criação do cargo significou o reforço da autoridade régia sobre os territórios ultramarinos.

[5] Com a invasão dos franceses ao Rio de Janeiro, a maior parte dos habitantes da cidade, especialmente os comerciantes e proprietários de posses, fugiu para os sertões no entorno carregando suas riquezas, visando a escondê-las dos saques promovidos pelos corsários, abandonando mulheres e filhos a mercê dos franceses. Por essa razão, o governador Francisco de Moraes acreditava ser difícil obter mais alguma riqueza, pois o que não havia já sido pilhado daqueles que ficaram na cidade, achava-se escondido com seus donos nos sertões. A cidade pouco resistiu ao poder bélico francês. Sequestrada durante dois meses, a população do Rio de Janeiro somente se viu livre dos franceses após o pagamento do devido resgate. Segundo capitulação ajustada pelo governador, o valor do resgate foi de 610.000 cruzados, 100 caixas de açúcar e 200 bois, além dos bens e produtos sequestrados, em parte revendidos aos próprios moradores da localidade. Em seu diário de bordo, Duguay-Trouin afirma que o ouro pertencente ao rei de Portugal não foi encontrado porque a população o escondeu na mata, longe da cidade.

[6] Produto extraído principalmente da cana-de-açúcar e da beterraba, também chamado sacarose, constituiu uma das fontes de financiamento da expansão portuguesa. Originária da Nova Guiné, a cana sacarina foi trazida pelos árabes que a introduziram no norte da África e na Europa mediterrânea. Por muito tempo foi uma especiaria rara e de propriedades medicinais, além de seu emprego como tempero nas conservas e doces. Em Portugal, a cultura da cana existiu desde o século XIV no Algarves e na região de Coimbra, passando para a ilha da Madeira na costa africana, em meados do século seguinte, até ser bem-sucedido nas ilhas de São Tomé e Príncipe na primeira metade do século XVI. Não há precisão quanto à data de introdução da cana-de-açúcar no Brasil, embora se assinale sua presença na capitania de Pernambuco nas primeiras décadas do Seiscentos. Já o início da maior sistematização de seu plantio teria se dado a partir da segunda metade do século XVI. A fabricação do açúcar exigia alguns requisitos: por um lado, a instalação de um engenho demandava capitais consideráveis, por outro, requeria trabalhadores especializados. Exceto por esses trabalhadores, livres e assalariados, a mão de obra dos engenhos era predominantemente escrava. De início, recorreu-se aos indígenas, mas, após 1570, os africanos tornaram-se cada vez mais comuns. O comércio da escravatura converteu-se em um lucrativo negócio nessa época. O cultivo da cana-de-açúcar progrediu ao longo do litoral brasileiro na direção norte, se desenvolvendo mais no Nordeste, especialmente nas capitanias da Bahia e de Pernambuco, sendo esta última a maior produtora de açúcar do Brasil, com 66 engenhos no fim do Quinhentos. Nesse período, a maior parte do açúcar brasileiro destinava-se ao mercado internacional, chegando a portos do norte da Europa, especialmente Londres, Hamburgo, Antuérpia e Amsterdã, onde eram refinados e comercializados. A cultura da cana-de-açúcar foi também muito importante, para o mercado interno. Muitos engenhos aproveitavam o açúcar para a produção da aguardente que, consumida localmente, dava grandes lucros aos seus senhores chegando a ter sua comercialização proibida pela Coroa. A fabricação de açúcar foi, seguramente, o primeiro empreendimento econômico a funcionar de modo organizado nas terras brasileiras. Outras atividades surgiram, mas a empresa açucareira se manteve na liderança por mais de um século.

[7] Termo utilizado durante as negociações para a capitulação ajustada entre o corsário francês Duguay Trouin e o governador do Rio de Janeiro durante a invasão francesa na cidade em 1711.

[8] Conhecida como a arma do diabo no período colonial, foi a principal munição de combate a partir do século XIV, dando novas dimensões à guerra, ao permitir a criação das armas de fogo. Embora tenha sido inventada pelos chineses, chegou ao Ocidente com os árabes. Resultado da mistura inflamável e explosiva de salitre, enxofre e carvão, com que se carregam os cartuchos das armas de fogo, a pólvora teve grande importância estratégica para Portugal, tendo sido largamente usada na conquista e defesa de territórios no ultramar, sobretudo na América e nas guerras do país. No século XVIII, após um aperfeiçoamento na produção e mistura desses componentes, produziram-se várias espécies de pólvora, com diferentes poderes de destruição. Durante o período colonial, toda a produção e o comércio eram monopólio da Coroa, sendo o Estado da Índia o principal fornecedor de salitre e outras matérias-primas, até o declínio do comércio indo-europeu. Em virtude das dificuldades encontradas, a Coroa incentivou a busca de minas de salitre na África e no Brasil, tendo sido descobertas no interior da Bahia e das Minas Gerais. O consumo de pólvora nos domínios ultramarinos, sobretudo no Brasil, era muito grande, tanto pelo governo, que a utilizava largamente na defesa do território, quanto pelos particulares, para a defesa da propriedade. Isto justifica o interesse da Coroa em manter o monopólio de um produto tão lucrativo e útil. As novas minas descobertas no Brasil deveriam ser exploradas somente pela Coroa, o que não aconteceu. Alguns particulares, atraídos pelos lucros da extração e comércio do salitre e da pólvora, iniciaram manufaturas e, mesmo tendo sido duramente reprimidos e perseguidos pela Coroa, numerosas foram as fábricas clandestinas que existiam no interior de Minas Gerais. O salitre de Minas Gerais era de boa qualidade e em quantidade suficiente para fornecer a produção em Vila Rica e no Rio de Janeiro, além de ser exportado. Este setor produtivo acabou por entrar na pauta dos estudos das universidades e academias científicas portuguesas, gerando pesquisas e a redação de memórias sobre a mineralogia que procuravam novas técnicas de extração e exploração econômica. A Fábrica de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas foi criada em 1808 pelo príncipe d. João, visando produzir o suficiente para suprir o mercado interno do Brasil. O feito só foi possível com a revogação, assinada por d. João em 1o de abril de 1808, do alvará de 5 de janeiro de 1785, no qual d. Maria I proibira o estabelecimento de manufaturas no Brasil. A direção técnica e científica foi dada a Carlos Antônio Napion, que havia tido o mesmo cargo em Portugal e tinha grande experiência no setor. O decreto de 1808 que criou a Real Fábrica de Pólvora da Lagoa Rodrigo de Freitas deu origem também ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que só foi mencionado explicitamente na legislação em 1811. A localização da fábrica próxima à lagoa deveu-se à abundância de água e ao desnível do terreno, vantajoso para movimentação das máquinas de produção de pólvora, bem como à distância em relação ao centro da cidade. A reorganização das forças militares na América portuguesa, irrompida com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, trouxe a necessidade de dotar a sede do governo luso-brasileiro de infraestrutura bélica, incluindo a construção da fábrica de pólvora.

[9] O mesmo que aconteceu com a pólvora, sucedeu-se com as mercadorias que os franceses conseguiram pilhar aos moradores e casas de comércio da cidade. Para reaverem seus pertences, especialmente fazendas e outros artigos, os comerciantes e a elite local, sobretudo, precisaram comprá-los de volta, aumentando a renda dos franceses para deixarem a cidade, e a humilhação dos habitantes do Rio de Janeiro, em face de uma entrega tão fácil da cidade aos estrangeiros.

[10] O corsário francês René Duguay-Trouin foi o responsável por liderar a segunda invasão francesa ao Rio de Janeiro, ocorrida em 12 de setembro de 1711, numa tentativa de reparar e vingar a derrota sofrida por Jean François DuClerc (?-1711) que tentara ocupar a cidade alguns meses antes e fora duramente derrotado. Capitão da Marinha Real francesa, Duguay-Trouin envolveu-se em numerosas campanhas e armações, negócios antigos de sua família na Bretanha francesa, destacando-se na Guerra de Sucessão Espanhola (1702). Foi nomeado, em 1711, comandante da poderosa esquadra que conquistou a Baía de Guanabara, com 17 navios, mais de 700 canhões e 5.403 homens preparados para a guerra. Depois de pilhar a cidade, com boa parte da população fugida para o interior com seu ouro e outros valores, Duguay-Trouin exigiu o pagamento de um resgate sob pena de destruí-la, pedido prontamente atendido pelo governador Francisco de Castro Morais, que não ofereceu resistência, temeroso do arrasamento total da cidade. Esperando ouro e prata, o corsário teve de se contentar com cruzados, bois, pães de açúcar e outros produtos de algum valor, já que a população que ficara na cidade não tinha muitas riquezas a oferecer. Retornou à França em novembro do mesmo ano, com os navios carregados com moedas e outras mercadorias, mas boa parte da pilhagem foi perdida com tempestades no caminho da volta e com o naufrágio de duas de suas embarcações na região dos Açores. Chegou à França em 1712 bastante enfermo e, somente em 1715, foi nomeado chefe de Esquadra pelos seus préstimos à Coroa francesa. Alcançou o posto de almirante da Marinha francesa, recebeu o título de cavaleiro da Ordem Real de São Luís, além do título de nobreza de 1709. Uma estátua em homenagem ao corsário pode ser admirada no Palácio de Versalhes. Anos depois, em 1740, publicou suas Memórias do Senhor Duguay-Trouin, que correspondem ao período entre 1689 e 1715 de sua vida, nas quais narrava, entre outras, a aventura da invasão ao Rio de Janeiro. (Traduzida e publicada pelo Arquivo Nacional, editora UnB e Imprensa Oficial de São Paulo em 2003.)

 

Joana d'Entremeuse

Ofício de d. José de Castro, conde de Resende, vice-rei do Brasil, no qual avisa a d. Rodrigo de Souza Coutinho sobre a chegada do navio espanhol Boa Viagem. Informa que três franceses embarcados no navio, donos de muitas fazendas, foram retidos no Rio de Janeiro aguardando a decisão do regente quanto a sua situação. Entre eles, o conde de Resende destaca a francesa Joana d'Entremeuse, que segundo ele, foi trazida pela embarcação espanhola da cidade da Bahia, tendo novamente embarcado para Montevidéu com um navio carregado de mercadorias próprias. Após ter naufragado, carregou novamente sua embarcação e entrou no porto do Rio de Janeiro. Na cidade foi permitida a venda de seu navio e de lá partiu novamente para Montevidéu em navio fretado. Após alguns meses retornou à cidade tendo como destino o Cabo da Boa Esperança e a Ilha de França. Pedira ela ao conde de Resende a permissão para que pudesse navegar sob bandeira portuguesa a fim de evitar confrontos com ingleses. Tendo seu pedido negado, partiu para Lisboa para de lá continuar viagem em direção à sua pátria.

Conjunto documental: Registro da correspondência do vice-reinado para a Corte
Notação: códice 69, vol. 09
Datas-limite: 1799-1799
Título do fundo ou coleção: Secretaria de Estado do Brasil
Código do fundo ou coleção: 86
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 5 de junho de 1799
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 57 a 58v

 

No 303

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor. No ofício 65 dei conta a vossa excelência da arribada, que aqui fez Eleutério Tavares, capitão do navio espanhol Boa Viagem, e dos motivos por que tanto ele como três franceses, que se fazem donos de muitas fazendas embarcadas no mesmo navio, se acham retidos nesta cidade até que este negócio mereça a real decisão de sua majestade.
Entretanto uma francesa, que se intitula Joana d'Entremeuse[1], e que nesta cena parece que tem igualmente representado, me dá ocasião a descrever a vossa excelência a sua conduta por não julgar indiferente a viagem que esta mulher fez para Lisboa no próximo comboio, quando ela pela sua nação, pela sua viveza, pelo seu caráter insinuante, e pelos seus projetos, e indústria[2] se faz merecedora de ser olhada com circunspecção.
Tendo arribado o dito navio Boa Viagem à cidade da Bahia, esta francesa, que nele ia de passagem, deixou de se embarcar outra vez para Montevidéu em companhia do capitão Eleutério Tavares, e navegou depois para o mesmo porto em uma embarcação carregada por sua conta; mas tendo a infelicidade de naufragar, se é certo o que refere, do pouco que salvou, e pôde apurar, carregou novamente o seu navio, e entrou no porto desta cidade. Atendendo a vários requerimentos que me apresentou, e que pareciam justos, ainda que sempre me deveu a maior desconfiança lhe permiti a venda do navio, por não haver ordem em contrário, e juntamente a dos gêneros da sua carga, por serem todos suscetíveis de corrupção, precedendo sempre o parecer do ouvidor juiz da Alfândega[3], como pratico antes de tomar semelhantes deliberações.
Executada esta primeira ação, tornou a fazer viagem a Montevidéu em embarcação a fretada, levando carga de alguns efeitos do país, que lhe concedi somente quanto bastasse para o seu aprovisionamento. Passados meses, apareceu aqui segunda vez esta mulher em navio seu, dizendo que saíra de Montevidéu com o destino de ir ao Cabo da Boa Esperança[4], e passar-se a ilha de França[5], e que por evitar contestações com piratas[6] francesas [sic], pedira um ressalvo de Augusto Carbonel, comandante do corsário denominado Buonaparte, para poder navegar com segurança debaixo da bandeira castelhana. Todo o seu empenho logo que chegou a esta cidade foi pretender de mim um despacho, e permissão para poder navegar com pavilhão português, a fim de escapar de todo o encontro que tivesse com embarcações inglesas. Neguei-lhe absolutamente semelhante pretensão tão ofensiva da boa-fé, e aliança que existe entre esta nação, e a portuguesa, e até lembrando-me de que esta má fé constaria aos mesmos piratas franceses, se algum encontrasse com o navio desta mulher, e conhecesse a dissimulação com que navegava.
Desenganada de uma vez de não conseguir o seu intento, projetou navegar para Lisboa debaixo da proteção do comboio de Antônio José Valente, com depois me foi constante, mas figurando na sua imaginação, pois não tinha fundamento algum para o supor, que eu lhe denegaria também essa licença, tratou de vender o navio, como com efeito vendeu estipulando logo com o comprador de lhe dar a passagem livre para Lisboa, e a tudo o que lhe pertencesse.
Finalmente embarcou esta francesa com o desígnio de passar-se de Portugal à sua terra; e por não entreter a vossa excelência com outras muitas particularidades menos interessantes, que ocorreram nestas viagens, deixo-as em silêncio, e só torno a repetir a vossa excelência que o procedimento desta mulher se me faz tão suspeitoso, que me considero na obrigação de participá-lo a vossa excelência.
Deus guarde a vossa excelência. Rio de Janeiro cinco de junho de mil setecentos noventa e nove = Conde de Resende[7] = Senhor d. Rodrigo de Souza Coutinho[8].

 

[1] Uma das mais conhecidas contrabandistas de sua época, Joana D’Entremeuse atuou na região do Atlântico Sul e foi uma das raras mulheres envolvidas neste tipo de negócio, incluindo aí o corso e o comércio negreiro [ver tráfico de escravos]. Francesa de nascimento, exilou-se ou foi exilada nas ilhas Maurício em 1792, no auge da fase da Revolução Francesa conhecida como Terror, e lá se estabeleceu como “comerciante”. Era viúva e tinha duas filhas, uma das quais ainda vivia com seu sogro na França. Tinha fama de republicana, embora não o confirmasse ou negasse, e além de causar espanto e suspeição por suas atividades pouco usuais e ilegais, ainda era temida por representar as perigosas ideias e princípios franceses. Joana era proprietária do navio Boa Viagem e de sua carga, contrabandeada e pilhada em corso, e fazia parte de uma grande rede de contrabandistas que atuava entre o Prata, as possessões portuguesas na América e África e as ilhas onde habitava. Este bando “tirava o sono” das autoridades que não conseguiam impedir o contrabando e o comércio fora do exclusivo colonial. Talvez, Joana tenha se aproveitado de sua “viveza” e do “caráter insinuante”, atribuído a ela pelas autoridades locais, para conseguir burlar os funcionários da Coroa, desembarcar no Brasil, vender suas fazendas (contrabandeadas), embarcar mais uma vez para Montevidéu com produtos brasileiros (que lá vendeu) e retornar ao Rio de Janeiro, para dirigir-se ao Cabo da Boa Esperança, certamente carregando mais itens. Seu comportamento gerou as maiores suspeitas do vice-rei, o conde de Resende, que, em 1799, escreveria ao secretário de estado d. Rodrigo, sobre a suposta passageira que pretendia seguir para sua terra natal com a finalidade de buscar a filha e o sogro para viverem com ela. Apesar das suspeitas, conseguiu a proteção que precisava para seguir para Lisboa sob bandeira portuguesa. A francesa foi recebida em Portugal com grande desconfiança pelas autoridades locais, que implementaram uma investigação a seu respeito e encontraram evidências de suas atividades ilegais. Foi presa nesse mesmo ano, quando se procedeu a uma grande devassa para desvendar seus negócios, chegando-se a acreditar que pudesse ser uma espiã da República francesa nos domínios portugueses. Foi solta no ano seguinte por falta de provas, já que os papéis que a incriminavam desapareceram misteriosamente do processo. Voltou para França após o processo, não se tendo mais notícias dela.

[2] Na América portuguesa, o contrabando consistia no comércio ilegal, sem que esse tráfico fosse autorizado ou reportado as autoridades coloniais. Seu desenvolvimento deveu-se, principalmente, ao monopólio do comércio, às pesadas taxações e à falta de regularidade no abastecimento da colônia. Este tipo de comércio fazia circularem mercadorias nacionais e estrangeiras, recebendo destaque o ourodiamantes e pedras preciosas. O contrabando constituía ainda um dos poucos meios para escravos alcançarem a liberdade, daí muitos deles dedicarem-se ao garimpo clandestino. O fluxo de mercadorias contrabandeadas envolvia países como Inglaterra, Holanda e França, tendo alcançado tal vulto que parcela significativa do mercado colonial era abastecida por esta prática.

[3] Organismo da administração fazendária responsável pela arrecadação e fiscalização dos tributos provenientes do comércio de importação e exportação. Entre 1530 e 1548, não havia uma estrutura administrativa fazendária, somente um funcionário régio em cada capitania, o feitor e o almoxarife. Porém, com a implantação do governo-geral, em 1548, o sistema fazendário foi instituído no Brasil com a criação dos cargos de provedor-mor – autoridade central – e de provedor, instalado em cada capitania. Durante o período colonial, foram estabelecidas casas de alfândega, que ficaram sob controle do Conselho de Fazenda até a criação do Real Erário em 1761, que passou a cobrar as chamadas “dízimas alfandegárias”. Estas, no entanto, mudaram com a vinda da família real em 1808 e a consequente abertura dos portos brasileiros. Por esta medida, quaisquer gêneros, mercadorias ou fazendas que entrassem no país, transportadas em navios portugueses ou em navios estrangeiros que não estivessem em guerra com Portugal, pagariam por direitos de entrada 24%, com exceção dos produtos ingleses que pagariam apenas 15%. Os chamados gêneros molhados, por sua vez, pagariam o dobro desse valor. Quanto à exportação, qualquer produto colonial (com exceção do pau-brasil ou outros produtos “estancados”) pagaria nas alfândegas os mesmos direitos que até então vigoravam nas diversas colônias.

[4] Situado ao sul do continente africano, é conhecido por ser uma localização geográfica importante durante o processo de expansão marítima europeia. No século XV, Portugal buscou novas rotas marítimas para comercializar os produtos provenientes do Oriente Médio. Além da conquista de novos territórios ao longo do litoral norte da África, portugueses chegaram ao limite do território africano, região de navegação perigosa, com águas turbulentas que ofereciam muitas dificuldades para a tecnologia marítima da época. Em 1488, o navegador português Bartolomeu Dias chegou à região com sua tripulação enfrentando vários dias de severas tempestades que colocaram em risco a sobrevivência da expedição, o que levou o navegador português a chamar esse local de Cabo das Tormentas, mais tarde denominado Cabo da Boa Esperança. Essa conquista significou a descoberta de uma nova ligação com as Índias e a ampliação das rotas comerciais que não mais eram obrigadas a passar pelo mar Mediterrâneo para alcançar mercados orientais.

[5] Atuais ilhas Maurício, cuja capital é Port Louis. Descobertas inicialmente pelos portugueses em 1505, foram colonizadas pelos holandeses a partir de 1638, que a nomearam em homenagem a Maurício de Nassau. Os franceses controlaram a ilha em 1715 e a chamavam Île de France. Em 1814 os britânicos tomaram a ilha, restaurando o nome original.

[6] O saque, a pilhagem e o apresamento de embarcações e povoados vulneráveis foram, durante séculos, realizados por grupos organizados, que atuavam sob as ordens de um soberano ou de forma independente. O termo pirataria define uma atividade autônoma, sem qualquer consideração política ou razões de Estado (comerciais ou estratégicas). Sem nacionalidade juridicamente reconhecida, os piratas lançavam-se ao mar pilhando embarcações ou atacando regiões costeiras para angariar riquezas. Há registro de ataques piratas à costa brasileira, no período colonial, motivados pelo contrabando de produtos como o pau-brasil, bem como pela captura de escravos indígenas. Tornaram-se célebres os piratas franceses Jean Florin, Laudinière, Montbars, os irmãos Lafitte e Jean Davis, conhecido como o Olonês, que atuaram na região das Antilhas. Em um universo majoritariamente masculino, algumas mulheres disfarçadas também fizeram história, como Mary Head e Anne Bonney. O último reduto da pirataria ocidental foi o Mediterrâneo, onde piratas gregos e berberes eram atuantes desde a Idade Média. Não se deve confundir piratas com corsários. O corsário tem sua origem na Idade Média, mas se tornou especialmente importante durante os tempos modernos. Ao contrário do pirata, do ponto de vista do direito internacional, o corsário é um combatente regular, ligado a um Estado, a quem o governo dava uma carta de corso. Poderia ser mantido diretamente pelo governo ou por um particular. Não há grande diferença dos piratas quanto aos métodos. Porém, o corso reservava de 1/3 a 1/5 do butim para o tesouro real e executava ataques encomendados pelos Estados a que serviam, tal como DuGuay-Trouin, que invadiu o Rio de Janeiro em 1711 a serviço da Coroa francesa no âmbito da guerra de sucessão espanhola, colocando em lados opostos França e Portugal, aliados, respectivamente, à Espanha e à Inglaterra.

[7] D. José Luís de Castro (1744-1819), 2º conde de Resende foi governador e capitão-general da Bahia de 1788 a 1801, de onde seguiu para o Rio de Janeiro como vice-rei do Estado do Brasil até 1806. Considerado um administrador colonial com baixa popularidade, durante sua administração ocorreram a Conjuração Mineira e o julgamento e condenação dos envolvidos, dentre eles, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, preso, enforcado e esquartejado no Rio de Janeiro. Foi responsável também pelo fechamento e pela devassa da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, academia voltada para literatura e filosofia natural, acusada pela sedição conhecida como a Conjuração do Rio de Janeiro, ocorrida em 1794. A administração de conde de Resende contribuiu para a urbanização da cidade do Rio de Janeiro e melhoria das condições sanitárias. Em relação à iluminação pública, instalou lamparinas com óleo de peixe, criou o primeiro Regulamento de Higiene, em 1797, e acabou com o despejo sanitário no Campo de Santana, aterrando a área contaminada e transformando-a em um grande “rossio”. Concluiu a reforma do Paço dos Vice-Reis, entre outras importantes obras de canalização e distribuição de água. Em 1792, a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho foi criada, instituição encarregada da formação de engenheiros militares no país. A nomeação como Marechal de Campo, em 1795, sugere que atuou nas guerras contra a França, entre 1793 e 1795, concomitantemente com o vice-reinado. De volta a Portugal, foi nomeado Conselheiro de Guerra e recebeu a Grã-Cruz da Ordem de São Bento de Avis.

[8] Afilhado do marquês de Pombal, este estadista português exerceu diversos cargos da administração do Império luso, como o de embaixador em Turim, ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) e presidente do Real Erário (1801-3). Veio para o Brasil em 1808, quando foi nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, permanecendo no posto até 1812, quando faleceu no Rio de Janeiro. D. Rodrigo foi aluno do Colégio dos Nobres e da Universidade de Coimbra, tendo viajado pela Europa e mantido contato com iluministas como o filósofo e matemático francês Jean Le Rond d’Alembert, um dos organizadores da Encyclopédie. Considerado um homem das Luzes, destacou-se por suas medidas visando a modernização e o desenvolvimento do reino. D. Rodrigo aproximou-se da geração de 1790, vista como antecipadora do processo de Independência, e foi o principal idealizador do império luso-brasileiro, no qual a centralidade caberia ao Brasil. Sob o seu ministério, o Brasil adquiriu novos contornos com a anexação da Guiana Francesa (1809) e da Banda Oriental do Uruguai (1811). Preocupado com o desenvolvimento econômico e cultural, bem como com a defesa do território, Souza Coutinho foi um partidário da influência inglesa no Brasil, patrocinando a assinatura dos chamados “tratados desiguais” de que é exemplo o Tratado de Aliança e Comércio com a Inglaterra [ver Tratados de 1810]. Responsável pela criação da Real Academia Militar (1810), foi ainda inspetor-geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda; inspetor da Biblioteca Pública de Lisboa e da Junta Econômica, Administrativa e Literária da Impressão Régia; conselheiro de Estado; Grã-Cruz das Ordens de Avis e da Torre e Espada. Em 1808, o estadista recebeu o título nobiliárquico de conde de Linhares.

 

Recomendações do vice-rei

Minuta de ofício do vice-rei, d. Fernando José de Portugal e Castro, para o ministro da Marinha e Ultramar, d. Rodrigo de Souza Coutinho, acerca de uma recomendação do príncipe regente em 15 de dezembro de 1802, no qual se pedia aos governadores do Brasil toda cautela e vigilância a respeito das embarcações de guerra francesas que arribassem aos portos brasileiros. Pede que não façam esclarecimentos sobre os lugares mais propícios de se efetuar desembarques, principalmente na Ilha Grande e em Santa Catarina, tratando-os ao mesmo tempo com a maior civilidade para que a Corte portuguesa não se comprometesse com aquela República.

Conjunto documental: Correspondência com Portugal - minutas de ofícios
Notação: caixa 494, pct. 01
Datas-limite: 1762-1803
Título do fundo ou coleção: Vice-Reinado
Código do fundo ou coleção: D9
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 4 de abril de 1803
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): -

 

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor

Por um dos navios que proximamente entraram neste porto recebi o ofício de vossa excelência datado em 15 de dezembro do ano passado em que o príncipe regente[1] nosso senhor me recomenda, como também aos principais governadores do Brasil toda a cautela, e vigilância a respeito das embarcações de guerra francesas que arribarem a estes portos para que não façam explorações sobre os lugares em que se podem intentar desembarques, principalmente na Ilha Grande[2], e em Santa Catarina[3], tratando-as ao mesmo tempo com a maior civilidade, e atenção, para que a nossa Corte se não comprometa com aquela República[4].
Fico certo de executar esta real ordem na forma que se me ordena, apesar do embaraço que de ordinário se encontra em praticar muita civilidade, e atenção, observando ao mesmo tempo o rigor da lei, a que com mais dificuldade, e repugnância se sujeitam os oficiais das embarcações de guerra das nações estrangeiras, com os quais é necessário às vezes usar de contemplação em certos pontos, porque tudo tomam por ofensa, como a experiência me tem mostrado, repugnando alguns andarem acompanhados por oficiais da nossa tropa.
É sem dúvida bem conveniente evitar por todos os modos que os franceses averiguem, e procurem conhecer os lugares mais próprios para desembarques, mas estaríamos ainda mais seguros, e tranquilos se as suas navegações anteriores, e de outras diversas nações, os não tivessem já instruído na qualidade, e bondade dos nossos portos, e das principais fortalezas, e forças que neles existem, ainda sem me lembrar que os holandeses[5] foram senhores por algum tempo de parte do Brasil, os espanhóis da Ilha de Santa Catarina, que o general francês Duguay-Trouin[6] tomou esta cidade do Rio de Janeiro em 1711.
Ao governador da Ilha de Santa Catarina, e ao coronel de milícias da Ilha Grande escrevo as ordens necessárias a este respeito, não me resolvendo contudo a enviar-lhe por cópia o mencionado ofício rasura no original, nem a referir-lhe miudamente o seu conteúdo, por vossa excelência me ordenar, guarde nesta matéria o maior segredo, como se faz preciso, contentando-me lhes ordenar que no caso de tocarem ali algumas embarcações de guerra francesas procurem evitar que seus oficiais façam explorações sobre os lugares em que possam tentar desembarques, observando os seus passos praticando ao mesmo tempo com eles a maior civilidade, e atenção.

Deus guarde a vossa excelência. Rio, 4 de abril de 1803

Senhor dom Rodrigo de Souza Coutinho[7]

 

[1] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[2] Descoberta por Gonçalo Coelho em 1502, a Ilha Grande, na baía de Angra dos Reis, foi incorporada à administração colonial portuguesa ainda no século XVI, quando começou a se formar o primeiro núcleo colonizador. Já era, a esta altura, local conhecido de navegantes e contrabandistas franceses, espanhóis, ingleses e holandeses, que costumavam por lá aportar, e, claro, de portugueses, que enfrentaram longos embates com os índios tamoios pela posse e ocupação definitiva da ilha. A Ilha Grande, que até 1726 era parte da capitania de São Vicente, quando finalmente foi incorporada ao Rio de Janeiro, era alvo constante de ataques de piratas e corsários, e serviu de refúgio, local de comércio e abastecimento para corsários e para os muitos contrabandistas de diversas nacionalidades que lá desembarcavam com freqüência, a despeito dos esforços das autoridades da Coroa para reprimir e conter o comércio ilícito. No início do século XIX foi elevada a freguesia de Santana de Ilha Grande de Fora e ao longo do oitocentos foi um ponto importante de desembarque de escravos africanos, especialmente depois da abolição do tráfico inter-atlântico. A colonização começou mais efetivamente depois de 1725, quando da expansão da cultura açucareira. Outra lavoura que chegou a se desenvolver na ilha foi a do café, embora com menor expressividade do que o açúcar. No entanto, a ilha manteve-se ao longo do período colonial como um ativo local de contrabando, de produtos vindos da Europa, de pau-brasil, e sobretudo de escravos.

[3] Parte do atual município de Florianópolis, a ilha era habitada por índios Carijó que foram, com a chegada de bandeirantes vicentinos na região em 1637, exterminados ou convertidos à escravidão nos engenhos que ali se instalaram. A ilha de Santa Catarina convertera-se no posto português mais avançado ao sul da América portuguesa. No contexto de disputas territoriais entre as Coroas ibéricas pelo controle da região, em 1777, a ilha foi invadida pelos espanhóis, permanecendo por oito meses na região até a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, no mesmo ano. Seu nome seria alterado em 1845, com o fim da República Farroupilha, que tinha como sede a cidade de Laguna. Florianópolis, como seria rebatizada a ilha, era uma homenagem ao marechal Floriano Peixoto, cujo governo foi responsável pela derrota da Revolução Farroupilha.

[4] A referência à República Francesa se deve ao estado francês, que, em pleno processo revolucionário, extinguiu a monarquia e adotou uma nova forma de governo - a república. Esta não era exatamente uma novidade no mundo moderno. Em 1776 as treze colônias inglesas na América do Norte se libertaram do domínio metropolitano e se tornaram uma república em um mundo no qual preponderavam as monarquias, absolutistas ou constitucionais. Esse mundo, ao passo que compartilhava de estruturas ainda feudais e aristocráticas, principalmente na Europa, também vivia sob o impacto das ideias iluministas associadas à construção de um novo pacto social. A Revolução Francesa tornou-se a grande difusora dos princípios das Luzes, sobretudo o de liberdade, que passaram a ser vistos pelo mundo monárquico como os "abomináveis princípios franceses". Em 1792, depois da tentativa de fuga de Luís XVI, a Convenção decide pela extinção da monarquia, ato que culmina com a execução do rei em janeiro de 1793. Instaura-se a República na França neste período que ficou mais conhecido como o Terror jacobino, e que perdurou até 1799 quando do golpe de Napoleão Bonaparte, que instaura o Império. Este momento simboliza a recriação do pacto social, cujo novo formato seria inspirado nos ideais antigos de liberdade clássica, na qual o cidadão participa ativa e diretamente da vida pública e política do país. No entanto, não fica clara a forma de governo adotada, que mais se assemelha a uma ditadura, encabeçada por Robespierre. A primeira república consiste na radicalização do princípio democrático, inspirada no pensamento de Rousseau, que apavorou o restante do mundo do Antigo Regime, como por exemplo Portugal, ante a possibilidade de expansão das idéias que poderiam levar à independência de colônias e à queda de reis. Apesar da curta existência, representou uma grande mudança no equilíbrio de forças na Europa e inaugurou um novo tempo. Esse período, que constantemente se confunde com o terror, com jacobinismo, mas também com o exercício (ainda que problemático) da democracia, com liberdade, igualdade e fraternidade, com os direitos universais do homem, acabou sucumbindo, no dizer de José Murilo de Carvalho na Formação das Almas, por um excesso de liberdade e falta de governo - oposto do que aconteceu na vitoriosa revolução americana.

[5] O‌ ‌interesse‌ ‌dos‌ ‌holandeses‌ ‌‌pelo‌ ‌território‌ ‌brasileiro‌ ‌remonta‌ ‌ao‌ ‌século‌ ‌XVI,‌ ‌quando‌ ‌estes‌ ‌já‌ ‌empreendiam‌ ‌viagens‌ ‌à‌ ‌‌colônia‌ ‌portuguesa‌ ‌na‌ ‌América,‌ ‌motivados,‌ ‌sobretudo,‌ ‌pelo‌ ‌lucrativo‌ ‌comércio‌ ‌do‌ ‌‌açúcar‌ ‌e‌ ‌buscando‌ ‌recolher‌ ‌informações‌ ‌acerca‌ ‌do‌ ‌potencial‌ ‌econômico‌ ‌costeiro,‌ ‌das‌ ‌possíveis‌ ‌rotas‌ ‌marítimas‌ ‌e‌ ‌dos‌ ‌melhores‌ ‌pontos‌ ‌para‌ ‌atracamento.‌ Com‌ ‌a‌ ‌proibição‌ ‌da‌ ‌entrada‌ ‌de‌ ‌estrangeiros‌ ‌no‌ ‌Brasil‌ ‌em‌ ‌1605,‌ ‌durante‌ ‌a‌ ‌União‌ ‌Ibérica,‌ ‌as‌ ‌incursões‌ ‌holandesas‌ ‌ao‌ ‌território‌ ‌da‌ ‌colônia‌ ‌escassearam.‌ ‌Esse‌ ‌período‌ ‌de‌ ‌união‌ ‌luso-espanhol‌ ‌e‌ ‌das‌ ‌guerras‌ ‌de‌ ‌independência‌ ‌dos‌ ‌Países‌ ‌Baixos‌ ‌contra‌ ‌a‌ ‌‌Espanha‌ ‌é‌ ‌decisivo‌ ‌para‌ ‌a‌ ‌compreensão‌ ‌dos‌ ‌ataques‌ ‌holandeses‌ ‌ao‌ ‌nordeste‌ ‌brasileiro‌ ‌nas‌ ‌primeiras‌ ‌décadas‌ ‌do‌ ‌século‌ XVII.‌ ‌Durante‌ ‌as‌ ‌guerras‌ ‌de‌ ‌independência,‌ ‌uma‌ ‌das‌ ‌medidas‌ ‌adotadas‌ ‌por‌ ‌Felipe‌ ‌II,‌ ‌rei‌ ‌das‌ ‌duas‌ coroas‌ ‌ibéricas,‌ ‌foi‌ ‌a‌ ‌suspensão‌ ‌do‌ ‌comércio‌ ‌entre‌ ‌Holanda‌ ‌e‌ ‌‌Portugal‌ ‌‌e‌ ‌suas‌ ‌colônias,‌ ‌incluindo‌ ‌a‌ ‌América‌ ‌lusa.‌ ‌Tal‌ ‌proibição‌ ‌afetava‌ ‌diretamente‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌do‌ ‌açúcar‌ ‌brasileiro,‌ ‌uma‌ ‌vez‌ ‌que‌ ‌os‌ ‌flamengos‌ ‌eram‌ ‌os‌ ‌principais‌ ‌investidores‌ ‌da‌ ‌agroindústria‌ ‌açucareira.‌ ‌Caberia‌ ‌à‌ ‌Companhia‌ ‌Neerlandesa‌ ‌das‌ ‌Índias‌ ‌Ocidentais,‌ ‌fundada‌ ‌em‌ ‌1621‌ ‌e‌ ‌detentora‌ ‌do‌ ‌monopólio‌ ‌desse‌ ‌comércio,‌ ‌o‌ ‌restabelecimento‌ ‌das‌ ‌transações‌ ‌mercantis‌ ‌entre‌ ‌neerlandeses‌ ‌e‌ ‌o‌ ‌Brasil,‌ ‌considerado‌ ‌território‌ ‌vulnerável‌ ‌no‌ ‌grande‌ ‌Império‌ ‌Ibérico,‌ ‌mas‌ ‌de‌ ‌grande‌ ‌potencial‌ ‌lucrativo.‌ ‌O‌ ‌nordeste‌ ‌brasileiro,‌ ‌principal‌ ‌região‌ ‌produtora‌ ‌de‌ ‌açúcar,‌ ‌foi‌ ‌o alvo‌ ‌de‌ ‌ataques‌ ‌holandeses.‌ ‌A‌ ‌primeira‌ ‌incursão‌ ‌foi‌ ‌na‌ ‌‌Bahia‌ ‌em‌ ‌1624,‌ ‌região‌ ‌estratégica‌ ‌para‌ ‌o‌ ‌comércio‌ ‌no‌ ‌Atlântico‌ ‌sul.‌ ‌O‌ ‌assalto‌ ‌não‌ ‌foi‌ ‌bem-sucedido.‌ ‌Em‌ ‌1628,‌ ‌os‌ ‌holandeses‌ ‌mudaram‌ ‌o‌ ‌foco‌ ‌e‌ ‌passaram‌ ‌a‌ ‌cobiçar‌ ‌a‌ ‌região‌ ‌de‌ ‌‌Pernambuco‌,‌ ‌igualmente‌ ‌importante‌ ‌em‌ ‌termos‌ ‌econômicos,‌ ‌mas‌ ‌fragilmente‌ ‌protegida.‌ Sob‌ ‌ocupação‌ ‌holandesa,‌ ‌a‌ ‌produção‌ ‌de‌ ‌açúcar‌ ‌no‌ ‌nordeste‌ ‌brasileiro‌ ‌floresceu.‌ ‌O‌ ‌período‌ ‌mais‌ prolífico‌ ‌da‌ ‌presença‌ ‌holandesa‌ ‌no‌ ‌Brasil‌ ‌foi‌ ‌o‌ ‌da‌ ‌governação‌ ‌de‌ ‌Maurício‌ ‌de‌ ‌Nassau.‌ Responsável‌ ‌pelas‌ ‌afamadas‌ ‌reformas‌ ‌urbanísticas‌ ‌no‌ ‌Recife,‌ ‌Nassau‌ ‌construiu‌ ‌palácios,‌ ‌pontes,‌ calçou‌ ‌ruas‌ ‌e‌ ‌praças,‌ ‌promoveu‌ ‌melhorias‌ ‌sanitárias‌ ‌e‌ ‌apoiou‌ ‌diversas‌ ‌missões‌ ‌de‌ ‌naturalistas,‌ ‌pintores‌ ‌e‌ ‌estudiosos‌ ‌das‌ ‌ciências‌ ‌naturais,‌ ‌promovendo‌ ‌o‌ ‌conhecimento‌ ‌da‌ ‌natureza‌ ‌do‌ ‌território.‌ ‌Deixou‌ ‌como‌ ‌legado‌ ‌um‌ ‌rico‌ ‌e‌ ‌vasto‌ ‌material‌ ‌iconográfico,‌ ‌bem‌ ‌como‌ ‌diversos‌ testemunhos‌ ‌da‌ ‌história‌ ‌da‌ ‌presença‌ ‌holandesa‌ ‌no‌ ‌Brasil,‌ ‌que‌ ‌se‌ ‌encerrou‌ ‌em‌ ‌1645,‌ ‌quando‌ foram‌ ‌expulsos‌ ‌pelas‌ ‌forças‌ ‌luso-brasileiras.‌

[6] O corsário francês René Duguay-Trouin foi o responsável por liderar a segunda invasão francesa ao Rio de Janeiro, ocorrida em 12 de setembro de 1711, numa tentativa de reparar e vingar a derrota sofrida por Jean François DuClerc (?-1711) que tentara ocupar a cidade alguns meses antes e fora duramente derrotado. Capitão da Marinha Real francesa, Duguay-Trouin envolveu-se em numerosas campanhas e armações, negócios antigos de sua família na Bretanha francesa, destacando-se na Guerra de Sucessão Espanhola (1702). Foi nomeado, em 1711, comandante da poderosa esquadra que conquistou a Baía de Guanabara, com 17 navios, mais de 700 canhões e 5.403 homens preparados para a guerra. Depois de pilhar a cidade, com boa parte da população fugida para o interior com seu ouro e outros valores, Duguay-Trouin exigiu o pagamento de um resgate sob pena de destruí-la, pedido prontamente atendido pelo governador Francisco de Castro Morais, que não ofereceu resistência, temeroso do arrasamento total da cidade. Esperando ouro e prata, o corsário teve de se contentar com cruzados, bois, pães de açúcar e outros produtos de algum valor, já que a população que ficara na cidade não tinha muitas riquezas a oferecer. Retornou à França em novembro do mesmo ano, com os navios carregados com moedas e outras mercadorias, mas boa parte da pilhagem foi perdida com tempestades no caminho da volta e com o naufrágio de duas de suas embarcações na região dos Açores. Chegou à França em 1712 bastante enfermo e, somente em 1715, foi nomeado chefe de Esquadra pelos seus préstimos à Coroa francesa. Alcançou o posto de almirante da Marinha francesa, recebeu o título de cavaleiro da Ordem Real de São Luís, além do título de nobreza de 1709. Uma estátua em homenagem ao corsário pode ser admirada no Palácio de Versalhes. Anos depois, em 1740, publicou suas Memórias do Senhor Duguay-Trouin, que correspondem ao período entre 1689 e 1715 de sua vida, nas quais narrava, entre outras, a aventura da invasão ao Rio de Janeiro. (Traduzida e publicada pelo Arquivo Nacional, editora UnB e Imprensa Oficial de São Paulo em 2003.)

[7] Afilhado do marquês de Pombal, este estadista português exerceu diversos cargos da administração do Império luso, como o de embaixador em Turim, ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos (1796-1801) e presidente do Real Erário (1801-3). Veio para o Brasil em 1808, quando foi nomeado secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, permanecendo no posto até 1812, quando faleceu no Rio de Janeiro. D. Rodrigo foi aluno do Colégio dos Nobres e da Universidade de Coimbra, tendo viajado pela Europa e mantido contato com iluministas como o filósofo e matemático francês Jean Le Rond d’Alembert, um dos organizadores da Encyclopédie. Considerado um homem das Luzes, destacou-se por suas medidas visando a modernização e o desenvolvimento do reino. D. Rodrigo aproximou-se da geração de 1790, vista como antecipadora do processo de Independência, e foi o principal idealizador do império luso-brasileiro, no qual a centralidade caberia ao Brasil. Sob o seu ministério, o Brasil adquiriu novos contornos com a anexação da Guiana Francesa (1809) e da Banda Oriental do Uruguai (1811). Preocupado com o desenvolvimento econômico e cultural, bem como com a defesa do território, Souza Coutinho foi um partidário da influência inglesa no Brasil, patrocinando a assinatura dos chamados “tratados desiguais” de que é exemplo o Tratado de Aliança e Comércio com a Inglaterra [ver Tratados de 1810]. Responsável pela criação da Real Academia Militar (1810), foi ainda inspetor-geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda; inspetor da Biblioteca Pública de Lisboa e da Junta Econômica, Administrativa e Literária da Impressão Régia; conselheiro de Estado; Grã-Cruz das Ordens de Avis e da Torre e Espada. Em 1808, o estadista recebeu o título nobiliárquico de conde de Linhares.

 

Tratado de paz entre Portugal e França

Ofício de Caetano Pinto de Miranda Montenegro, governador da capitania de Mato Grosso, ao visconde de Anadia comunicando alguns artigos do tratado de paz que se firmou entre a Corte portuguesa e a República francesa. Um dos artigos fixa as datas em que deveriam cessar as hostilidades e promover a amizade entre as duas potências. O governador também inclui os artigos que dizem respeito aos limites franceses na parte setentrional do Brasil e avisa que a demarcação dos limites será feita em breve.

Conjunto documental: Capitanias da Bahia, Alagoas, Ceará, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Pernambuco, Piauí, São Paulo e Santa Catarina
Notação: caixa 748, pct. 02
Datas-limite: 1770-1813
Titulo do fundo ou coleção: Vice-Reinado
Código do fundo ou coleção: D9
Argumento de pesquisa: estrangeiros, franceses
Data do documento: 16 de novembro de 1801
Local: Mafra
Folha(s): -

 

No 71

Tendo-se ajustado felizmente a paz[1] entre a Coroa de Portugal[2], e a República francesa[3], remeto a vossa senhoria a cópia do artigo que fixa as épocas em que devem cessar as hostilidades, para que vossa senhoria o ponha em execução, publicando logo a boa inteligência, e a amizade entre as duas potências.
Também remeto a vossa senhoria a cópia dos artigos, que dizem respeito aos limites[4] com os domínios franceses[5] na parte mais setentrional do Brasil. E como temos ainda alguma esperança, que no congresso, que se vai juntar em Amiens[6], para um tratado definitivo da paz geral, se possa conseguir alguma vantagem a nosso favor sobre estes limites, deve vossa senhoria suspender tudo o que diz respeito a este objeto, até que se nomeiem comissários de ambas as partes para esta demarcação, e até que desta Corte se deem a vossa senhoria as instruções necessárias para a execução do que se acha estipulado sobre os limites das duas potências.

Deus Guarde a vossa senhoria. Mafra, em 16 de novembro de 1801.

Visconde de Anadia[7]

Senhor Caetano Pinto de Miranda Montenegro[8]

 

[1] Refere-se à Paz de Madrid, tratado assinado entre Portugal e França em 29 de setembro de 1801 como uma retificação da Paz de Badajoz, acordo assinado entre Portugal e a aliança entre França e Espanha, em 6 de junho de 1801, para pôr um fim a chamada Guerra das Laranjas. Este primeiro acordo previa, entre vários artigos: o fechamento dos portos portugueses à Grã-Bretanha; a perda da região lusa de Olivença para os espanhóis e uma indenização a Portugal pelas perdas sofridas durante a guerra. No entanto, Napoleão não aceitou os termos iniciais do tratado, o que levou a novas negociações, até que um novo tratado em Madrid no fim do mesmo ano de 1801 fosse assinado. Neste se estabeleceu a paz entre as nações e Portugal teria que pagar uma indenização no valor de um milhão de francos à França. Outro ponto importante da paz de Madrid foi o estabelecimento de novos limites entre o Brasil e a Guiana Francesa, cujo marco seria o rio Araguari, fazendo com que Portugal perdesse parte do território onde hoje se localiza o Amapá. Este tratado foi contestado em 1 de maio de 1808, depois da transferência da Corte para o Brasil, quando o regente d. João o deu como inválido, em decorrência das guerras peninsulares entre Portugal e França, e reavendo aquela região.

[2] País situado na Península Ibérica, localizada na Europa meridional, cuja capital é Lisboa. Sua designação originou-se de uma unidade administrativa do reino de Leão, o condado Portucalense, cujo nome foi herança da povoação romana que ali existiu, chamada Portucale (atual cidade do Porto). Compreendido entre o Minho e o Tejo, o Condado Portucalense, sob o governo de d. Afonso Henriques, deu início às lutas contra os mouros (vindos da África no século VIII), das quais resultou a fundação do reino de Portugal no século XIII. Tornou-se o primeiro reino a constituir-se como Estado Nacional após a Revolução de Avis em 1385. A centralização política foi um dos fatores que levaram o reino a ser o precursor da expansão marítima e comercial europeia, constituindo vasto império com possessões na África, nas Américas e nas Índias ao longo dos séculos XV e XVI. Os séculos seguintes à expansão foram interpretados na perspectiva da Ilustração e por parte da historiografia contemporânea como uma lacuna na trajetória portuguesa, um desvio em relação ao impulso das navegações e dos Descobrimentos e que sobretudo distanciou os portugueses da Revolução Científica. Era o “reino cadaveroso”, dominado pelos jesuítas, pela censura às ideias científicas, pelo ensino da Escolástica. Para outros autores tratou-se de uma outra via alternativa, a via ibérica, sem a conotação do “atraso”. O século XVII é o da união das coroas de Portugal e Espanha, período que iniciado ainda em 1580 se estendeu até 1640 com a restauração e a subida ao trono de d. João IV. Do ponto de vista da entrada de novas ideias no reino deve-se ver que independente da perspectiva adotada há um processo, uma transição, que conta a partir da segunda metade do XVII com a influência dos chamados “estrangeirados” sob d. João V, alterando em parte o cenário intelectual e mesmo institucional luso. Um momento chave para a história portuguesa é inaugurado com a subida ao trono de d. José I e o início do programa de reformas encetado por seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal. Com consequências reconhecidas a longo prazo, no reino e em seus domínios, como se verá na América portuguesa, é importante admitir os limites dessa política, como adverte Francisco Falcon para quem “por mais importantes que tenham sido, e isso ir-se-ia tornar mais claro a médio e longo prazo, as reformas de todos os tipos que formam um conjunto dessa prática ilustrada não queriam de fato demolir ou subverter o edifício social” (A época pombalina, 1991, p. 489). O reinado de d. Maria I a despeito de ser conhecido como “a viradeira”, pelo recrudescimento do poder religioso e repressivo compreende a fundação da Academia Real de Ciências de Lisboa, o empreendimento das viagens filosóficas no reino e seus domínios, e assiste a fermentação de projetos sediciosos no Brasil, além da formação de um projeto luso-brasileiro que seria conduzido por personagens como o conde de Linhares, d. Rodrigo de Souza Coutinho. O impacto das ideias iluministas no mundo luso-brasileiro reverberava ainda os acontecimentos políticos na Europa, sobretudo na França que alarmava as monarquias do continente com as notícias da Revolução e suas etapas. Ante a ameaça de invasão francesa, decorrente das guerras napoleônicas e face à sua posição de fragilidade no continente, em que se reconhece sua subordinação à Grã-Bretanha, a família real transfere-se com a Corte para o Brasil, estabelecendo a sede do império ultramarino português na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1808. A década de 1820 tem início com o questionamento da monarquia absolutista em Portugal, num movimento de caráter liberal que ficou conhecido como Revolução do Porto. A exemplo do que ocorrera a outras monarquias europeias, as Cortes portuguesas reunidas propõem a limitação do poder real, mediante uma constituição. Diante da ameaça ao trono, d. João VI retorna a Portugal, jurando a Constituição em fevereiro de 1821, deixando seu filho Pedro como príncipe regente do Brasil. Em 7 de setembro de 1822, d. Pedro proclamou a independência do Brasil, perdendo Portugal, sua mais importante colônia.

[3] A referência à República Francesa se deve ao estado francês, que, em pleno processo revolucionário, extinguiu a monarquia e adotou uma nova forma de governo - a república. Esta não era exatamente uma novidade no mundo moderno. Em 1776 as treze colônias inglesas na América do Norte se libertaram do domínio metropolitano e se tornaram uma república em um mundo no qual preponderavam as monarquias, absolutistas ou constitucionais. Esse mundo, ao passo que compartilhava de estruturas ainda feudais e aristocráticas, principalmente na Europa, também vivia sob o impacto das ideias iluministas associadas à construção de um novo pacto social. A Revolução Francesa tornou-se a grande difusora dos princípios das Luzes, sobretudo o de liberdade, que passaram a ser vistos pelo mundo monárquico como os "abomináveis princípios franceses". Em 1792, depois da tentativa de fuga de Luís XVI, a Convenção decide pela extinção da monarquia, ato que culmina com a execução do rei em janeiro de 1793. Instaura-se a República na França neste período que ficou mais conhecido como o Terror jacobino, e que perdurou até 1799 quando do golpe de Napoleão Bonaparte, que instaura o Império. Este momento simboliza a recriação do pacto social, cujo novo formato seria inspirado nos ideais antigos de liberdade clássica, na qual o cidadão participa ativa e diretamente da vida pública e política do país. No entanto, não fica clara a forma de governo adotada, que mais se assemelha a uma ditadura, encabeçada por Robespierre. A primeira república consiste na radicalização do princípio democrático, inspirada no pensamento de Rousseau, que apavorou o restante do mundo do Antigo Regime, como por exemplo Portugal, ante a possibilidade de expansão das idéias que poderiam levar à independência de colônias e à queda de reis. Apesar da curta existência, representou uma grande mudança no equilíbrio de forças na Europa e inaugurou um novo tempo. Esse período, que constantemente se confunde com o terror, com jacobinismo, mas também com o exercício (ainda que problemático) da democracia, com liberdade, igualdade e fraternidade, com os direitos universais do homem, acabou sucumbindo, no dizer de José Murilo de Carvalho na Formação das Almas, por um excesso de liberdade e falta de governo - oposto do que aconteceu na vitoriosa revolução americana.

[4] A demarcação dos limites na América passou pela legitimidade dos domínios de Espanha Portugal, provocando confrontos diretos entre as potências europeias, que buscaram, através da diplomacia, resolver as disputas existentes. As duas Coroas tiveram a necessidade de acordar entre si partilhas territoriais por meio de tratados, os quais apresentavam como aspecto inovador a instituição do rigor científico para uma melhor elaboração das delimitações, valendo-se de conhecimentos de astronomia e instrumentos matemáticos. A disputa pelos territórios da região do rio da Prata pelas metrópoles ibéricas, por exemplo, resultou numa série de tratados internacionais ao longo do século XVIII, entre eles o de Madri em 1750 e Santo Ildefonso em 1777, embora nenhum deles tenha solucionado efetivamente a questão dos limites. Em meio a estas disputas, os interesses da Inglaterra atuaram como obstáculo para a resolução das querelas territoriais na América, afetando a neutralidade lusa em relação à Espanha, pressionando a região do Prata com uma possível invasão, lembrando-se ainda a importância da colônia de Sacramento para o comércio inglês nessa área.

[5] Na América, os domínios franceses correspondiam aos territórios da Guiana Francesa, capital Caiena, que foram alvo de disputas e guerras entre França e Portugal. As relações entre Caiena e os domínios portugueses remontam ao final do século XVII. Já em fins dos setecentos, as contendas entre as duas nações sobre o estabelecimento da fronteira foram parcialmente resolvidas com o Tratado de Utrecht, de 1713-1715. Mas a questão persistiu, sendo retomada na década de 1750 no contexto das demarcações do Tratado de Madri. O governador do Estado do Grão-Pará tinha como um de seus principais objetivos resguardar a fronteira com a Guiana, o que fez através da construção da vila e fortaleza de São José de Macapá, obra que levou décadas para ser concluída. Em 1809, Caiena foi ocupada pelos portugueses e anexada aos seus domínios. Essa ação do príncipe regente d. João foi uma resposta à invasão francesa sofrida por Portugal dois anos antes. Em 1814, com a derrota de Napoleão Bonaparte, a posse da colônia voltou a ser reivindicada pelo governo francês, agora sob o domínio de Luís XVIII. Como os termos da proposta francesa não foram aceitos por d. João, a questão passou a ser discutida pelo Congresso de Viena no ano seguinte. Nessas conversações, a França concordou em recuar os limites de sua colônia até a divisa proposta pelo governo português. Entretanto, somente em 1817, os portugueses deixaram Caiena com a assinatura de um convênio entre a França e o novo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. Embora tenha durado pouco, a conquista de Caiena permitiu aos portugueses o aproveitamento, na capitania do Grão-Pará, de certas plantas raras importadas pelos franceses para plantio no jardim botânico estabelecido na região sob a denominação de La Gabrielle, que veio beneficiar a agricultura brasileira, em particular, da cana Caiena.

[6] Tratado de paz assinado entre França e Grã-Bretanha na cidade de Amiens em 27 de março de 1802, que garantiu uma trégua de 15 meses nas hostilidades entre as duas potências. Antes desse acerto, franceses e ingleses estiveram em constante guerra, fosse nos mares, por meio de suas atividades de corso e aprisionamento de navios, ou por meio de seus aliados históricos, respectivamente espanhóis e portugueses. O agravamento das hostilidades se deu com a pressão de Napoleão sobre as outras nações da Europa para aderir ao bloqueio comercial contra a Grã-Bretanha em 1806, quando o tratado já havia sido quebrado, que acabou por resultar na invasão da Península Ibérica e na transferência da Corte portuguesa para o Brasil em 1808.

[7] João Rodrigues de Sá e Melo Sottomayor (1755-1809), filho de Aires de Sá e Melo e de d. Maria Antônia de Sá Pereira e Meneses, participou ativamente do cenário político luso-brasileiro. Entre as funções e distinções que possuiu, destacam-se: senhor donatário da vila de Anadia (1787); comendador de São Paulo de Maçãs; alcaide-mor de Campo Maior; membro do conselho da Fazenda e ministro plenipotenciário em Berlim. Em reconhecimento aos serviços prestados pelo seu pai como diplomata e secretário de Estado adjunto do marquês de Pombal e depois secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, d. Maria I concedeu-lhe o título de visconde de Anadia em 1786, sendo agraciado com o título de conde pelo príncipe regente d. João em 1808. Transferiu-se junto com a Corte portuguesa para o Brasil em 1808 e exerceu o cargo de secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos até sua morte em 1809.

[8] Nasceu no bispado de Lamego em Portugal, segundo filho de Bernardo José Pinto de Miranda Montenegro, fidalgo escudeiro da Casa Real e de d. Antônia Matilde Leite Pereira de Bulhões. Comendador da Ordem de Cristo, Montenegro seguiu a carreira das letras, frequentando a Universidade de Coimbra a partir de 1777, onde obteve o grau de bacharel em 1781. Concluiu a licenciatura em 1783, ano em que também recebeu o grau de doutor em Direito. Contemporâneo dos irmãos Andrada, José Bonifácio e Antônio Carlos, foi apresentado ao ministro Martinho de Melo e Castro por d. Catarina Balsemão – mulher de Luiz Pinto de Sousa Coutinho, futuro ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra –, senhora de grande influência na corte, que solicitou para seu afilhado, o despacho de governador do Mato Grosso. O ministro Melo e Castro, no entanto, o nomeou em 1791 para o cargo de intendente do ouro no Rio de Janeiro, permanecendo na função até 1794, quando conseguiu a patente de governador e capitão general da capitania de Mato Grosso. Permaneceu governador do Mato Grosso até 1803, e tornou-se, posteriormente, governador da capitania de Pernambuco, no período entre 1804 a 1817, inclusive durante a Revolução pernambucana. Chegou a ser nomeado governador e capitão general de Angola, mas por meio de manifestações de diversos municípios, da Câmara do Senado do Recife e de pessoas notáveis junto ao príncipe regente, foi mantido no cargo. Participou ativamente da v ida política do Império, e recebeu do Imperador d. Pedro I os títulos de barão, visconde e marquês de Vila Real da Praia Grande.

 

 

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