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Comentário

Escrito por cotin | Publicado: Segunda, 28 de Janeiro de 2019, 13h17 | Última atualização em Quarta, 30 de Janeiro de 2019, 16h22
   Doutora em História pela Unicamp
docente do Departamento de História e Biblioteconomia da PUC-Campinas

 

Durante a década de 1790, os rumos da Revolução Francesa afetariam de forma patente o destino das demais monarquias absolutistas no Velho Continente. Tal foi a ebulição política em solo francês, que a circulação das ideias consideradas sediciosas pela realeza portuguesa tornou-se um sério problema a ser enfrentado. Em finais de 1794, para evitar a contaminação dos “maus princípios”, a Coroa portuguesa restabelecia a censura tríplice, revogando a censura unificada da época pombalina (cujo órgão de destaque era a Real Mesa Censória). Na prática, o controle de livros e escritos no país retrocedia às antigas instâncias de poder com domínios de atuação tripartidos entre a Inquisição, o Ordinário e a Mesa do Desembargo do Paço. A transferência da monarquia portuguesa e de sua corte para o Brasil, em fins de 1807, ocorreu em um contexto de agravamento do cenário político europeu, às vésperas da efetiva invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal. Meses depois no Rio de Janeiro, o príncipe regente d. João tomou medidas administrativas importantes para o bom funcionamento da burocracia estatal e a manutenção da Monarquia deste lado do Atlântico. Dentre as instituições de relevo aqui criadas destacava-se a Impressão Régia do Rio de Janeiro.

“Tarde, desgraçadamente, tarde: mas enfim aparecem tipos no Brasil; e eu de todo o meu coração dou os meus parabéns aos meus compatriotas Brasilienses”. [1] Em tom otimista, o destemido jornalista Hipólito José da Costa apresentava aos seus leitores a grande novidade trazida com a Coroa portuguesa pelas mãos do príncipe regente: a introdução da tipografia no Brasil, sancionada pelo decreto de 13 de maio de 1808. Redator do Correio Braziliense, periódico mensal publicado em Londres entre os anos de 1808 e 1821, Hipólito da Costa foi o baluarte da liberdade de pensamento luso-brasileira no raiar do século XIX.

A Impressão Régia do Rio de Janeiro estava subordinada à Secretaria de Negócios Estrangeiros e da Guerra e tinha como função imprimir exclusivamente todos os papéis ministeriais e diplomáticos do real serviço, incluindo aí não só os documentos de todas as repartições governamentais, mas também obras de particulares, além de produzir e fazer circular a primeira folha institucional do Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro. Era ainda atribuição da Junta Administrativa da Impressão Régia “examinar os papéis e livros que se mandassem publicar e fiscalizar para que nada se imprimisse contra a religião, a moral e os bons costumes”. [2]

Além de atuarem como censores, a Junta Diretora lia jornais estrangeiros, produzia e editava as notícias que, a partir de então, circulariam pela cidade. As notícias publicadas na Gazeta do Rio de Janeiro eram concebidas pela perspectiva transatlântica, o que também delinearia um novo diálogo político entre os súditos da monarquia portuguesa que permaneceram no reino, evidenciando, ainda, o amplo e complexo processo de comunicação da época. Juntamente com a Mesa do Desembargo do Paço e a Intendência da Polícia do Rio de Janeiro, a Junta Diretora atuava com amplos poderes e em consonância com a palavra real. Essas instituições régias cerceavam a livre manutenção das incipientes manifestações de caráter público no Brasil, razão pela qual controlavam as diversas publicações difundidas por meio da Impressão Régia, como os textos avulsos, livros e panfletos, e a própria Gazeta do Rio de Janeiro. [3]

A consolidação da tipografia no Brasil se daria já nos primeiros anos do reinado joanino (1808-1815). Em 1811, nascia na Bahia o jornal Idade d’Ouro, folha que só teve licença real após seu redator (o negociante português Manuel Antônio da Silva Serva) garantir à monarquia que o periódico não prejudicaria a publicação da Gazeta do Rio de Janeiro. [4] Dois anos depois, era a vez de o Rio de Janeiro ter O Patriota (1813-1814), primeiro jornal brasileiro de caráter científico com artigos analíticos sobre temas de arte, ciência, letras e cultura. Saído dos prelos da Impressão Régia, esse empreendimento cultural foi idealizado por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, então redator da Gazeta do Rio de Janeiro, e contou com o apoio da elite ilustrada da corte, para que seu projeto ilustrado circulasse nos dois lados do Atlântico. Ainda nesse período e também subsidiado pela Coroa portuguesa, emergiria O Investigador Portuguez em Inglaterra (1811), cuja principal função era combater as ideias de Hipólito da Costa, periodista que impulsionou transformações decisivas na redefinição do papel da imprensa ao longo da governança de d. João no Brasil (1808-1821). Em solo inglês, os dois periódicos debateriam questões centrais para a manutenção e sobrevivência da monarquia lusitana diante da crise do Antigo Regime: da defesa dos ideais políticos liberais à importância da educação pública, o novo conceito de progresso, advindo das Luzes.

A imprensa luso-brasileira “na emigração” [5] ganhava novos atores: em Londres, nascia O Portuguez (1814), de Bernardo da Rocha Loureiro, e O Campeão Portuguez (1821), de José Liberato de Carvalho. Em Paris, surgia o Observador Lusitano em Paris (1815), de Francisco Solano Constâncio, também redator dos Annaes das Sciências, das Artes e das Letras, publicação que circulou entre 1818 e 1822 nos dois lados do Atlântico. Os três jornalistas, assim como Hipólito da Costa, compunham a seleta órbita da elite ilustrada luso-brasileira.

Ao longo de todo o período joanino, a circulação, leitura, tradução e edição de documentos públicos e folhas impressas de natureza europeia e norte-americana foi uma atividade constante, sendo parte fundamental da política cultural da Coroa lusitana voltada para os impressos. Jornais ingleses, como Courier, The Times, The Morning Chronicle; franceses, a exemplo do Jornal Universal, ou, ainda, americanos, como o Federal Gazette, eram constantemente traduzidos, editados e publicados na Gazeta do Rio de Janeiro. Apesar desse intenso diálogo, a política cultural do governo joanino tinha características sui generis: seja através da liberdade de imprensa que vigorava em Londres, seja em meio ao sistema de censura vigente no Império português, a produção da palavra impressa veiculada nos jornais luso-brasileiros esteve intimamente associada às relações políticas e diplomáticas da Coroa portuguesa com as nações europeias, principalmente França e Inglaterra. Além disso, as discussões públicas de temas caros à formação da opinião pública ao longo daqueles anos mostraram como a condução da pena desses homens de letras tinha uma missão comum: o debate acerca dos melhores caminhos para que a sociedade civil luso-brasileira fosse instruída e educada com base na concepção de progresso da época, cujo sentido era intrínseco ao adiantamento em proveito das artes e ciências, dois campos do saber ainda tão interdependentes e vinculados à força do pragmatismo pedagógico. [6]

Entre 1817 e 1820, período de agravamento da crise do Antigo Regime português, a imprensa luso-brasileira delineava, pouco a pouco, novas feições que apareciam com maior nitidez a partir da Revolução do Porto, em 1820, [7] e, sobretudo, em 1821-1822. Como já demonstrou a historiadora Lúcia M. B. Neves, com a Revolução do Porto a sustentação da rígida postura da Coroa portuguesa para com os impressos transformou-se significativamente. A partir de então, ocorreu uma “ruptura nessa sistemática, com os primeiros ensaios de uma relativa liberdade de imprensa”. [8] Dentre as muitas reivindicações, os revolucionários portugueses exigiam a liberdade de imprensa e o fim da censura, pois afirmavam que a liberdade de expressão era um direito inato.

A discussão pública sobre a redefinição da estrutura política do reino ecoou de múltiplas formas nos dois lados do Atlântico, fosse por meio da documentação oficial de diversas naturezas ou dos usos e discursos da imprensa sobre os acontecimentos. Tais transformações perpassaram as páginas da imprensa luso-brasileira da época, marcando o tom ideologicamente circunscrito e politicamente inflamado fosse a favor ou contra as mudanças em curso. Foi nesse contexto, portanto que, em 28 de agosto de 1821, veiculou-se um aviso real assinado pelo príncipe regente que decretava extinta a censura prévia no Brasil. Dizia o documento:

 

Tomando S. A. Real em consideração o quanto é injusto que, depois do que acha regulado pelas Cortes Gerais Extraordinárias da Nação Portuguesa sobre a liberdade de imprensa, encontrem os autores ou editores inesperados estorvos à publicação dos escritos que pretendem imprimir. É o mesmo Senhor servido mandar que se não embarace pôr pretexto algum a impressão que se quiser fazer de qualquer escrito, devendo unicamente servir de regra o que as mesmas cortes têm determinado sobre este objeto. [9]

 

Dessa data em diante, sobretudo no biênio 1821-1822, surgiriam no Brasil numerosos panfletos e jornais que colocavam a público, questões de caráter eminentemente político por meio das quais emergiam conceitos importantes como a ideia de opinião pública. Os documentos selecionados para o tema “Imprensa, jornais e pasquins” concentram-se em diversas coleções e fundos, tais como Série Guerra, Negócios de Portugal e Série Interior, Confederação do Equador, Cisplatina, Série Relações Exteriores, entre outros. Para os documentos referentes ao período joanino temos à disposição várias cartas de homens da imprensa assim como dos governadores do reino para os ministros reais como d. Rodrigo de Souza Coutinho e Tomás Antônio Vilanova Portugal, ou mesmo d. João, que corroboram para a pesquisa acerca das bases da política cultural do governo no Brasil. As temáticas são múltiplas. Despachos oficiais que atestam o perigo da leitura de folhetos considerados sediciosos espalhados no reino, entre os anos da invasão francesa, a entrada de impressos estrangeiros europeus e americanos de teor político no Brasil (sobretudo durante as guerras napoleônicas), a censura de folhas críticas ao governo, como no caso do Correio Braziliense, assim como as negociações sobre a escrita jornalística de O Investigador Portuguez em Inglaterra ou Jornal Literário, Político, Etc, financiado pelo governo português então no Rio de Janeiro, que visava combater os ideais do Correio Braziliense. A estruturação dessa nova ordem tipográfica no Brasil (como a carta do conde de Aguiar para d. João VI, agradecendo a concessão de uso de uma tipografia na Bahia, de 1811), a preocupação dos governadores do reino com o teor opinativo do redator da Gazeta de Lisboa, em 1817, a leitura e subscrição de gazetas nacionais e estrangeiras no reino, já em 1819, a produção de folhetos críticos à monarquia no Pará e a política governamental para suspender circulação também são temas presentes. Todos esses documentos colocam em evidência as negociações da Coroa para os sentidos da governação joanina no que concerne à especificidade da produção e circulação de notícias e ideias no raiar do século XIX. Além disso, também são fontes de grande valia para o estudo das relações políticas tecidas ao longo do período entre a monarquia portuguesa e o Velho Mundo assim como com as colônias independentes da América Espanhola, mormente nas questões de delimitação de fronteira.O fundo denominado Confederação do Equador (1823-1826), referente ao projeto político separatista e republicano ocorrida durante o reinado de d. Pedro I é amplo e, dialoga sobremaneira, com as transformações políticas vivenciadas na arena pública no final do período joanino. Neste fundo, encontramos uma ampla gama de exemplares de jornais de grande importância no debate público e na condução das transformações políticas do período, como o Correio do Porto, Sentinela da Liberdade, doze exemplares do Diário do governo do Ceará (primeiro jornal da província). As proclamações de revoltosos e documentos oficiais de d. Pedro I também fazem parte da coleção e estão arquivadas juntamente com documentações de personalidades de relevo. Frei Caneca, o presidente provisório da província do Ceará, José Feliz de Azevedo e Sá, o comandante Cochrane, marquês do Maranhão, entre outras, são fontes importantes que balizam as tensas relações políticas entre as províncias revoltosas com um novo projeto político republicano e separatista o poder central. O período demarcado pela administração joanina se justifica pela atuação institucional do governo em estruturar a tipografia no Brasil e, como vimos, aponta para a proliferação de medidas no sentido de melhor consolidá-la, de acordo com a concepção de política cultural para os impressos acima explicitada. A delimitação do próprio tema da imprensa é complexa no que se refere mesmo às fontes do Arquivo Nacional: a consulta ao Roteiro de Fontes sugere o aprofundamento de pesquisas em fundos, nomes e instituições e amplia a periodização, o que demostra a fecundidade do acervo para futuras pesquisas.

 

Notas

[1] Correio Braziliense, 1808, v. 1, p. 393-394.

[2] Instrução de 24 de junho de 1808. Apud RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos Editora, 1946, p. 317. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares, era responsável pela administração da Gazeta. Associado à Junta Diretora, compunha o quadro de diretores da Impressão Régia, cujos membros tinham o monopólio da informação. A diretoria do periódico foi, inicialmente, composta por três deputados: o oficial da Secretaria de Estado de Negócios e da Guerra, José Bernardo de Castro, e dois deputados da Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro e da Bahia, Mariano José Pereira da Fonseca e José da Silva Lisboa, este último também censor régio.

[3] Para melhor compreensão da lógica da censura joanina e de sua estreita relação com a concepção política do Antigo Regime, ver: ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura: cultura religiosa na América portuguesa. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2004.

[4] SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A primeira gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brasil. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 16.

[5] Essa expressão faz referência ao título do livro do historiador João Pedro Rosa Ferreira sobre o Correio Braziliense. FERRREIRA, João Pedro Rosa. O jornalismo na emigração: ideologia e política no Correio Braziliense. Lisboa: CLC/UNL, 1992.

[6] MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Política e cultura no governo de d. João VI: imprensa, teatros, academias e bibliotecas (1792-1821). São Bernardo do Campo, SP: EdUABC, 2017. p. 432-433.

[7] Vista pelos contemporâneos como um movimento político de “regeneração” das antigas estruturas do Império português, os deputados convocaram Cortes Extraordinárias para elaborar uma constituição e abolir de vez o Antigo Regime em Portugal.

[8] NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Um silêncio perverso: censura, repressão e esboço de uma primeira esfera pública de poder (1820-1823). In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas: história da censura  no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. p. 129.

[9] Aviso de 28 de agosto de 1821. Apud MIRANDA, Francisco Gonçalves. Memória histórica da Imprensa Nacional. Comemoração do 1° Centenário da Independência do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922. p. 29. Para uma análise mais apurada dos sentidos, na sociedade joanina, da crise do Antigo Regime e, consequentemente, das práticas de censura e pareceres dos censores acerca dos livros que chegavam pelo porto do Rio de Janeiro, ver: ALGRANTI, Leila Mezan, op. cit., especialmente o capítulo 7, p. 223-253.

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