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Comentário

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Quinta, 07 de Mai de 2020, 17h11 | Última atualização em Segunda, 11 de Mai de 2020, 14h02
Papéis passados: a história das mulheres a partir da documentação arquivística 

Georgina Santos

Departamento de História e  

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense

 

A história das mulheres conquistou espaço na historiografia europeia e norte-americana, nos anos sessenta do século XX, em razão das lacunas deixadas pelas grandes análises da demografia social e em consequência dos movimentos sociais pela emancipação feminina. Os estudos demográficos sobre a flutuação populacional, os fluxos migratórios e a formação de unidades familiares decorrentes desses deslocamentos apontavam comportamentos diferenciados no tempo e no espaço, mas não informavam sobre o perfil dos chefes de domicílio, de sua prole, ou ainda sobre as relações entre os cônjuges e os critérios que presidiam suas escolhas ao se unirem. A ausência de respostas para essas questões e a popularização das bandeiras feministas motivaram o encontro de historiadores e historiadoras com uma face ainda inexplorada da história.

O percurso trilhado pelos pesquisadores para compreender a trajetória das famílias no Ocidente estreitou as relações entre a História e a Antropologia, disciplina que dispensou desde sempre grande atenção aos vínculos parentais, aos costumes familiares, aos ritos de união conjugal, por percebê-los como parte estruturante das formações socioculturais. Na década de 1960, inspirada pelo movimento feminista, a antropologia formalizou a desnaturalização dos papéis sociais do homem e da mulher, cunhando o conceito de gênero, que enfatiza o aspecto relacional entre o masculino e o feminino, ressaltando que ambos são construídos socialmente, variando de uma cultura para outra. A novidade teria, a médio prazo, um impacto decisivo nos estudos sobre a história cultural e social das mulheres, permitindo a percepção das variações e permanências acerca dos discursos (médico, religioso e jurídico) sobre o feminino, revelando aspectos até então insondados sobre a atuação das mulheres nas esferas pública e privada.

O suporte conceitual oferecido pela antropologia iluminou o olhar de uma geração de historiadores que, em busca de respostas sobre a condição feminina em tempos pretéritos, foi ao encontro da documentação arquivística. Usando fontes manuscritas massivas, passíveis de uma análise serial – como os registros paroquiais de casamento e batismo, os contratos nupciais, os processos de divórcio, os inventários e os testamentos – puderam conhecer mulheres anônimas, distantes do epicentro político, marginalizadas e até perseguidas pelos poderes instituídos, mas também herdeiras de grandes fortunas. Servindo- se de fontes avulsas e esparsas, como as fotografias antigas, os diários, a correspondência, aproximaram-se da sensibilidade feminina, de suas expectativas e das situações de vulnerabilidade a que estavam sujeitas. Utilizando a documentação impressa, como jornais, revistas e pasquins, identificaram os padrões de representação do feminino, os paradigmas usados pelo patriarcado para moldar a conduta e a estética femininas, além de apontar como a sociedade reagia aos impulsos de emancipação das mulheres.

O resultado dessa investida trouxe a público estudos de grande expressão, [1] cujas análises acabaram espelhadas na coleção História das Mulheres. A obra reúne estudos sobre a figura feminina da Antiguidade à contemporaneidade, comprovando a enorme contribuição que a história das mulheres (e das relações de gênero) trouxe à historiografia, seja por modificar a visão sobre uma época, sociedade ou instituição, seja por realçar a permanência de discursos e comportamentos em longa duração. Em outras palavras, o alcance acadêmico e social das pesquisas empreendidas nessa seara desfez lendas urbanas e refez juízos apressados. No Brasil, o desafio de retirar da penumbra a condição feminina mobilizou e ainda mobiliza um número significativo de historiadores e aprendizes. O saldo dessa iniciativa revelou situações e personagens desconhecidos ou pôs em causa interpretações consagradas. Estudos recentes sobre as mulheres indígenas na época da colonização portuguesa, por exemplo, mereceram uma revisão.

Descrita como uma gerontocracia, a organização social dos Tupinambá, estudada em obra homônima por Florestan Fernandes,[2] tornou-se conhecida como uma sociedade polígama, na qual a figura feminina era subserviente ao homem. Segundo o eminente sociólogo, entre os Tupinambá, o homem era responsável pela única voz de comando do grupo em matéria religiosa, nos assuntos da guerra e nas decisões importantes para a tribo, cabendo à mulher o plantio, a produção de cerâmica e alimentos, além do cuidado com a prole. A tese de Florestan Fernandes manteve-se incontestável por largos anos, até que, embalado pelos ventos promissores da história cultural, o antropólogo e historiador João Azevedo Fernandes pôs em xeque essa leitura androcêntrica da sociedade Tupinambá. Ao privilegiar em sua análise as regras que orientavam o casamento, uma das instituições mais importantes para esse povo indígena, Azevedo Fernandes inverteu o foco de observação, priorizando as mulheres.

Com base nos relatos dos cronistas que andaram pela América portuguesa nos primeiros séculos da colonização, esse autor demonstrou que as mulheres tinham um papel importantíssimo na escolha dos genros, aprovando ou vetando o pretendente, que se tornaria futuramente um dos guerreiros da tribo, uma vez que o noivo deixava o núcleo de origem para juntar-se à noiva na casa de seus pais. Esclarece que os grandes chefes tinham mais de uma esposa porque o exercício da liderança demandava, entre outras funções, a oferta de alimentos e acomodação para seus guerreiros. O volume das tarefas era inexequível para uma única pessoa, por isso a primeira esposa concordava que o marido desposasse outras mulheres, que deviam obediência à mais antiga. Encarregadas das atividades agrícolas e do preparo dos alimentos, as mulheres confeccionavam também potes de cerâmica para armazená-los e eram as únicas responsáveis pela produção do cauim, bebida fermentada à base de mandioca, fundamental para as práticas rituais indígenas e que precediam as cerimônias religiosas e demais celebrações. Em suma, na divisão de papéis atribuídos ao masculino e ao feminino na sociedade Tupinambá, as mulheres expressavam/representavam o trabalho, a cultura; enquanto os homens estavam relacionados à caça e à natureza, em uma relação distinta e inversa daquela presente entre os europeus na época da colonização e que justificava, no outro lado do Atlântico, a submissão feminina.[3]

A estranheza do homem branco ao se deparar nos trópicos com essas diferenças explica em parte a descrição minuciosa das tarefas e festejos indígenas pelos cronistas. O relato do soldado alemão Hans Staden sobre a participação animada das mulheres durante os rituais antropofágicos correu o mundo e acabou ilustrada pelo flamengo Theodor de Bry, em 1593. Símbolos da resistência cultural à missionação, as mulheres indígenas, sobretudo as mais velhas, foram retratadas nuas, refastelando-se com o repasto canibal, como se fossem bruxas em um sabá. Imortalizado pela escrita e pelo buril, o ritual ligou-se definitivamente ao repertório da colonização, reforçando o estereótipo da mulher como um “agente de Satã”.[4]

Associadas à natureza, às emoções, as mulheres eram consideradas, no velho mundo, desde a Antiguidade, seres propensos a desatinos e ao desgoverno, enquanto os homens eram tomados como a expressão da razão e do equilíbrio. Por este motivo, julgava-se imprescindível que as mulheres vivessem sob a tutela do pai, do esposo, do irmão mais velho, de um tutor ou instituição designada especialmente para a função. Nunca por conta própria. O espaço público era consagrado, portanto, à figura masculina, assim como o exercício das atividades profissionais livres e remuneradas, fossem cargos públicos, postos de comando, fosse algum ofício liberal ou mecânico. Das mulheres esperava-se dedicação integral à casa e à família, ou seja, total atenção às tarefas do lar e ao cuidado da prole, além dos idosos adoentados.

A adoção desse paradigma feminino prescrito nas tradições religiosas de matriz judaico-cristã e referendado pela orientação jurídica de matriz greco-romana teve como alvo mulheres brancas e livres da Europa cristã, mas se espraiou pelas terras do globo no início da Era Moderna com o movimento de expansão marítima, alcançando grupos étnicos distintos com a ação missionária empreendida pelas igrejas católica e protestante. Mas a divisão sexual do trabalho, vigente no Ocidente até o século XX, obedeceu às distinções impostas pelas clivagens sociais de cada período histórico, estando submetida às diferenças de classe, credo, cor e etnia.

No Brasil colonial, a presença de mulheres livres no espaço público era conveniente apenas em aparições rápidas, em sinal de recato, e se acompanhadas do pai, marido ou tutor para protegê-las dos olhares curiosos. A honra de uma mulher era medida por seu pudor e usada como moeda de troca no mercado matrimonial que, em regra, era assunto dos interesses econômicos e políticos dos homens, e desconsiderava a opinião feminina. O dote da noiva determinava o status social do pretendente, atraindo ou não para o grupo familiar o capital financeiro e simbólico almejado. Em franca desvantagem, as órfãs pobres recebiam o apoio da Coroa, que lhes pagava um dote para que atraíssem um parceiro capaz de mantê-las. O gesto não era apenas um ato de caridade, tornou-se também uma das estratégias para garantir, nas regiões do Império ultramarino, colonos portugueses fiéis à Sua Majestade. Era ainda uma medida para reduzir a multiplicação de amancebamentos entre portugueses e índias, denunciados pelos padres da Companhia de Jesus.

A Coroa patrocinou e agenciou acordos nupciais entre colonos e órfãs, que viviam ao abrigo de recolhimentos em Portugal, cedendo-lhes como dote cargos no ultramar aos seus futuros maridos. Pelo menos desde 1603, em cumprimento à política de povoação do Estado do Brasil, a Mesa de Consciência e Ordens enviou, regularmente, três órfãs para casarem com homens solteiros na colônia em troca de postos de trabalho na administração régia. De outras vezes, estimulou a imigração de casais formados ainda no reino. Em 1606, foram oferecidos àqueles que se casassem com as órfãs da Coroa os cargos de porteiro, escrivão e escrivão régio, no recém-instalado Tribunal da Relação de Salvador. O alentejano Cristóvão Vieira Ravasco desposou nessa ocasião a órfã lisboeta Maria de Azevedo. O pai do célebre prosador barroco Antônio Vieira serviu na Marinha portuguesa, foi escrivão da Inquisição e só assumiu o cargo prometido pelo casamento na cidade da Bahia em 1614, oito anos após sua união com Maria, com quem já tinha quatro filhos.[5]

Sem uma família que intercedesse por si, as jovens órfãs, em geral, uniam-se em matrimônio a homens sem grande cabedal. Mas as donzelas que contavam com o apoio familiar tinham seu dote negociado e valorizado por seus responsáveis. Quando a oferta disponível era insuficiente para garantir um partido que correspondesse às expectativas familiares, isto é, quando era incapaz de atrair um sujeito igual ou superior em qualidade e condição à casa paterna, as moças eram conduzidas à vida religiosa.

A política régia, entretanto, proibiu, desde cedo, a criação de conventos femininos na colônia, com o fito de aumentar o número de portugueses e seus descendentes nas possessões ultramarinas da monarquia lusitana. Na prática, o veto surtiu pouco efeito, provocando a fuga de jovens para os mosteiros da metrópole. O risco de morte ou rapto devido aos saques promovidos por piratas em alto-mar e o custo financeiro elevado da travessia marítima, alimentaram, todavia, ao longo dos anos, repedidas queixas dos colonos, que demandavam a construção de mosteiros na América portuguesa.[6] A queda de braço com a Coroa perdurou até 1677, ano da fundação do primeiro convento feminino do Brasil: o Convento das Clarissas do Desterro, na Bahia. A iniciativa manteve-se, no entanto, como uma ação isolada e foi incapaz de atender à demanda das famílias na colônia, que continuaram remetendo jovens ao noviciado em terras lusitanas. 

Em 1730, o padre Francisco Plácido de Santa Rosa, radicado no Rio de Janeiro, solicitou ao governador permissão para que sua irmã “donzela” pudesse ser conduzida a Portugal, onde se recolheria como religiosa, porque a moça vivia com o pai em Congonhas, na capitania de Minas Gerais, mas o coronel Francisco Pereira contava então oitenta anos e já estava “caduco”, sem condições de ser responsável pela jovem. O sacerdote cumpriu à risca o protocolo, pedindo permissão às autoridades competentes para que a irmã pudesse deixar a colônia.[7] Mas nem sempre os pais ou tutores agiam assim. Em 1732, para impedir que mulheres em idade fértil se evadissem da colônia para se tornarem freiras, provocando um desequilíbrio no mercado matrimonial, o rei d. João V estipulou o pagamento da multa de 2.000 mil-réis e o cumprimento de dois meses de prisão àqueles que se dispusessem a conduzir moças para os conventos do reino sem seu consentimento e à revelia das interessadas.[8] A medida draconiana despertou algum alvoroço. Quase um ano depois, em 20 de fevereiro de 1733, o monarca enviou um aviso ao capitão-general da capitania do Rio de Janeiro, esclarecendo que o alvará emitido no ano anterior excetuava as mulheres casadas, que poderiam voltar à corte acompanhadas de seus maridos, sem prejuízo da lei.[9] Alvará e aviso esclareciam que acima das vontades de pai, mãe e filhas estavam os planos do rei de Portugal.

As restrições migratórias impostas pela Coroa para evitar a evasão de mulheres da colônia geraram uma sucessão de pedidos de dispensa ao cumprimento do famigerado alvará de 1732. Quando era possível, a solicitante ou o seu tutor acionava sua rede de apoio para referendar a petição. Em 1735, Ana da Costa de Almeida, moça donzela, de vinte e dois anos, recorreu ao brigadeiro José da Silva Paes, para que escrevesse ao rei, referendando seu pedido para deixar a colônia e seguir viagem até a corte em companhia de seu pai, Antônio de Almeida, pois pretendia tornar-se religiosa em um dos conventos portugueses.[10] José da Silva Paes atendeu prontamente e considerou procedente o requerimento, assim como o capitão-general do Rio de Janeiro faria dois anos à frente.

Em 1737, Gomes Freire de Andrade encaminhou ofício ao rei de Portugal endossando o requerimento de Joana Francisca de Vasconcelos para ser religiosa em algum convento do reino. O governador considerou a suplicante merecedora do pedido, justificando a indulgência com sua orfandade: os pais de Joana estavam mortos e ela vivia sob a tutela do tio viúvo.[11] Gomes Freire de Andrade também usou a vulnerabilidade da solicitante para justificar a petição de outras mulheres que pretendiam deixar a colônia. Em 1740, enviou carta ao rei d. João V comunicando a petição de Ignácia Maria Francisca, que pretendia servir em algum convento do reino juntamente com a única filha. Ignácia estava viúva e sua filha solteira não tinha irmãos que lhe pudessem acudir em caso de alguma falta. Para que a solicitação tivesse acolhida, destacou que a moça teve desde sempre vocação para religiosa.[12] Mãe e filha seguiam a etiqueta da época: seguir para ao convento após a viuvez ou ainda em tenra idade. Viúvas e virgens cabiam bem nos conventos, uma vez que a vida sexual era, segundo a moral e os bons costumes, um assunto apenas para mulheres casadas e visando a procriação. 

Vestir o hábito e trancar-se em um claustro poderia de fato interessar a algumas jovens, até porque muitas eram orientadas pela família para aceitarem esse destino desde a infância. Mas muitas vezes o que estava em questão era a possibilidade de experimentar uma vida nova na corte. Lisboa, na altura, exibia palácios vistosos, belas chácaras, ricas igrejas, granjeando fama e colhendo curiosidade na Europa e no além-mar. As belezas estavam, porém, ao alcance dos homens, senhores do espaço público. Vestidas e penteadas à francesa, as mulheres usavam sobre a casaca, bordada ou não, um manto preto, franzido na cabeça, que lhes mantinha a cara e o corpo ocultos do olhar alheio quando saíam à rua, por um breve período, para assistir a procissões, touradas e autos da fé. Vigiadas dia e noite, aguardavam ansiosas a oportunidade de escapar à clausura doméstica.[13] Os conventos da época ofereciam uma alternativa distinta. Longe do olhar regulador dos homens, constituíram espaços de maior liberdade feminina, onde as mulheres administravam a vida econômica da comunidade e desenvolviam alguns talentos, dedicando-se à música, à escrita, à botica ou à administração dos bens conventuais.[14]

Em Portugal, no século XVIII, e nos trópicos, desde sempre, o confinamento no claustro era uma alternativa para as mulheres limpas de sangue, quer dizer, exclusiva àquelas que não tinham entre seus ancestrais “raça de judeu, mouro, negro ou gentio da terra”, como se dizia na época, sem ocultar o preconceito e o racismo que definiam as hierarquias sociais. Ser freira era, portanto, uma prerrogativa das mulheres brancas e cristãs-velhas capazes de pagar pelo dote que lhe requeriam para entrada no convento. Africanas, crioulas, indígenas e mulheres cristãs-novas, ou seja, “de nação hebreia”, estavam excluídas do corpo angélico conventual da América portuguesa, a despeito da vocação. Muitas acabavam por fundar recolhimentos, instituição que combinava características de orfanato, educandário e convento, para que pudessem dar vazão à sua mística. [15] Mas se as mulheres de origem judaica eram capazes de atrair um casamento misto vantajoso, graças ao eventual patrimônio familiar, indígenas, africanas e crioulas estavam à margem de vínculos matrimoniais, isto é, de uniões conjugais sacramentadas pela Igreja, fora de seus grupos étnicos.

A política régia para união entre colonos e índios sofreu grande mudança a partir da década de 1750, período em que as reformas empreendidas pelo secretário de estado Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal, iniciaram seu curso. Com o objetivo de assimilar os povos originários à sociedade e à população colonial, a Coroa passou a estimular o casamento de portugueses e descendentes com indígenas. A meta era obter uma homogeneização linguística e cultural, descaracterizando o perfil étnico e político dos grupos indígenas no contexto colonial.[16] Em 4 de abril de 1755, o alvará com força de lei oferecia aos contraentes benefícios econômicos e políticos para si e seus herdeiros, isentando-os de qualquer dispensa para assumir emprego, receber honra ou dignidade. O documento proibia, em definitivo, que os descendentes dessa união mista fossem tratados como “caboucolos”.[17]

O incentivo régio parece não ter alterado o padrão de uniões mistas entre portugueses e indígenas, marcadas pela informalidade e inibidas pela discriminação fomentada durante séculos pelos estatutos de limpeza de sangue. Em 26 de fevereiro de 1773, dezoito anos após a promulgação da lei, e no mesmo ano em que o primeiro-ministro de d. José I pôs fim à distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, informava ao desembargador Manoel Francisco da Silva Veiga ter presenteado Rosa Maria de Marins, que havia se casado com o índio Baltazar Antunes Pereira. Declarou que assim o fez para animar as mulheres brancas a se casarem com índios, assim como os homens brancos a se casarem com índias.

O casamento oferecia, contudo, proteção financeira à mulher e a seus descendentes. Poderia ser, inclusive, um passo para a emancipação. Em 1740, Rosa Maria de Boa Ventura solicitou permissão ao rei para atravessar o oceano, alegando que já não tinha mais ninguém na colônia que olhasse por ela. Não pediu para ingressar em uma ordem religiosa, como tantas outras. Argumentou que o avô vivia na corte e poderia oferecer-lhe uma boa educação, e que estando em Portugal tinha a possibilidade de receber a herança deixada pelos pais.[18] Três décadas à frente, Maria Gomes do Nascimento, filha legítima de Manoel Gomes Leitão e Francisca dos Santos, requisitou na comarca de Vila Rica o recebimento dos bens que eram seus por herança e solicitou sua emancipação a fim de poder administrar seus bens por conta própria. Maria tinha vinte e dois anos de idade, era instruída e foi considerada apta pelo juiz de órfãos local, que decidiu por uma emancipação temporária, para verificar a capacidade da suplicante de se autogerir.[19] Na prática, a autonomia conferida à jovem não lhe permitia dispor de seus bens como desejasse, conduzindo-a sutilmente a agir conforme o que se esperava de uma mulher branca e de posses no Brasil colonial, que previa para uma jovem na sua idade e condição um casamento com um homem de mesmo status social.  

A preocupação em dirigir as escolhas femininas, colocando as heranças sob tutela ou condicionantes, incluía também as mulheres maduras. Em 1744, o alvará régio conferiu a Afonsa de Mendonça o ofício de tabelião do judicial e notas da cidade do Rio de Janeiro, antes concedido ao seu falecido marido, Cristóvão Correa Leitão, em pagamento de uma dívida da Real Fazenda. A mercê, na verdade, não foi dada à viúva para usufruto seu, e sim como dote para a filha mais velha do casal. Joana deveria escolher, com a aprovação da mãe ou livremente, um homem de qualidade para seu marido, pois seria o novo tabelião.[20]

A administração da herança de uma mulher poderia manter-se sob seus cuidados depois do casamento, se o contrato nupcial assim determinasse. Após o falecimento de Maria da Silva da Piedade, seus bens ficaram sob os cuidados do esposo até que os filhos atingissem a maioridade. O inventário, aberto a pedido de seu marido, o juiz Ignácio da Silva do Nascimento, informa que Maria legou, aos herdeiros, escravos, joias, roupas, talheres, objetos pessoais, como uma caixa de madeira, além de móveis, como uma mesa de jacarandá, entre outros utensílios domésticos.[21]

Referidas com frequência em inventários e testamentos, as mulheres escravizadas estavam alijadas das opções consideradas dignas para uma dama na sociedade colonial. Privadas da liberdade, apartadas do lugar de nascimento e sujeitas às vontades de senhores e sinhás, permaneciam à margem dos acordos nupciais, mas formavam famílias e laços de compadrio no ambiente adverso da escravidão.[22] Forçadas à reprodução, à lactação, à prostituição, as negras escravas também eram submetidas à labuta do roçado, ao trabalho da construção civil, às lides do serviço doméstico ou à refrega do comércio ambulante, conforme determinado pelos proprietários. Mas as duras limitações impostas pela longa travessia do Atlântico e pelo cotidiano entre a casa-grande e a senzala engendraram mecanismos de adaptação e resistência. À sombra das irmandades, dos terreiros de candomblé, as mulheres escravizadas edificaram redutos para manutenção de práticas religiosas capazes de conservar valores africanos, amenizando assim o sofrimento causado pela ruptura dolorosa com a terra natal e criando mecanismos de apoio mútuo para a população escrava, inclusive para que obtivessem a sonhada liberdade.

Almejada por todos os escravizados, a manumissão era vista com um ato de caridade pelo senhor e como uma conquista para os cativos. A trajetória de muitas ganhadeiras comprova o dito. Usaram a própria lida para reescrever o destino traçado pelo cativeiro, auferindo somas capazes de comprar a própria alforria. Trabalhando como cozinheiras, amas de leite, lavadeiras, engomadeiras e vendedeiras de alimentos crus ou cozidos, as ganhadeiras movimentavam a vida urbana das vilas e cidades coloniais, auferindo somas diárias significativas para os donos. Acordada previamente, a renda proveniente do trabalho realizado era entregue ao senhor, mas o montante obtido além da quantia fixada pertencia à escrava de ganho, que podia ou não viver sob o mesmo teto do proprietário. Embora a mão de obra masculina fosse mais valorizada do que a feminina, quando o assunto era o comércio ambulante, os senhores tinham franca preferência pelas mulheres, consideradas mais ladinas para o ofício do que os homens.[23]

Oriundas do continente africano, onde mercadejavam no espaço público sem que lhes pesasse qualquer reprovação moral, as escravas de ganho demonstravam desenvoltura com as vendas, mantendo um público fiel de trabalhadores livres ou escravizados. No tabuleiro que equilibravam na cabeça com enorme competência ou nas barracas em que mantinham seus fogareiros acesos para assar ou cozer gulodices, havia feijão, carne-seca, frutas, verduras e pratos quentes à base de farinha de mandioca ou de miúdos de boi. Com um tempero peculiar, meio indígena meio africano, e a conhecida esperteza para tratar com os clientes, acabaram por exercer o controle sobre o comércio varejista de produtos perecíveis. Na Bahia do século XVIII, elas monopolizavam o comércio de peixes, carnes e verduras.[24]

O ganho foi, efetivamente, uma das principais portas para a emancipação de mulheres escravizadas e tornou-se um meio de vida para as libertas quando o cativeiro se tornou passado em suas vidas. Em Minas Gerais, no século XVIII, a extração de metais impulsionou o crescimento populacional e a urbanização da região, fomentando a oferta de serviços que dessem apoio às atividades mineradoras. Nesse cenário, as negras escravas, portando tabuleiros, subiam e desciam ruas, circulavam pelas lavras, vendendo alimentos. Orientada pelos senhores, a movimentação das escravas nos espaços públicos garantia-lhes o ganho pecuniário previsto, mas engendrava igualmente oportunidades para que elas mesmas amealhassem valores. Como essas atividades não eram executadas pelas mulheres brancas, tampouco por homens, a médio prazo o negócio dos tabuleiros facultou-lhes a compra da liberdade e, em alguns casos, até mesmo o enriquecimento. Livres e autônomas, as mais prósperas tornaram-se proprietárias de sobrados e de escravos, desafiando as regras socialmente previstas para as mulheres. Ligando-se às irmandades de pretos forros, estimularam devoções marianas, como a de Nossa Senhora da Conceição e a da Virgem do Rosário. À frente de seus núcleos familiares, concederam ou propiciaram, após a morte, alforrias aos próprios escravos.[25] A trajetória singular dessas “sinhás pretas” foi, no entanto, um produto das cidades mineiras enriquecidas em decorrência da mineração. Na sociedade escravista colonial, a figura feminina era, na esmagadora maioria dos casos, submetida à ordem patriarcal. Mas como se pode apreender de algumas peças do precioso acervo documental do Arquivo Nacional, reagiram aos mandos e abusos do poder masculino, direta ou indiretamente.

 

[1] BADINTER, Elizabeth. Émilie, Émilie: a ambição feminina no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial; Duna Dueto; Paz e Terra, 2003. (1. ed., 1983); DUBY, George; PERROT, Michelle. História das mulheres. Porto: Afrontamento, 1994. 5 v. (1. ed., 1991); DAVIS, Natalie Zemon. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. (1. ed., 1995); PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005. (1. ed., 1998).

[2] FERNANDES, Florestan. A organização social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec, 1989. (1. ed., 1949).

[3] FERNANDES, João Azevedo. De cunhã a mameluca: a mulher Tupinambá e o nascimento do Brasil. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2003.

[4] RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

[5] COATES, Timoth J. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela Coroa no império português (1550-1755). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, p. 230-231.

[6] SANTOS, Georgina Silva dos. Devoção, disciplina e preconceito: a construção da santidade em conventos e recolhimentos da América portuguesa. Lusitania Sacra – A Santidade. Lisboa, tomo XXVIII, 2ª série, p. 153-172, jul./dez. 2013.

[7] Registro original de correspondência dos governadores do Rio de Janeiro, destes com outros e com diversas autoridades. Portarias, ordens, bandos etc. Secretaria de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 20 de março de 1730. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.87, v. 05, fl. 205 v.

[8] Alvará de d. João V proibindo a ida de mulheres do Brasil ao reino de Portugal, sem licença por ele concedida. Cartas régias, provisões, alvarás e avisos. Secretaria de Estado do Brasil. Lisboa Ocidental, 10 de março de 1732. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.952, v. 27, fls. 10-10v.

[9] Cartas régias, provisões, alvarás e avisos. Secretaria de Estado do Brasil. Lisboa, 20 de fevereiro de 1733. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.952, v. 27, fl. 8.

[10] Correspondência ativa e passiva dos governadores do Rio de Janeiro com a Corte. Registro original. Secretaria de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1735. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.80, v. 06, fl. 127v.

[11] Correspondência ativa e passiva dos governadores do Rio de Janeiro com a Corte. Registro original. Secretária de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 1737. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.80, v. 07, fl. 57.

[12] Correspondência ativa e passiva dos governadores do Rio de Janeiro com a Corte. Registro original. Secretária de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 24 de maio de 1740. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.80, v. 07, fl. 281.

[13] RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Vestígios da educação feminina no século XVIII em Portugal.  São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 130-134.

[14] SANTOS, Georgina Silva dos. A vida nos conventos portugueses durante a Época Moderna. Caderno Socioambiental – Representações do feminino: olhares revisitados e contemporâneos, Niterói, ano I , n. 1, p. 29-42, 2013.

[15] SANTOS, Georgina Silva dos. Disciplina, devoção e preconceito..., p. 155-158.

[16] MOREIRA, Vania Maria Losada. Casamentos indígenas, casamentos mistos e política na América portuguesa: amizade, negociação, capitulação e assimilação social. Topoi, Rio de Janeiro, v. 19, n. 39, set./dez. 2018, p. 42.

[17] Alvará de 4 de abril de 1755. In: SILVA, Antônio Delgado da. Coleção da legislação portuguesa. Desde a última compilação das ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 368.

[18] Correspondência ativa e passiva dos governadores do Rio de Janeiro com a corte. Registro original. Secretária de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1740. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.80, v. 07, fl. 271.

[19] Tribunal do Desembargo do Paço: registro de provisões, cartas e alvarás da Relação do Rio de Janeiro. Registro de papéis despachados na Mesa do Desembargo do Paço. Relação do Rio de Janeiro, Vila Rica, [1772-1778]. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 84.0.COD.24, v. 06, fls. 16v e 17.

[20] Registro geral de ordens régias. Secretaria de Estado do Brasil. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1744. Arquivo Nacional, BR RJANRIO 86.COD.0.64, v. 07, fl. 17.

[21] Inventário de Maria da Silva da Piedade. Juiz de Órfãos e Ausentes. Rio de Janeiro, [1793]. Arquivo Nacional, BR RJANRIO ZN maço 473, processo 9039.

[22] SLENES, Robert; FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho, Tempo, v. 3, n. 6, dez. de 1998; FREIRE, Jonis. Família, parentesco espiritual e estabilidade familiar entre cativos pertencentes a grandes posses de Minas Gerais, século XIX. Afro-Ásia, n. 46, 2012.

[23] SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia no século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994, p. 49-60.

[24]  VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no Século XVIII. v. 1. Salvador: Itapuã, 1969, p. 93.

[25] FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e São João del Rei (1700-1850). Tese de titular, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000.

 

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