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Vila de Guaratinguetá

Escrito por Januária Oliveira | Publicado: Sexta, 30 de Dezembro de 2022, 13h47 | Última atualização em Quinta, 05 de Janeiro de 2023, 20h30

Correspondência do vigário Lourenço da Costa Moreira, em que solicita que seja erguida uma nova matriz da paróquia de Nossa Senhora da Soledade, pois, segundo o religioso, a maior parte da população se encontrava distante e sem auxílio espiritual dada a distância de onde se localizava a atual matriz. 

Conjunto documental: Mesa da Consciência e Ordens
Notação: caixa 286, pct. 03
Datas-limite: 1803 – 1828
Título do fundo: Mesa da Consciência e Ordens
Código do fundo: 4J
Argumento de pesquisa: População, censos
Data do documento: 28 de setembro de 1822 Local: Vila de Guaratinguetá, SP
Folha:-
 
Veja esse documento na íntegra

Em observância do que me foi determinado pela Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, e me foi intimado pelo juiz de fora da vila da Campanha da Princesa[1], sobre um requerimento, que dirigiu a SAR o capitão Custodio Manuel Rodrigues, e outros moradores desta freguesia de Itajubá, passo a responder imparcial sobre o objeto de que tratam em a sua representação.

Na era de setecentos e sessenta e dois em que foi ereta essa freguesia pelo Exmo. Bispo que então existia d. Frei Antonio da Madre de Deus, e o lugar da mesma foi em distância hoje da matriz légua e meia para a parte da serra denominada o Arraial Velho, e passados alguns anos os fregueses[2] vieram povoar este lugar porque nele achavam melhor conveniência em lavras[3] de ouro, aqui se estabeleceram dita freguesia de Itajubá, em tempo, que os habitantes não se ocupavam senão em procurar ouro pelos córregos. Os sertões[4] circunvizinhos se achavam despovoados, e sem cultura alguma, e pelo decurso dos anos entravam os moradores a estenderem-se, estabelecendo-se com lavouras e criações deixando-se inteiramente do uso mineral e de tal sorte se tem povoado, que existindo esta freguesia há 30 anos com 700 pessoas, hoje se acha com mais de 3 mil. A parte mais povoada é aquela que compreende o Sapucaí, de sorte que os casais mais bem estabelecidos e de maior aplicação à agricultura[5] se acham naquele terreno, existindo da parte da freguesia muito poucos moradores a proporção do povo que se acha no dito sertão, e porque estes pela distância da sua matriz se achavam privados do pasto espiritual[6] sendo a maior porção dos fregueses desta paróquia e de distância de sete a nove léguas e já no tempo de meu antecessor recorreram a S. Excia. Reverendíssima de quem obtiveram despacho para mudança da sua igreja e o reverendo visitador nesse tempo com o reverendo pároco e mais povo foram ao lugar que designaram mais próprio no centro dos fregueses para aí levantarem a nova matriz, e isto a requerimento da maior parte dos fregueses que constituem a paróquia de Itajubá. Entrando eu no ministério paroquial, e conhecendo a justiça daqueles fregueses tão distantes, não fiz mais do que convir com os seus votos aprovando o recorrerem a S. Excia. Reverendíssima e concordando com os seus desejos, em no lugar já designado deram princípio à nova matriz, e continuam a conclui-la com grande fervor.

É verdade que estabelecida a freguesia no mencionado lugar designado, fica ela no centro dos fregueses, e com facilidade para poder-se-lhe administrar o pasto espiritual, por quanto para todos os bairros povoados se pode passar sem trânsito de serra, o que é impraticável neste lugar donde existe presentemente a freguesia, porque para qualquer parte se encontram serras, e caminhos muito agrestes. Parece racionável que existindo a maior parte dos fregueses por não dizer quase [...].

Os fregueses todos na circunvizinhança da nova igreja que pretendem, fiquem estes privados do seu cômodo por condescender com a insignificante porção de fregueses que moram perto desta matriz antiga ainda quando o mesmo capitão Custódio e outro capitão desta freguesia tem as companhias de seu comando juntas a nova igreja, donde necessariamente devem frequentar para satisfação dos deveres da sua comandança. O exposto é verdade e eu não propendo por interesse algum mais que pelo bem público, que resulta desta nova igreja sujeitando-me submissamente ao que me foi determinado em nome de SAR.

Vila de Guaratinguetá, 28 de setembro de 1822.

O vigário Lourenço da Costa Moreira

 

[1] CAMPANHA DA PRINCESA: no processo de diversificação produtiva ocorrido em Minas Gerais a partir da década de 1750, nota-se um movimento demográfico e financeiro, e um deslocamento do eixo econômico da comarca de Vila Rica para a comarca do Rio das Mortes, onde se localizavam boas terras para a agricultura e a pecuária. Em 1798, durante o governo do visconde de Barbacena, duas vilas foram criadas por mercê da rainha d. Maria I: Campanha da Princesa e Paracatu do Príncipe. Campanha do Rio Verde, Campanha da Princesa ou simplesmente Campanha foi a primeira vila e cidade, assim como a paróquia e povoação mais antiga, fundada no sul de Minas. A corrida pelo ouro gerou disputas acirradas entre paulistas e mineiros, ao longo do século XVIII, nessa região sul da capitania de Minas Gerais, também conhecida como Minas do Rio Verde. Em 1737, o então ouvidor da vila de São João del Rei, Cipriano José da Rocha, comandou uma expedição militar que deveria reconhecer a região, desbravar os sítios desconhecidos ao longo da bacia dos rios Verde, Sapucaí e Palmela, e tomar posse do território de mais de vinte léguas em nome do rei. O arraial, onde já existia uma estrutura de povoado com praça, ruas e casas, chamado a princípio pelo nome do ouvidor, foi denominado, pouco depois, Campanha do Rio Verde de Santo Antônio do Vale da Piedade, jurisdicionado à comarca do Rio das Mortes. As disputas pelo domínio dessa área residiam, em grande medida, na sua localização estratégica, de fácil acesso ao Rio de Janeiro e São Paulo, que facilitava o extravio do ouro extraído, fazendo com que o Senado da Câmara da Vila de São João del Rei necessitasse, em 1743, reafirmar o auto de ocupação de posse do território, devido à presença de um representante do governo paulista no local reivindicando igualmente o direito de posse sobre o arraial. Por alvará de 20 de outubro de 1798, d. Maria I concedeu o título de vila da Campanha da Princesa ao arraial e o auto de declaração da criação da vila aconteceu em 26 de dezembro de 1799. Segundo Marcos Ferreira de Andrade, autor de Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa de 2005), a elevação a vila do antigo arraial de Campanha do Rio Verde deve ser entendida como parte de um movimento mais amplo que se inseria no contexto das transformações ocorridas em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII, tanto em termos econômicos quanto políticos. Na passagem do século XVIII para o XIX, a vila de Campanha da Princesa assumiria um lugar de destaque, tornando-se um dos mais expressivos núcleos urbanos da região da Comarca do Rio das Mortes, representando, em 1821, cerca de quarenta por cento da população total da capitania, e com vigorosa participação na política imperial. Existiam um variado comércio e uma produção agropecuária voltada para o mercado interno, com destaque para as lavouras de milho, feijão, arroz e mandioca. Até 1833, a vila de Campanha da Princesa pertenceu à comarca de Rio das Mortes, quando se tornou cabeça da comarca do Sapucaí.

[2] FREGUESES: Os habitantes de uma freguesia. Em Portugal, as divisões administrativas das províncias estavam organizadas de acordo com a seguinte escala: cidades, vilas, freguesias e aldeias. Cada freguesia possuía uma situação jurídica própria, podendo ser de primeira, segunda ou terceira ordem. A freguesia de primeira ordem agrupava mais de 5.000 pessoas. As de segunda ordem, entre 800 e 5.000, e as de terceira ordem, menos de 800 pessoas. Em cada freguesia havia um regedor que era o representante da autoridade municipal e diretamente dependente do presidente da câmara municipal. O termo paróquia era utilizado como sinônimo de freguesia, na esfera eclesiástica, portanto fregueses, neste caso, são os membros de uma paróquia.

[3] LAVRAS: terrenos em que se realiza a extração de minerais ou de pedras preciosas, as lavras eram concedidas a poucos privilegiados, que conseguiam provar sua capacidade de financiar a exploração das minas e que pagavam pelo direito de explorá-las. Há várias formas de extração de minerais de seus veios originais e, no Brasil colônia, consistia basicamente na utilização de bateias para separar os cascalhos do ouro e diamantes. O método exigia concentração acentuada de quem faz o garimpo, pois pedras menores poderiam, facilmente, passar despercebidas. O uso das bateias de madeira foi uma inovação atribuída aos escravos; antes disso eram usados pratos de estanho, de manuseio mais difícil. O uso das “canoas”, onde se estende um couro de boi ou uma flanela para reter o ouro apurado com a bateia, também é atribuído aos escravos. A princípio, o cascalho é levado a um local onde não possa ser carregado pela água, processo inicialmente feito com auxílio da bateia em crivos. Mas, por se perderem muitas pedras nesses crivos, passaram a utilizar mesas contendo bicas, onde se lançavam os cascalhos. Grades de ferro foram inseridas, após algum tempo, nesse processo, para conter pedras e areias grossas. O que passava por essas grades ficava em tabuleiros de madeira que serviam de canais para tanques e, em seguida, eram apurados nas canoas. Quando o cascalho era pobre, passava-se antes no bolinete (tabuleiro grande com vinte e cinco palmos de comprimento). Aos cativos que encontrassem boa quantidade dessas riquezas abria-se a possibilidade de ascensão e alforria.

[4] SERTÃO: categoria que povoa há muito a historiografia brasileira, desde os primeiros cronistas e viajantes dos séculos XVI ao XIX, até historiadores dos séculos XIX e XX, que o elegeram como objeto de estudo, entre eles Capistrano de Abreu e Sérgio Buarque de Holanda. É um conceito chave na construção do imaginário regional, na relação de alteridade com o litoral – na qual um define ao outro – e na construção do conceito de nação. Há uma extensa discussão filológica acerca da origem da palavra sertão, e de qual termo latino ela deriva. De deserto ou de certão, em ambas as acepções, a ideia que encerra é sempre do interior, local vazio, despovoado, selvagem, distante do litoral, região de fronteira, mas não necessariamente seca, como atualmente se usa para referir à região do semiárido nordestino. No Brasil, é preciso reforçar, não houve um só sertão, mas vários. Desde o início da colonização, o termo aparece no vocabulário daqueles que descreviam as novas terras desbravadas. Ora usado para o interior da capitania de São Vicente, ora para referir às minas gerais, ou para o centro-oeste, em Mato Grosso ou Goiás, era também o interior do Nordeste e as regiões quase inatingíveis da Amazônia. Durante o povoamento, o sertão estava sempre nas franjas das frentes que avançavam em direção ao oeste, se opondo ao litoral. Se a faixa litorânea, mais povoada, representava o ideal de “civilização” – as cidades, o local da administração colonial e do exercício do poder –, por oposição o sertão se definiria como a terra sem lei, inculta, das guerras contra o gentio selvagem, do vazio populacional. No entanto, para aqueles que não encontravam um lugar no mundo da ordem, o sertão também representou a terra promissora, das riquezas ainda inexploradas, da liberdade para escravos e condenados que para lá fugiam, da mestiçagem entre as “raças”, do encontro entre as culturas e línguas. Apesar de em princípio se situar fora da ordem colonial, o sertão estava sempre sendo conquistado, ocupado, em vias de se civilizar, e avançava: a expansão para dentro da colônia era constante e estava diretamente atrelada às atividades econômicas. A produção açucareira interiorizou os engenhos no Nordeste, a mineração promoveu a penetração desde as Minas Gerais até Goiás, os bandeirantes [bandeiras] também foram responsáveis pelo avanço mais ao Sul, desbravando terras e capturando índios, e a pecuária foi um instrumento importante na conquista dos territórios do interior, o gado e as tropas avançando junto com o povoamento. Nas províncias do Norte, a coleta das drogas “do sertão” foi fundamental para a abertura de novos caminhos e a ocupação de regiões distantes e de difícil acesso na mata. Para além de meramente espacial, o sertão é uma categoria cultural que influi até hoje na construção das identidades regionais Brasil afora, na música, na literatura e nas demais manifestações artísticas, seja no interior como no litoral.

[5] AGRICULTURA: durante a maior parte do período colonial o sistema agrícola brasileiro se caracterizou pela grande lavoura monocultora e escravista voltada para exportação, definida por Caio Prado Junior pelo conceito de plantation. Entretanto, podiam ser encontradas também em menor escala as pequenas lavouras, policultoras e de trabalho familiar. Com a chegada da família real e toda a estrutura do Estado português, houve a necessidade de incremento no abastecimento de gêneros agrícolas especificamente para o mercado interno. À época, a estrutura agrária brasileira era pautada pela rusticidade dos meios de produção, pela adubação imprópria e falta da prática do arado, enfim, o que havia era a presença modesta de técnicas modernas de cultivo. D. João VI, atento a essa situação emergencial, criou, em 1812, o primeiro curso de agricultura na Bahia e, em 1814, no Rio de Janeiro, uma cadeira de botânica e agricultura, entregue a frei Leandro do Sacramento. O objetivo era o melhor conhecimento das espécies nativas, não apenas para descrição e classificação, mas também para descobrir seus usos alimentares, curativos e tecnológicos. Mais do que isso, a incentivo aos estudos botânicos e agrícolas era parte de uma nova mentalidade de promoção das ideias científicas, que já vinha sendo implementada em Portugal desde o final do século XVIII. A agricultura era vista como uma verdadeira “arte”, pois era o melhor exemplo de como o homem era capaz de “domesticar” a natureza e fazê-la produzir a partir das necessidades humanas. Significava a interferência do Estado em prol do aproveitamento racional das riquezas naturais, orientado pelas experimentações e pela própria razão.

[6] PASTO ESPIRITUAL: de acordo com o Vocabulário português e latino, do padre Rafael Bluteau (1712-1728), trata-se da celebração dos sacramentos da doutrina da Igreja católica para seus fiéis. O pasto espiritual consiste nos “ensinamentos” que exortam, corrigem, aconselham os cristãos a viver de acordo com a palavra de Deus. Encontram-se registros como uma carta de 1787 endereçada a d. Maria I, rainha de Portugal, solicitando autorização para constituir uma capela em homenagem a Santo Antônio de Lisboa, pois os fiéis dali careciam de pasto espiritual. Após a expulsão dos jesuítas, em 1759, o governador da capitania do Mato Grosso e Cuiabá erigiu uma freguesia e proveu capelão secular para dar assistência do pasto espiritual aos moradores da vila da Chapada dos Guimarães. Na região das jazidas auríferas das primeiras décadas do século XVIII, a proibição da Coroa à instalação de hospícios, localidades como casas de repouso e acolhimento de peregrinos e religiosos de passagem sem pouso certo, era driblada pelos moradores de Sabará, São João del Rei e Vila Rica que demandavam o pasto espiritual para eles e seus escravos. Em sua maioria eram os párocos franciscanos e carmelitas, particularmente, que ocupavam esses hospícios, enviados pelas ordens regulares para assistir a população administrando o pasto espiritual com os serviços de sacramentos cristãos ali aguardados.

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