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Conflitos entre o Império do Brasil e as repúblicas da América do Sul

Escrito por Claudia Beatriz Heynemann | Publicado: Quinta, 04 de Janeiro de 2024, 18h43 | Última atualização em Segunda, 08 de Janeiro de 2024, 19h22

Tradução de um ofício particular do diplomata inglês, Carlos Stuart, para o político britânico, George Canning, sobre o acirramento das relações entre o Império do Brasil e as repúblicas da América do Sul. Essa questão seria de fundamental importância para a manutenção da monarquia no Brasil. 

Conjunto documental: cartas tratando do reconhecimento da independência do Brasil; das relações do Brasil com os governos da América do Sul e sugerindo evitar conflitos entre Brasil e estes governos; informando sobre a sua missão junto ao governo do Brasil e das cartas patentes do tratado assinado, do seu retorno; e comentando situação da Banda Oriental e da preocupação quanto a ocupação do Rio da Prata.
Notação: BR RJANRIO U1.0.0.619
Datas-limite: 1825
Título do fundo: Gabinete de d. João VI
Código do fundo: U1
Data: 16 de agosto de 1825
Local: Rio de Janeiro
Folha (s): 5-6

Leia esse documento na íntegra

Tradução/particular 
Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1825
Ao muito honrado George Canning [1]

 Senhor, a multiplicidade de negócios em que tenho estado ocupado não me tem permitido até agora entrar em correspondência com sr. Parish em Buenos Aires [2].  A carta inclusa que me foi comunicada pelo Sir Chamberlain [3] confirma tão completamente tudo quanto se contêm nos meus ofícios ostensivos e particulares, acerca da importância vital das questões que existem ou hão mui brevemente suscitar-se entre os governos da América do Sul e a corte do Brasil, que julgo do meu dever aproveitar a primeira ocasião para a transmitir ao vosso conhecimento.
Tenho representado a iminência do perigo tanto ao Príncipe [4] quanto aos seus ministros, e tenho a satisfação de dizer que se mandaram ordens conciliatórias ao almirante brasileiro no rio da Prata [5], que evitaram uma ruptura nos pontos que ele estava encarregado de tratar com as autoridades de Buenos Aires; que a invasão de territórios no Alto Peru [6] foi desaprovada, e se mandaram ordens, como já enunciei, para ser evacuado. Mas as causas de irritação entre o Império do Brasil e as Repúblicas da América do Sul [7] são demasiado profundas para que possam ser removidas por medidas temporárias, e se o governo de Sua Majestade deseja conservar a monarquia no Brasil, por muito desagradável que seja a empresa, é preciso que intervenha diretamente para esse efeito, se bem que eu não posso ocultar as minhas dúvidas, se será possível combater com sucesso a opinião pública em semelhantes questões.
Qualquer que seja a determinação do governo de Sua Majestade podes estar certo que toda a presente negociação é de uma importância mui secundária comparada com essa essencialíssima questão.
Tenho a honra de ser [...]
(Assinado) Charles Stuart  [8]

 [1] CANNING, MR. (1770-1827): George Canning foi político britânico de grande influência em seu país no início do século XIX. Nasceu e faleceu em Londres, pouco depois de tornar-se primeiro-ministro inglês. Estudou em Eton e Oxford, foi subsecretário do exterior em 1796 e ministro do exterior onze anos depois. Também foi embaixador em Lisboa em 1814 e 1815, e novamente nomeado ministro do exterior em 1822, quando também foi líder da Câmara dos comuns. Contrariando a Santa Aliança apoiou o reconhecimento da independência dos países latino-americanos, inclusive do Brasil. Foi Canning que orientou as discussões em torno do reconhecimento da independência do Brasil entre Londres, Lisboa e o Rio de Janeiro. Conservador, foi considerado hábil diplomata pelo sucesso das negociações em que esteve à frente. Já como primeiro-ministro conseguiu a emancipação política dos católicos, além do reconhecimento da independência da Grécia.

[2] BUENOS AIRES: fundada em 1536 pelo colonizador Pedro de Mendoza, foi chamada inicialmente de Santa María del Buen Ayre. A região foi intensamente disputada por brancos e índios e, como consequência desses conflitos, a primeira vila acabou destruída. Apenas em 1580, a Espanha conseguiu enviar novas tropas que, sob o comando de d. Juan de Garay, reconstruíram a Ciudad de la Santísima Trinidad y Puerto de Santa María del Buen Ayre, com 76 colonos e 200 famílias guaranis. Desde sua criação, a cidade sofreu tentativas de invasão de corsários, piratas e aventureiros ingleses, franceses e dinamarqueses. A escassez de metais preciosos na região propiciou o desenvolvimento da pecuária bovina. O porto de Buenos Aires tornou-se um dos mais importantes do estuário do rio da Prata, favorecendo sua elevação à capital do vice-reino do Rio do Prata em 1776. A cidade viveu um exponencial progresso entre 1780 e 1800, recebendo além de uma forte imigração, fundamentalmente de espanhóis, e em menor medida de franceses e italianos; e se povoou fundamentalmente de comerciantes e alguns donos de terras estanqueiros. Em 1816, no Congresso de Tucumán, foi declarada a independência do vice-reinado em relação à Espanha, elaborada a constituição, três anos depois, e declarada a província de Buenos Aires como capital. Deu-se início a uma série de reformas em que se destacam a criação do Arquivo Geral de Buenos Aires, da Bolsa Mercantil, da Universidade de Buenos Aires e da Sociedade de Ciências Físicas e Matemáticas.

[3] CHAMBERLAIN, MR. (1773-1829): Henry Chamberlain ocupou a função de cônsul da Inglaterra na corte do Rio de Janeiro entre os anos de 1815 e 1829. Atuou pelo reconhecimento da independência do Brasil ao lado de José Bonifácio e do ministro inglês dos Negócios do Exterior George Canning. Foi pai do pintor e desenhista de mesmo nome, Henry Chamberlain, que publicou a obra Views & Costumes of Rio de Janeiro, com 36 gravuras de bairros e paisagens da capital fluminense.

[4] D. JOÃO VI (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de Manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[5] PRATA, RIO DA: descoberto pelo navegador espanhol João Dias de Solis em 1515, na busca por uma comunicação entre o oceano Atlântico e o Pacífico. O rio, como também seu estuário – na região da tríplice fronteira entre os atuais países Brasil, Uruguai e Argentina – recebeu o nome de Prata por inspiração de Sebastião Caboto, navegador italiano a serviço da Coroa espanhola, impressionado pela abundância deste metal na localidade. A região do rio da Prata foi alvo, durante o período de dominação colonial ibérica nas Américas, de intensas disputas entre as duas metrópoles (Portugal e Espanha), em função de sua importância econômica – jazidas de prata – e estratégica – principal via de acesso ao interior da América. Uma das consequências dessas intensas disputas pela região foi a quase ausência de uma ocupação política efetiva, já que se alternavam invasões de um lado ou de outro do rio – nas províncias de São Pedro do Rio Grande e na Colônia do Sacramento – que mais se assemelhavam a incursões de pilhagem do que tentativas de estabelecimento de domínio de autoridade. A fundação de Sacramento por Portugal em 1680 representou uma iniciativa para apoiar a ampliação dos limites do império até o rio da Prata. No entanto, a região foi palco de inúmeros processos de ocupação e, até sua independência política em 1825, fez parte de diferentes nações ou confederação de estados. O Tratado de Madrid não conseguiu solucionar as questões em torno da região e os portugueses continuaram a insistir na ideia de uma “fronteira natural,” que os levaria até o lado esquerdo do estuário. Interesses da coroa britânica na região agiam como fator complicador nos litígios entre Portugal e Espanha, interesses estes registrados e documentados desde o século XVIII em função de atividades mercantis daquela que era, à época, a nação que mais produzia e comercializava produtos manufaturados. A participação da Inglaterra na concepção do projeto de transmigração da corte portuguesa para o Brasil integrava as tentativas de estender a influência inglesa a outras regiões da América do Sul, embora tal atuação não significasse o apoio à ideia de formação de um bloco coeso na região, supostamente sob influência de Portugal. A Inglaterra fez dura oposição ao projeto de anexação da região cisplatina ao Reino do Brasil, projeto levado a cabo por d. João VI em 1821, e apoiou o movimento de independência do atual Uruguai, interessada na liberação e fragmentação completa das colônias espanholas.

[6] INVASÃO DOS TERRITÓRIOS DO ALTO PERU:  A região do Alto Peru refere-se ao território conhecido atualmente como Bolívia. Foi um dos últimos redutos monarquistas durante o processo de independência da América espanhola. Após a batalha de Ayacucho em 1824, cuja vitória do exército Libertador, liderado por Bolívar e Antonio José de Sucre, selou a independência do Peru, as ex-colônias hispânicas na América já se encontravam livres do jugo espanhol. No entanto, a região de Chiquitos, no Alto Peru permanecia sob governo de um absolutista, o coronel d. Sebastião Ramos, que diante do quadro político que se delineava, solicitou proteção ao império brasileiro por intermédio da província vizinha de Mato Grosso. Segundo a historiadora Maria do Socorro Castro Soares (Repercussões e especulações: o Império brasileiro sob a ótica da anexação da província de Chiquito. VI Encontro Estadual de História da ANPUH/SE. Sergipe, 2018), o projeto de Sebastião Ramos era se manter no poder com o apoio do governo brasileiro até a retomada da América espanhola por Fernando VII e, em troca, o Império brasileiro seria beneficiário de rendimentos provenientes de território chiquitano. Para a autora, a anexação da província foi fruto de um interesse local e individual do Governo Provisório da província de Mato Grosso, que buscava obter a simpatia do imperador e não há indícios do envolvimento do governo brasileiro no episódio. No entanto, a invasão de Chiquitos provocou tensões entre o Brasil e as novas repúblicas vizinhas, bem como o desgaste da imagem do império brasileiro reputado como expansionista, inimigo das nascentes nações. A resposta do governo imperial à ocupação de Chiquitos pelas tropas de Mato Grosso veio pela portaria de 6 de agosto de 1825, quatro meses após o incidente, que tornava sem efeito a anexação do território boliviano.

[7]IRRITAÇÃO ENTRE O IMPÉRIO DO BRASIL E AS REPÚBLICAS DA AMÉRICA DO SUL: As primeiras duas décadas do século XIX foram um período de grande instabilidade política na América luso-hispânica, marcado por diferentes movimentos de independência das antigas colônias. Durante o processo de formação das repúblicas sul-americanas e do Império do Brasil ocorreram tensões entre as recentes nações, sobretudo com relação a definição de fronteiras, problema com raízes no período colonial. No período colonial, Espanha e Portugal protagonizaram numerosos conflitos e assinatura de tratados de limites com vistas a reconhecer sua soberania sobre vastas porções de terras no Novo Mundo. As fronteiras fixadas nesse período serviram de base para a formação das fronteiras entre os Estados nacionais surgidos após a Independência e o conflito em torno delas também. Houve conflitos, por exemplo, entre o Brasil e a Argentina pela posse da província Cisplatina, também dependente da interferência inglesa para um desfecho, alcançado em 1828. Durante o conflito, Buenos Aires procurou construir uma imagem do Brasil como herdeiro da aspiração hegemônica e intervencionista portuguesa no Prata, enfatizando um expansionismo imperial contrário ao surgimento das novas repúblicas americanas. O sentido histórico do episódio, representado pela derrota militar na Batalha de Ituzaingó (ou Batalha do Passo do Rosário) “revelava a incapacidade de um imperador expandir espacialmente os seus domínios” (Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Fórum. Almanack braziliense n°01, maio 2005. Disponível em https://www.revistas.usp.br/alb/article/view/11601/13370 )

[8] STUART, CHARLES (1779-1845): Diplomata inglês, Sir Charles Stuart foi embaixador em Lisboa nomeado por George Canning. Teve papel central nas negociações com o reino de Portugal para o reconhecimento da independência do Brasil. Em 1824, Stuart viaja para o Rio de Janeiro, após uma rápida passagem por Lisboa onde deveria acordar com o governo local as bases do acordo entre a Coroa lusitana e o Brasil. Chegou à América portando credenciais de negociador plenipotenciário por parte de Portugal para intermediar a elaboração do tratado de Independência. As negociações não foram fáceis, o diplomata tinha como encargo conciliar os interesses do Reino Unido, fortalecendo o controle mercantil daquele no território brasileiro, sem ferir a aliança do governo de Londres com Portugal. Um dos principais interesses britânicos era a renovação dos tratados de 1810, que previa taxas favoráveis à entrada de mercadorias inglesas no Brasil. O Tratado de reconhecimento da Independência foi assinado em 29 de agosto de 1825, pelo qual d. João reconhecia d. Pedro como imperador de um Brasil independente. Em troca, o Brasil concordava em pagar uma indenização milionária a Portugal, cerca de dois milhões de libras esterlinas. Apesar da assinatura do tratado mediado por Stuart, no que concerne aos interesses britânicos no Brasil, o diplomata ultrapassou as instruções dadas por Canning, que se limitavam a prorrogar os tratados de 1810 até o reconhecimento da Independência para que os dois países, Grã-Bretanha e Brasil, pudessem com vagar firmar novos contratos. No entanto, Stuart assinaria dois tratados permanentes com o imperador d. Pedro I, um referente ao comércio e outro tratando da abolição da escravatura no Brasil, atos que não foram aprovados pelo governo britânico e geraram graves desentendimentos entre Charles Stuart e Canning. Desautorizado, o diplomata foi retirado do Brasil e mandado de volta à Europa em 1826

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