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Grão Pará e Maranhão

Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 13h02 | Última atualização em Segunda, 06 de Agosto de 2018, 18h45
O "paraíso na terra" ou o Estado do Grão-Pará na segunda metade do século XVIII

 Fabiano Vilaça dos Santos
Doutor em História Social - USP
Professor da Universidade Candido Mendes 

No ano de 1756, veio a público pela Tipografia de Domingos Rodrigues, em Lisboa, um pequeno impresso intitulado Relaçam curioza do sítio do Grão-Pará, terras de Mato Grosso, bondade do clima e fertilidade daquelas terras, escrito por um "curioso experiente daquele país". Em suas oito páginas, propunha-se a esclarecer "a plebe" das inúmeras vantagens das vastas terras de "clima mais ardente pela vizinhança do sol", abundantes de árvores frutíferas, madeiras, animais e um sem-número de riquezas capazes de fazer o Oriente perder "o brasão de ser ele o que ministra à Europa o brilhante das pedras, o odorífero dos aromas que aqui, com menos trabalho, e sem atravessar aquele tormentoso Cabo", poderiam ser obtidos. Por esses e outros motivos, o Grão-Pará era apresentado como "um Paraíso na terra" [1].

Interessado, possivelmente, na obtenção de algum favor ou mercê - dada a expectativa da aceitação de suas impressões -, o autor do escrito transmitia uma visão idealizada do território que, àquela altura, fazia parte da jurisdição do Estado do Grão-Pará e Maranhão, criado em 1751. O autor da Relaçam curioza distanciou-se completamente dos principais problemas enfrentados pelos agentes da colonização, no desempenho da árdua tarefa de "recolonizar" o antigo Estado do Maranhão, transformado em Estado do Grão-Pará e Maranhão.

A inversão de posições das principais capitanias (o Pará passou a ser a "cabeça" do Estado) foi acompanhada da transferência de sede da nova unidade administrativa, dependente de Lisboa, da cidade de São Luís para a de Belém, e da posse de Francisco Xavier de Mendonça Furtado como governador e capitão-general. Iniciava-se, assim, uma fase de retomada da colonização amazônica que, ainda na década de 1750, evidenciaria alguns aspectos cruciais: a busca de afirmação da soberania portuguesa sobre a fronteira com os domínios da Espanha, França, Inglaterra e Holanda e o reforço da política econômica mercantilista.

Os planos metropolitanos consubstanciaram-se nas tentativas de demarcação dos limites entre os territórios portugueses e espanhóis, previstos no Tratado de Madri (13 de janeiro de 1750); nas leis de liberdade dos índios, de 6 e 7 de junho de 1755 (base do Diretório dos Índios, de 1757); e na fundação, no mesmo ano, da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. [2] Esses projetos e seus desdobramentos foram mais tarde referidos por Francisco Xavier de Mendonça Furtado como os meios empregados em sua administração "para ressuscitar aquele muito mais cadáver do que Estado". Em seus pedidos de remuneração de serviços, relacionou a dinamização do comércio em bases mercantilistas, por meio da criação da Companhia de Comércio; o povoamento da vasta região, com a criação de vilas no lugar das antigas missões religiosas; as leis de liberdade dos índios (1755); e a expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses (1759) como os feitos mais relevantes de seu governo. [3]

Considerando que, ao assumir o cargo em 1751, Mendonça Furtado deparou com um "cadáver" que procurou ressuscitar aplicando as diretrizes previstas em suas instruções e dando início, ao longo da década, à realização dos planos acima mencionados, é possível estabelecer que a visão do administrador colonial é diametralmente oposta à do autor da Relaçam curioza. Mas, se a metáfora do paraíso na terra e da vitória da vida sobre a morte determina um afastamento entre o discurso do "curioso" e o do colonizador, por outro lado, ambos estão amparados na ideia de que a valorização da região amazônica assentava no discurso de potencialidades. Esse é o sentido da nova fase da administração do Estado, inaugurada em 1751, assim como o das ações empreendidas para ressuscitar o "cadáver".

A visão do "curioso" das terras do Grão-Pará, no entanto, continuava afastada do que se passava naquele "país". Tomando-se o ano de 1754, quando a primeira expedição de demarcação do Tratado de Madri partiu de Belém, sob o comando de Mendonça Furtado, para encontrar os comissários espanhóis no arraial de Mariuá, e o ano de 1759, o da expulsão dos jesuítas do império português, como parâmetros de análise, não faltarão elementos para contrapor a visão do paraíso à realidade da colonização.

Para organizar a expedição demarcatória, Mendonça Furtado enfrentou inúmeros obstáculos, desde a falta de alimentos e canoas até a resistência dos religiosos no que diz respeito à cessão de índios para tripular as embarcações e secundar as tarefas cotidianas. Finalmente, conseguiu partir para Mariuá, em 2 de outubro de 1754. No ano seguinte, durante a quaresma, o bispo do Pará, d. Frei Miguel de Bulhões e Sousa, que governava interinamente o Estado, tomou conhecimento de uma conspiração urdida no Engenho do Itapecuru, às margens do Rio Acará, quando, a pretexto dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola, senhores de engenho, supostamente insuflados pelos jesuítas, intentaram uma "troca de soberania", prometendo facilitar a conquista do Grão-Pará pelos franceses, caso Luís XV mantivesse a escravidão indígena [4]. Embora as leis de liberdade ainda não estivessem publicadas, a intenção de extinguir o cativeiro dos nativos já era clara.

A reação negativa dos colonos ao que o próprio bispo do Pará classificou como o "remédio" para os males do Estado, tão aferrados que estavam à exploração do braço indígena, resvalou na proposta de criação de uma companhia monopolista de comércio que, entre outras atribuições, seria responsável pelo abastecimento das capitanias do Estado do Grão-Pará de escravos africanos. A discussão sobre as bases da companhia, envolvendo a questão dos comissários volantes e o controle fiscal da metrópole, além de outros aspectos (como os alegados direitos de exploração da mão de obra indígena por parte dos colonos), ultrapassa o objetivo desses breves apontamentos.

Finalmente, a publicação do Diretório dos Índios, em 1757, e a sua extensão para as demais partes da América portuguesa, no ano seguinte, deram sequência ao projeto colonizador de "civilizar" os nativos, alçando-os à condição de súditos de Sua Majestade. A este plano estava associada a fundação de vilas nos lugares das antigas aldeias missionárias, uma medida revestida, também, de caráter estratégico, visando ao povoamento e à defesa das fronteiras.[5]. A criação de vilas e de aldeias estava relacionada ainda ao conteúdo da lei de 7 de junho de 1755, consubstanciada no Diretório, que subtraiu aos religiosos o poder temporal sobre os índios mantendo-os, no entanto, sob a tutela espiritual dos padres. De certo modo, novos núcleos urbanos submetidos à administração secular surgiram antes do Diretório, como a vila de Borba, fundada em 1756.

Segundo a nova legislação indigenista, o poder temporal sobre os nativos livres da escravidão passaria a ser exercido por diretores seculares, nomeados pelos governadores das capitanias. Instruções complementares secundaram os dispositivos da legislação de 1757, estabelecendo a forma de cobrança dos dízimos, regulando o envio de canoas para a extração das drogas do sertão e estabelecendo os contornos da ação do tesoureiro e do procurador dos índios.[6] Ao menos uma dessas disposições pode ser exemplificada pelo ofício do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive, de 14 de janeiro de 1770. Juntamente com o ofício, Ataíde Teive remetia "as contas do tesoureiro geral dos índios, que se lhe tomaram pertencendo ao ano de 1768, e o mapa dos rendimentos das vilas, e lugares dos mesmos índios das capitanias do Pará e Rio Negro, para serem presentes à Sua Majestade".[7]

A década de 1750 encerrou-se com a nomeação de Manuel Bernardo de Melo e Castro para governador e capitão-general do Estado. Foi considerado "o verdadeiro sucessor" de Mendonça Furtado não só por ter assumido seu lugar, mas por ter dado prosseguimento à execução das bases da colonização do norte da América portuguesa, lançadas em 1751. Irmão mais velho de Martinho de Melo e Castro, Manuel Bernardo fez prosseguir a fundação de vilas e de aldeias, a repartição dos bens dos jesuítas, expulsos dos domínios lusitanos por decreto de 3 de setembro de 1759, e as obras da fortaleza e da vila de São José de Macapá, confinante com a Guiana Francesa. Esse estabelecimento não só ocupou boa parte das preocupações da administração do Estado do Grão-Pará desde o governo de Mendonça Furtado, como demandou grandes esforços para o seu povoamento, com índios e brancos vindos das ilhas atlânticas, o seu abastecimento e para viabilizar a experimentação de novas culturas.[8]

A vila de São José de Macapá atendia a razões geopolíticas, e não foi um empreendimento isolado. No governo de Fernando da Costa de Ataíde Teive foram planejados outros dois importantes núcleos urbanos complementares àquela fundação: Vila Viçosa da Madre de Deus e Nova Mazagão, estabelecidas graças ao povoamento de casais brancos, degredados e, no último caso, por colonos retirados da praça de mesmo nome, no norte da África, abandonada às pressas pelos portugueses em 1769. Levados inicialmente para Lisboa, partiram pouco tempo depois para o Grão-Pará. Aos mazaganistas foram fornecidos meios para o seu estabelecimento, assim como a Coroa procedeu com os povoadores de Vila Viçosa da Madre de Deus: ferramentas, sementes, animais, além de escravos.[9] Como informou Fernando da Costa de Ataíde Teive ao secretário de Estado dos Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, em ofício de 29 de março de 1770, acerca da divisão de 194 negros trazidos de Bissau por uma corveta da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão entre as famílias de Mazagão.[10]

A vila, no entanto, foi um projeto malogrado. Em razão das condições desfavoráveis do clima e do terreno, de que os colonos tanto se queixaram, a rainha deu-lhes permissão para evacuar a povoação em 1783. Era o tempo do governo de José de Nápoles Telo de Meneses (1780-1783), quando as conquistas do Norte viviam os efeitos de mudanças em sua estrutura administrativa (a criação, em 1772/74, dos Estados do Grão-Pará e Rio Negro e do Estado do Maranhão e Piauí) e outras ocorridas a partir do final da década: a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso (1777) e a extinção da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1778), um assunto que convida a uma revisão historiográfica, sobretudo, a partir de uma análise dos diferentes pontos de vista sobre a viabilidade ou não do empreendimento, defendidos nos momentos finais da companhia de comércio. Nessa época, nos sertões amazônicos, correram quase em paralelo a "interminável" demarcação das fronteiras entre territórios portugueses e espanhóis, previstas em Santo Ildefonso, e a expedição do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.

Na documentação sob a guarda do Arquivo Nacional, além de outros acervos, poderiam ser colhidos diversos exemplos capazes de ilustrar não só os trabalhos de fixação de limites, mas também as realizações da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira e os efeitos da extinção da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Este é um dos assuntos tratados no ofício de José de Nápoles Telo de Meneses a Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, de 23 de abril de 1781. Queixava-se o governador e capitão-general do "abandono" - artifício retórico frequentemente empregado pelos administradores coloniais para reforçar seus pleitos - em que se achava o Estado do Grão-Pará e Rio Negro diante da falta de correspondência com a Corte e do desamparo dos negociantes com o fim da companhia de comércio.[11]

As duas últimas décadas do século XVIII significaram, portanto, um momento de transformações importantes na colonização amazônica em diferentes aspectos: na economia, no conhecimento e no aproveitamento racional das potencialidades da região sob uma perspectiva ilustrada, ou ainda, na revisão do projeto civilizador que envolvia diretamente os nativos. Na última década do Setecentos, por exemplo, o governador e capitão-general Francisco Maurício de Sousa Coutinho, considerou o Diretório o maior responsável pela situação de escravidão em que, na prática, viviam os índios das conquistas do Norte e pela decadência das vilas e aldeias, o que levou à suspensão daquele corpo legislativo por decreto de 12 de maio de 1798.[12] A chegada de Francisco Maurício em 1790 trouxe, de fato, proposições significativas para o Estado do Grão-Pará, inclusive, quanto à sua estrutura política e administrativa. Esse é um dos aspectos que vêm sendo estudados e discutidos na tese de doutoramento desenvolvida por Nívia da Conceição Pombo, na Universidade Federal Fluminense.[13

[1]     Biblioteca Nacional de Portugal. Relaçam curioza do sítio do Grão-Pará, terras de Mato Grosso, bondade do clima e fertilidade daquelas terras. Escrita por hum curiozo experiente daquele Paiz. Lisboa: Na Officina de Domingos Rodrigues, 1756. 8 p.
[2]     Para uma apreciação desse projeto de "civilização" dos índios, ver, por exemplo, DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
[3]     Cf. SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do Norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751-1780). São Paulo: Annablume, 2011. p. 49ss.
[4]     Cf. SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Entre o Reformador e o Bem-Amado. Acervo: revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, vol. 23, n. 1, p. 31-44, jan./jun. 2010.
[5]    Sobre a fundação de vilas nas capitanias do Norte, no período pombalino, ver ARAÚJO, Renata Malcher de. As cidades da Amazônia no século XVIII: Belém, Macapá e Mazagão. Porto: Faup, 1998.
[6]     DOMINGUES, Ângela, op. cit., p. 153-154.
[7]     Arquivo Nacional (doravante AN). Fundo Negócios de Portugal. Códice 99, vol. 02, fls. 152-153.
[8]     SANTOS, Fabiano Vilaça dos. O governo..., p. 103-107.
[9]     Idem.
[10]    AN. Fundo Negócios de Portugal. Códice 99, vol. 02, fl. 168.
[11]    AN. Fundo Negócios de Portugal. Códice 99, vol. 03, fls. 40-40v.
[12]    DOMINGUES, Ângela, op. cit., p. 332-335.
[13]    A pesquisa de Nívia da Conceição Pombo, desenvolvida no âmbito do PPGH em História Social da UFF, sob a orientação do Prof. Dr. Luciano Figueiredo, tem como objeto as trajetórias de governadores coloniais de diferentes capitanias da América portuguesa, nomeados no tempo em que D. Rodrigo de Sousa Coutinho ocupava a secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.

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