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Sala de aula

Escrito por Mirian Lopes Cardia | Publicado: Quinta, 07 de Junho de 2018, 15h51 | Última atualização em Segunda, 11 de Junho de 2018, 13h24

Ataque de milícias contra os índios charruas e minuanos

Carta de Francisco João Roscio a Paulo José da Silva Gama, noticiando que um corpo de tropas comandado pelo tenente coronel Quintana está acampado na costa do Arroyo de S. José, entre a Colônia de Sacramento e Montevidéu, aguardando mais tropas, até que se completem mil praças. Os militares teriam como fim extinguir os índios "selvagens charruas e minuanos" que segundo a correspondência "incomodavam" as estâncias dos espanhóis. Outros acreditavam que seu objetivo seria o de reconquistar os Sete Povos das Missões orientais ao Uruguai 

Conjunto documental: Vice-reinado. Correspondência com o Governador e mais pessoas do Rio Grande do Sul sobre demarcação de limites etc.
Notação: Códice 104, vol. 13
Data-limite: 1802-1802
Título do fundo: Secretaria de Estado do Brasil
Código de fundo: 86
Argumento de pesquisa: Colônia de Sacramento
Data do documento: 11 de dezembro de 1802
Local: Porto Alegre
Folha: 155

Ilustríssimo e Excelentíssimo Paulo José da Silva Gama[1] = Em conformidade das notícias, que acabam de participar-me os comandantes das fronteiras do rio grande, e rio pardo, se averiguou o mês passado por vias clandestinas estar acampado na costa do Arroyo de São José entre a colônia de Sacramento[2] e Montevidéu, um corpo de tropas composto de belendengues[3],  e milicianos de mais de oitocentos homens armados e comandados pelo tenente coronel Quintana, graduado coronel: dizia-se que esperavam mais tropas para completar mil praças, e que se destinavam a extinguir os índios selvagens charruas e minuanos[4],  que incomodam as estâncias[5] dos espanhóis: outros asseveram que o seu objeto se dirige a reconquistar os Sete Povos das Missões Orientais[6] ao Uruguai. Também se dava por certo que deviam marchar no princípio do presente mês: o que participo a Vossa Excelência na forma da minha obrigação, assim como haver recomendado a todos os comandantes fronteiriços a maior vigilância e eficaz prevenção a este respeito.

A fronteira[7] atual franca, e aberta tem mais de cem léguas de extensão; o número de tropas é sumamente diminuto a tal distância: as armas e munições de guerra extintas em grande parte: as milícias[8] em pouco maior número da tropa de linha; e presentemente recolhendo os seus trigos, que se perderiam de outra forma: para as indispensáveis despesas falta dinheiro. Eu não posso adivinhar em uma extensão tão considerável, aonde se encaminha tal expedição: e quando o souber talvez não poderei transportar-lhe com a celeridade conveniente que não admitem as proximidades de setenta anos de idade cansada, mal conservados com excessivos incômodos e penalidades no serviço não interrompido de mais de quarenta anos de oficial militar, em distintas situações, com falta de muito, e proporções sem esperanças de melhoras: motivos estes,e muitos outros porque desejo muito, e muito ver aqui a Vossa Excelência com a maior brevidade, feliz viagem, e perfeita disposição, a qual rogo eficazmente a deus guarde por muitos anos como desejo.

Porto Alegre 11 de dezembro de 1802 = de Vossa Excelência = muito atento e seguro servidor = Francisco Roscio

Está conforme Francisco Roscio

 

[1]GAMA, PAULO JOSÉ DA SILVA (1779-1826): oficial militar, cavaleiro e fidalgo da Casa de S. M. Fidelíssima, almirante da Real Armada e Cavaleiro da Ordem de Cristo. Governador da capitania de São Pedro do Rio Grande, entre os anos de 1803 e 1809, foi incumbido de implementar a seção regional da Junta da Real Fazenda, como seu presidente, em substituição à antiga provedoria, no interesse de sanear as finanças da capitania. O período de Paulo José da Silva Gama é marcado por uma administração forte, sobretudo no que se refere ao trato dos conflitos com os espanhóis, e pelo aumento e equilíbrio das receitas da capitania. Foi também em seu governo que a capitania do Rio Grande de São Pedro foi desanexada da capitania do Rio de Janeiro. Durante os sete anos de governo no Rio Grande é condecorado publicamente como capitão-general da capitania e recebe o título de barão de Bagé. Além de suas atuações no Sul, Gama foi nomeado governador do Maranhão de 1811 a 1819 e nomeado ministro do Superior Tribunal Militar, em 13 de janeiro de 1818.

[2]COLÔNIA DO SACRAMENTO: a fundação da colônia portuguesa de Santíssimo Sacramento, em 1680, na região próxima de Buenos Aires, do outro lado do rio da Prata, desencadeou uma série de conflitos entre Espanha e Portugal, sendo assim objeto de vários tratados e acordos de limites territoriais dessas monarquias entre 1681 e 1777. Sacramento foi sitiada pelos espanhóis em quatro ocasiões: 1704 a 1705, 1735 a 1737, em 1761 e 1772 a 1777. A fronteira meridional da América portuguesa esteve em aberto até o século XIX, o que revela uma trajetória luso-espanhola de disputas por expansão territorial, envolvendo também os grupos sociais ali presentes. As relações interétnicas na região do rio da Prata também sinalizam confrontos e alianças das forças colonizadoras com populações indígenas. As experiências de evangelização e assimilação da cultura cristã por meio dos aldeamentos missionários [ver missões] expressam outro elemento dos enfrentamentos. Ainda no contexto do extenso conflito de restauração e tratado de paz entre Portugal e Espanha, d. Pedro, príncipe regente português, determinou, em 1680, que Manuel Lobo estabelecesse a colônia de Santíssimo Sacramento na região americana do rio da Prata. Diante da Igreja, a diplomacia portuguesa articulou a criação da diocese do Rio de Janeiro, em 1676, com jurisdição até o Prata. No primeiro momento, o empreendimento conduzido por Manuel Lobo, durou apenas meses, tomado por ataques espanhóis coordenados pelo governador de Buenos Aires. Entre 1683 e 1705, sob tutela do governo do Rio de Janeiro, a Colônia do Sacramento recebeu homens e mulheres, incentivados pela Coroa portuguesa a promoverem a sua povoação. Contudo, o referido período se encerra com a tomada do posto avançado de domínio lusitano nessa extremidade, derrotado por um exército hispano-guarani. Na primeira metade do século XVIII, as campanhas portuguesas de recrutamento para a defesa de Sacramento foram recorrentes e, às vezes, compulsórias. O tratado de paz luso-espanhol de Utrecht, em 1715, devolveu a Colônia de Sacramento aos portugueses. Em 1722, António Pedro Vasconcelos assumiu o cargo de governador da Colônia do Sacramento, função que exerceu até 1749, e, a despeito das denúncias e das investigações envolvendo o seu governo, esse foi um período de expansão e desenvolvimento de Sacramento. No comando de Vasconcelos, aconteceram intensas relações comerciais entre agentes sociais luso-espanhóis naquela região, o que também revela uma dinâmica local de autoridade e poder para além das posições antagônicas de Portugal e Espanha. O Tratado de Madri, em 1750, estabeleceu a troca da Colônia do Sacramento, domínio português, por Sete Povos, possessão espanhola. No acordo foi prevista a transferência dos índios Guarani de Sete Povos para outro território espanhol, incluindo a cooperação entre forças colonizadoras contra a resistência dos indígenas. Em 1777, no tratado de Santo Ildefonso, Portugal cede Sacramento e Sete Povos aos espanhóis.

[3]BLANDENGUES: o Corpo de Blandengues da Fronteira de Montevidéu foi criado por decreto de 7 de dezembro de 1796 pelo vice-rei do Rio da Prata Pedro Melo de Portugal y Villena, para proteger o território da Banda Oriental do Uruguai e sua fronteira. Coube aos "blandengues" combater o roubo de gado e o contrabando, e os negócios ilícitos que surgiam com o avanço do colonizador português. Foram responsáveis pelas campanhas de extermínio dos índios charruas e minuanos, que em fins do século XVIII se tornaram empecilho para o estabelecimento das estâncias de gado vacum e dos centros de povoamento dos espanhóis. Em 1901 o Corpo de Blandengues passou a se chamar Regimiento Blandengues de Artigas de Caballería n. 1 em homenagem a José Gervásio Artigas (1764-1850), que ingressou nesse regimento militar espanhol em 1797. Hoje o Regimento de Blandengues se encarrega de escoltar o presidente da república, da segurança da residência presidencial e zelar pelos restos mortais de Artigas.

[4] CHARRUAS E MINUANOS: Charruas e minuanos habitaram o território que compreendia a antiga banda oriental do Uruguai, uma pequena parte da Argentina e o sul e sudoeste do atual estado do Rio Grande do Sul. Viviam em acampamentos nessa região de fronteira, então disputada pelas Coroas espanhola e portuguesa, onde, organizados em grupos, viviam da caça e da coleta, o que exigia constantes migrações. Incorporados de forma periférica ao sistema econômico colonial, os indígenas puderam, assim, resistir à escravização e à redução missionária de jesuítas espanhóis. No entanto, ao longo dos séculos XVII e XVIII, os charruas passaram a ter contato direto com a colonização espanhola, enquanto os minuanos se aproximaram dos portugueses, que estavam no Rio Grande de São Pedro e na Colônia do Sacramento. Charruas e minuanos passaram a praticar a preia do gado, que foi introduzido pelos europeus por meio das vacarias (campos de gado selvagem) e a criação extensiva. Já a introdução do gado equino na região está associada à fundação de Santa Fé da Vera Cruz por Juan de Garay (1528-1583). O cavalo foi utilizado como meio de transporte e montaria para caça e como moeda de troca na obtenção dos artigos trazidos pelo colonizador. Os minuanos em especial se tornaram excelentes cavaleiros, caçando éguas e potros bravos na campanha, com instrumentos simples. Os conflitos na região se tornaram mais intensos à medida que os colonizadores avançavam pelas terras indígenas. Impossibilitados de manter o tradicional vínculo tribal e, destituídos de suas terras, os indígenas tinham reduzidas chances de manutenção de seu grupo. Sobreviviam por meio da troca de bens e serviços, mas parte de seus recursos vinha da preia e do roubo do gado vacum e cavalar. Charruas e minuanos combateram nas guerras decorrentes da expansão das fronteiras coloniais e nas de independência. Estabeleceram alianças bastante instáveis, ora ao lado dos espanhóis contra os portugueses, ora aliando-se a estes últimos contra os espanhóis. No início do século XVIII, os minuanos se uniram aos charruas e a interpenetração dos dois grupos passou a ser cada vez maior. Intensificaram-se as pilhagens e os roubos às vacarias missioneiras e de particulares. Em fins do século XVIII, essas atividades se tornam alvos da violenta repressão do Corpo de Blandengues. No século XIX, os charruas e minuanos que sobreviveram às guerras e à repressão somavam mais de mil indivíduos. Seu território foi ocupado pelas estâncias e rinconadas, grandes extensões de terra irrigadas por rios e arroios, excelentes para o pasto, onde os espanhóis reuniram o gado que antes se encontrava nas vacarias. Após a criação da República Oriental do Uruguai (1828), os indígenas passaram a ser alvo de campanhas governamentais que defendiam seu extermínio ou sua assimilação. As violentas batalhas travadas entre o exército uruguaio e os indígenas resultaram na dizimação da população masculina. Os sobreviventes, na maioria mulheres e crianças, foram distribuídos pela população branca, para serem integrados à cultura colonial espanhola.

[5] ESTÂNCIAS: no século XVII, a ocupação dos territórios pelos espanhóis se deu através do estabelecimento de estâncias, a grande propriedade rural de criação de gado vacum. As estâncias dos jesuítas espanhóis se localizavam nas missões, e algumas chegaram a ter vinte mil cabeças de gado, com uma população de aproximadamente setenta pessoas entre índios, peões e a família proprietária. Os registros sobre as pilhagens feitas por charruas e minuanos às estâncias dos jesuítas, e também às de particulares, datam do século XVII, mas se intensificaram nos séculos XVIII e XIX com a crescente importância do gado para a economia colonial, paralelamente ao decréscimo da sua oferta, que ocorreu devido ao estabelecimento das estâncias e rinconadas nos territórios indígenas.

[6] SETE POVOS DAS MISSÕES: território situado no atual estado do Rio Grande do Sul, a leste do rio Uruguai, foi constituído por sete povoações indígenas (São Nicolau, São Luís, São Lorenzo, São Borja, Santo Ângelo, São João Batista e São Miguel) controladas por jesuítas espanhóis. Localizada em região de permanentes disputas entre Portugal e Espanha, com a assinatura do Tratado de Madri (1750) passou ao domínio português. Como consequência desse tratado, ocorreu a chamada Guerra Guaranítica (1754-56). Contando com o apoio dos jesuítas, os guaranis missioneiros começaram a impedir os trabalhos de demarcação da fronteira e anunciaram a decisão de não sair de Sete Povos, justificando-se a resistência ao tratado em nome do direito legítimo dos índios de permanecer nas suas terras. Tropas espanholas e portuguesas foram enviadas ao local, encarregadas de cumprir o Tratado de Madri e a guerra explodiu em 1754. O saldo do violento conflito foi o massacre de milhares de índios pelas tropas ibéricas e a anulação do tratado. O processo de definição de fronteiras entre Portugal e Espanha nessa região levaria, ainda, à assinatura dos tratados de Santo Ildefonso (1777) e Badajós (1801). Sob o aspecto político, o conflito pode ser visto como mais um fator favorável ao crescimento do sentimento anti-jesuítico em Portugal, visto que a resistência inaciana ameaçava os interesses do reino na América, o que culminou com a expulsão dos jesuítas do território brasileiro pelo marquês de Pombal em 1759.

[7] FRONTEIRA: o conceito possui muitos significados, embora seu uso mais frequente diga respeito ao limite entre dois Estados. As fronteiras político territoriais foram criadas com o objetivo de representar, organizar, controlar ou dominar determinado espaço territorial. Com o surgimento do Estado moderno e o desenvolvimento da cartografia a partir do período renascentista, os limites político territoriais entre duas soberanias as fronteiras seriam linearizadas, representadas e projetadas por meio de traçados precisos, tendo, no Tratado de Tordesilhas sua primeira experiência de fronteira linear. Na América portuguesa, a região platina, que hoje compreende os territórios do Brasil, Uruguai e Argentina foi território de intensas disputas fronteiriças entre os impérios português e espanhol, permitindo o contato e a interação entre luso-brasileiros, castelhanos, grupos autóctones (charruas, minuanos, tapes), índios missioneiros e jesuítas. Esse espaço limítrofe aberto à convivência de indivíduos com interesses diversos deu origem a inúmeros conflitos, intensificados a partir da fundação da Colônia do Sacramento em 1680. Durante os séculos XVIII e XIX, as Coroas ibéricas assinaram acordos e tratados na tentativa de definir seus territórios no extremo sul da América. Em 1750 foi referendo o Tratado de Madri, onde o conceito de fronteira definido teve por base os princípios do uti possidetis, “que cada uma das partes fique possuindo o que tem ocupado”, e dos limites naturais. Com a anulação desse tratado em 1761, seria a vez do Tratado de Santo Ildefonso, firmado em 1777. Mas, somente em 1801, o Tratado de Badajóz colocou o ponto final na disputa ibérica pelos territórios da Colônia do Sacramento.

[8] MILITARES: a presença militar na colônia mostrou-se, desde o início, crucial para a administração dos domínios ultramarinos de Portugal, já que estes territórios careciam de estrutura governativa e ordem político-jurídica bem estabelecidas. Sua trajetória data da criação do governo-geral ainda no século XVI, visando efetivar diferentes planos de defesa e de expansão territorial. As forças militares buscavam enquadrar a população em uma ordem que permitiria o “bom funcionamento” da sociedade colonial. A estrutura militar lusitana, que se transferiu para o Brasil, se dividia em três tipos específicos de força: 1a linha – corpos regulares, conhecidos também por tropa paga ou de linha; 2a linha – as milícias ou corpo de auxiliares e a 3a linha – as ordenanças ou corpos irregulares. Os corpos regulares, criados em 1640 em Portugal, constituíam-se no exército “profissional” português, sendo a única força paga pela Fazenda Real, e seus comandantes eram fidalgos nomeados pelo rei. Essa força organizava-se em terços e companhias, cujo comando também pertencia a fidalgos nomeados pelo rei. Teoricamente, dedicar-se-iam exclusivamente às atividades militares, estando em constante treinamento. Todavia, na colônia, foram comumente empregadas em ações policiais de manutenção da ordem pública, ajudando na prisão de foragidos e na captura de escravos fugidos. As tropas de linha enviadas de Portugal, muitas vezes, careciam de efetivos, momento este em que a coroa lançava mão do recrutamento compulsório, terror da população branca colonial. As milícias, criadas em 1641, eram tropas não-remuneradas, compostas por civis e de alistamento obrigatório entre a população da colônia. Organizaram-se primeiramente por terços (antiga unidade portuguesa que vigorou até a segunda metade do século XVIII) e, depois, em regimentos. Funcionavam como forças de apoio às tropas pagas, e em geral, eram treinadas e disciplinadas para substituí-las caso necessário. Na segunda metade do século XVIII, as milícias no Rio de Janeiro estavam organizadas por regimentos alistados por três freguesias: da Candelária, de São José e de Santa Rita. Em Pernambuco, foi criado o “terço dos Henriques” para lutar nas guerras holandesas de 1648 e 1649. Neste “terço” predominou o alistamento de homens pretos forros e escravos recrutados por empréstimo, mas havia também mestiços, mulatos e mamelucos. O negro forro Henrique Dias (início século XVII-1662) comandou essas tropas auxiliares, daí chamarem-se "dos henriques". Nas demais capitanias se formaram "terços" com as mesmas características também denominados "henriques". Sob a denominação de tropas urbanas, as milícias na Bahia eram compostas pelos regimentos dos úteis (comerciantes e caixeiros) e de infantaria (artífices, vendeiros, taberneiros) todos formados por homens brancos. O medo dos proprietários de terras e escravos de que a experiência de Palmares se alastrasse por toda a colônia levou à criação de uma força de repressão nas capitanias, organizada na forma de milícia especializada na caça de escravos fugidos e na destruição de quilombos, em que se destacou a figura do capitão do mato ou "capitão de assalto" ou "capitão de entrada e assalto" entre outras variações que o posto recebeu de região para região. Já os corpos de ordenanças foram criados em 1549 por d. João III, e seu sistema de recrutamento abrangia toda a população masculina entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados e os padres. Somente em caso de as autoridades considerarem haver uma grave perturbação da ordem pública, abandonavam suas atividades costumeiras. Recebiam treinamento de forma esporádica. Buscava-se, escapar ao alistamento de todas as maneiras, devido às péssimas condições da vida do soldado. A população civil temia o recrutamento militar obrigatório que era realizado pelos agentes recrutadores. Os possíveis recrutas, isto é, os homens brancos e não militares considerados aptos a engrossarem os efetivos das tropas de linha eram detidos a qualquer hora e local (dentro de suas casas e nas salas de aula) e conduzidos à cadeia para uma triagem. Diante de tais arbitrariedades, só restava aos homens a fuga para longe do local em que habitavam uma vez que o recrutamento acarretava o afastamento de suas atividades por tempo indeterminado. Os postos militares mais elevados eram, em geral, preenchidos por homens que já haviam provado ao rei sua qualidade, ou seja, serviços relevantes prestados, o que costumava ser mais importante do que experiência ou saber de guerra. Em 1648, ao sul do Recife, ocorre uma batalha que pode ser considerada marco na organização de forças locais: sob o comando de André Vidal Negreiros, Felipe Camarão e Henrique Dias, tropas formadas por brancos locais, indígenas e negros (organizados em destacamentos diferentes) lutaram contra tropas holandesas, formadas igualmente por brancos, negros e índios e lideradas por Domingos Fernandes Calabar e Johan van Dorth. A data da batalha de Guararapes, 19 de abril de 1648, é comemorada como o aniversário do Exército Brasileiro. Com a instalação da corte no Rio de Janeiro, a estrutura militar sofreu nova organização, modernizando-se e ampliando seus estabelecimentos. Foram criadas Academias Militares, indústrias de armas, fábricas de pólvoras, arsenais de guerras e hospitais militares.

O Tratado de Madri

 

Conjunto de 37 artigos redigidos pelo visconde Thomaz da Silva Telles e José de Carvajal e Lancaster que traz as determinações relativas ao Tratado de Madri (1750), assinado entre os reinos de Portugal e Espanha. São esclarecidas questões territoriais, sociais, políticas, econômicas, entre outras. A fim de evitar contendas, comissários de ambos os reinos são mandados para seguir pelo interior de ambas as colônias visando o reconhecimento e a posterior posse dos locais em questão confirmando o "uti possidetis". 

Conjunto documental: Capitanias do Pará, Minas Gerais e Colônia do Sacramento
Notação: caixa 747, pct. 03
Data-limite: 1703 - 1772
Título do fundo: Vice-reinado
Código do fundo: D9
Argumento de pesquisa: Colônia do Sacramento
Data do documento: 17 de janeiro de 1751        
Local: Madri
Folha(s): -

 

Tratado pelo qual se regularam as instruções dos comissários, que devem passar ao sul da América, assinado em Madri a 17 de janeiro deste presente ano; e ratificado por El Rei Nosso Senhor em 8 de maio, e por El Rei Católico em 18 do dito mês do mesmo ano.

Os sereníssimos reis de Portugal, e Espanha tendo concluído felizmente o tratado de limites[1] dos seus domínios na América assinado em Madri a 13 de janeiro de 1750, e ratificado em forma, e desejando que se estabeleça a fronteira[2] com a maior individualidade, e precisão, de sorte quero tempo adiante não haja lugar nem motivo para a mais leve disputa, concordaram pelo artigo XXIII do dito tratado, que se nomeassem comissários por ambas as partes, para que se ajustem com a maior clareza as paragens por onde há de correr a raya[3], e demarcação, segundo, e conforme se expressa no referido tratado,e artigo, e depois se reconhecendo a demasiada extensão do terreno que se há de reconhecer , e de marcar se conformaram em que vão duas tropas de comissários[4], uns pelo rio maranhão, ou amazonas, e outros pelo rio da prata[5]; aos quais tem outorgado os poderes que se porão no fim desta instrução, nomeando cada um pela sua parte pessoas de confiança, inteligência, e zelo, para que concorrendo com esta outra, estabeleçam os limites na forma ajustada.

Artigo II

Ao mesmo tempo entregarão os portugueses as ordens de sua majestade fidelíssima, ao governador da colônia de Sacramento[6], para que preparem a evacuação desta praça e seus portos, e estabelecimentos do rio da prata, e os espanhóis entregarão ao governador de Buenos Aires ao provincial da companhia de (ilegível) da província do Paraguai, e ao superior da Missões, que nas margens dos rios Uruguai,e Paraná, as ordens que lhe dirigiram por parte de sua majestade católica, para que preparem a evacuação de território, e povos da margem oriental do rio Uruguai com a brevidade possível, procurando uns e outros tomar antecipadas notícias do tempo pouco mais,ou menos em que se poderá estar preparada uma e outra evacuação para ajustar depois o dia, em que se hão de fazer as mútuas entregas.

(...)

Artigo XVIII

Com caso de guerra com os índios[7] mandará as duas escoltas o comandante que esteja de semana português ou espanhol, ficando com o mando absoluto (só para este caso de guerra, ou suspeita bem fundada dela) o comandante de qualquer das duas tropas, a quem tocar a semana por seu turno, e as tropas tomarão que lhes toque pelo seu turno do seu dia, como fica dito,e se deitarão sortes para saber, que comandante, e escolta há principiar o turno desde o primeiro dia da sua união.

(...)

Artigo XXIII

Para que os comissários de cada tropa tenham por onde governar-se, incluirão os comissários principais no sobredito regimento um título de leis penais em que determine o castigo que se há de impor a qualquer que fira, mate, ou agrave a outro por obra ou palavra, conforme a gravidade do excesso. E antes da partida das tropas, se farão publicar as ditas penas; encargo que hão de levar os comissários para que as façam executar severamente.

Porém aos mesmo comandantes se advertirá secretamente que não façam executar pena de morte[8], nem outra de sangue, se não quando virem que não há outro remédio mais que de uma pronta execução para evitar alguma desordem gravíssima, ou perturbação entre as duas nações, tendo presente que em desertos tão distantes não pode haver motivo mais poderoso para incitar os ânimos a algum grave excesso do que ver justiçar os seus companheiros. Pelo que encarregaram muito particularmente aos comissários das tropas, que em todas os casos em que não for indispensavelmente necessário o pronto castigo, remetam os réus, como fica advertido no artigo XXI.

(...)

Artigo XXV

Na sobredita ordenança incluíram os capítulos seguintes. Que os comissários, geógrafos, e mais pessoas inteligentes de cada tropa, vão apontando os rumos e distâncias da derrota, as qualidades naturais do país, os habitantes, e seus costumes, os animais, plantas, frutos, e outras produções; rios, lagoas, montes, e outras circunstâncias dignas de notícias pondo nomes de comum acordo aos que não tiverem para que venham declarados nos mapas com toda a distinção e procurarão que o seu trabalho não seja só exato pelo que toca à demarcação de raia, e geografia do país, mas também proveitoso pelo que respeita ao adiantamento das ciências, e história natural[9], e às observações físicas, e astronômicas[10].

(...)

Artigo XXVIII

Que em toda a fronteira onde ela não for terminada por rios, ou por cumes dos montes, e vertentes das águas, que foram declarados no tratado, deixem postos, marcos, ou sinais que lhes parecerem mais próprios e perduráveis para que em nenhum tempo se possa duvidar da situação da linha da raia, ou seja levantando montes de terra, ou assentando os marcos lavrados que se remetem, onde os julgarem precisos para maior clareza. E quando subirem pelos rios por onde o tratado determina a raia, ao encontrar dois braços que se venham a unir ao mesmo rio, sempre seguirão para cima o que for mais caudaloso. E igualmente aonde a raia for assinalada, conforme o tratado por um rio abaixo, se suceder encontrar-se dividido em dois braços, deverá continuar a fronteira pelo mais caudaloso.

Madrid, 17 de janeiro de 1751

Visconde Thomas da Silva Telles

Joseph José de Carvaja Lancaster

 

[1] TRATADO DE MADRI (1750): acordo de limites firmado entre Portugal e Espanha em 1750, visando reconhecer oficialmente as fronteiras marítimas e terrestres, definindo os limites do poderio de cada coroa sobre as colônias na América. Nesse contexto, merece destaque a figura de Alexandre de Gusmão, secretário do Conselho Ultramarino, brasileiro que intermediou o tratado e conferiu a este o princípio do uti possidetis, isto é, a ideia de que a terra deveria pertencer a quem de fato a ocupasse. Essa iniciativa constituiu uma inovação jurídica no domínio das negociações diplomáticas. Gusmão também foi o responsável pela elaboração do Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na America Meridional, conhecido como mapa das Cortes, que buscou ilustrar o estipulado no texto do projeto de tratado proposto, uma construção cartográfica com objetivos diplomáticos. No mapa apareciam as terras em disputa que já estariam efetivamente ocupadas pelos súditos portugueses na América e foi fundamental para o aceite espanhol de quase todas as cláusulas que vieram de Lisboa. Em suas determinações, o tratado estabelecia que a colônia do Sacramento pertenceria à Espanha e o território dos Sete Povos das Missões a Portugal. Ao Norte, no vale Amazônico, também foram atendidos os interesses portugueses, garantindo a defesa daquele território diante da possibilidade de investidas de estrangeiros na região e consolidando o controle político-administrativo do estado do Grão-Pará e Maranhão; além de garantir a integração dessa região com a capitania de Mato Grosso, mantendo o controle dos rios existentes no vale do Guaporé. Pela primeira vez, desde o Tratado de Tordesilhas (1494), procurava-se definir a totalidade dos limites entre as possessões das coroas ibéricas no novo mundo. Este tratado acabou por fornecer à América portuguesa uma configuração muito próxima à atual delimitação territorial do Brasil. A demarcação de tais fronteiras, demasiado extensas, não foi um processo simples: após a assinatura do tratado, as coroas ibéricas organizaram expedições demarcatórias constituídas por diversos profissionais formados nas áreas de engenharia, cartografia, matemática, desenho, astronomia, entre outros, com o objetivo de reconhecer, cartografar e delimitar as fronteiras do território colonial. No entanto, um clima de desconfiança entre os participantes das comissões de demarcação ameaçava a conclusão dos trabalhos, além das dificuldades em retirar os jesuítas e índios da região dos Sete Povos e outros problemas encontrados na demarcação territorial, explicam a pouca duração desse tratado, anulado, em 1761, pelo Tratado de El Prado. Cabe ressaltar que o Tratado de Madri desempenhou um papel de extrema importância na formação territorial do Brasil pois expôs as reais proporções da ocupação portuguesa na América, resultado da expansão territorial para além do tratado de Tordesilhas durante mais de dois séculos de colonização.

[2] FRONTEIRA: O conceito possui muitos significados, embora seu uso mais frequente diga respeito ao limite entre dois Estados. As fronteiras político territoriais foram criadas com o objetivo de representar, organizar, controlar ou dominar determinado espaço territorial. Com o surgimento do Estado moderno e o desenvolvimento da cartografia a partir do período renascentista, os limites político territoriais entre duas soberanias as fronteiras seriam linearizadas, representadas e projetadas por meio de traçados precisos, tendo, no Tratado de Tordesilhas sua primeira experiência de fronteira linear. Na América portuguesa, a região platina, que hoje compreende os territórios do Brasil, Uruguai e Argentina foi território de intensas disputas fronteiriças entre os impérios português e espanhol, permitindo o contato e a interação entre luso-brasileiros, castelhanos, grupos autóctones (charruas, minuanos, tapes), índios missioneiros e jesuítas. Esse espaço limítrofe aberto à convivência de indivíduos com interesses diversos deu origem a inúmeros conflitos, intensificados a partir da fundação da Colônia do Sacramento em 1680. Durante os séculos XVIII e XIX, as Coroas ibéricas assinaram acordos e tratados na tentativa de definir seus territórios no extremo sul da América. Em 1750 foi referendo o Tratado de Madri, onde o conceito de fronteira definido teve por base os princípios do uti possidetis, “que cada uma das partes fique possuindo o que tem ocupado”, e dos limites naturais. Com a anulação desse tratado em 1761, seria a vez do Tratado de Santo Ildefonso, firmado em 1777. Mas, somente em 1801, o Tratado de Badajóz colocou o ponto final na disputa ibérica pelos territórios da Colônia do Sacramento.

[3] RAIA: linha de demarcação, o limite da circunscrição territorial, isto é, o fato jurídico decidido pelos governantes por meio de acordos e tratados. A fronteira entre Portugal e Espanha, a mais antiga da Europa, também é conhecida como Raia ou Raya, resultante dos tratados de Zamora, em 1143, quando da separação do Condado Portucalense do reino de Leão, e de Alcanizes, entre os soberanos de Portugal e de Leão e Castela, de 1247, que estabelecia as fronteiras entre os reinos.

[4] TROPAS DE COMISSÁRIOS: após a assinatura do Tratado de Madrid em 1750, que buscava pôr fim às questões fronteiriças entre as possessões ibéricas, foram criadas duas tropas de comissários encarregados de assentar tais limites: uma pela bacia do Amazonas e outra pelo rio Prata. Em 17 de janeiro de 1751, foi assinado o Tratado de Instruções para os Comissários do Sul e à 24 de junho de 1752, referendou-se o Tratado das Instruções dos Comissários da Banda do Norte. As comissões demarcadoras do Norte e do Sul dividiram-se em tropas ou partidas de comissários subalternos, para facilitar o trabalho das demarcações nas respectivas regiões. Portugal contratou geógrafos, cartógrafos, astrônomos e matemáticos estrangeiros especialmente italianos, para integrar as comissões demarcadoras, responsáveis pelos trabalhos de campo das demarcações de limites (raias) e pela realização das observações físicas e astronômicas, para a confecção das cartas geográficas. Os trabalhos de campo das demarcações de limites se estenderam até o ano de 1761 quando, então, foi assinado a Convenção de El Pardo, que anulou as decisões do Tratado de Limites de 1750. Os portugueses conservaram a Colônia do Sacramento e renunciaram a posse dos Sete Povos das Missões, que ficariam em poder da Companhia de Jesus ou da Cora espanhola.

[5] PRATA, RIO DA: descoberto pelo navegador espanhol João Dias de Solis em 1515, na busca por uma comunicação entre o oceano Atlântico e o Pacífico. O rio, como também seu estuário – na região da tríplice fronteira entre os atuais países Brasil, Uruguai e Argentina – recebeu o nome de Prata por inspiração de Sebastião Caboto, navegador italiano a serviço da Coroa espanhola, impressionado pela abundância deste metal na localidade. A região do rio da Prata foi alvo, durante o período de dominação colonial ibérica nas Américas, de intensas disputas entre as duas metrópoles (Portugal e Espanha), em função de sua importância econômica – jazidas de prata – e estratégica – principal via de acesso ao interior da América. Uma das consequências dessas intensas disputas pela região foi a quase ausência de uma ocupação política efetiva, já que se alternavam invasões de um lado ou de outro do rio – nas províncias de São Pedro do Rio Grande e na Colônia do Sacramento – que mais se assemelhavam a incursões de pilhagem do que tentativas de estabelecimento de domínio de autoridade. A fundação de Sacramento por Portugal em 1680 representou uma iniciativa para apoiar a ampliação dos limites do império até o rio da Prata. No entanto, a região foi palco de inúmeros processos de ocupação e, até sua independência política em 1825, fez parte de diferentes nações ou confederação de estados. O Tratado de Madrid não conseguiu solucionar as questões em torno da região e os portugueses continuaram a insistir na ideia de uma “fronteira natural,” que os levaria até o lado esquerdo do estuário. Interesses da coroa britânica na região agiam como fator complicador nos litígios entre Portugal e Espanha, interesses estes registrados e documentados desde o século XVIII em função de atividades mercantis daquela que era, à época, a nação que mais produzia e comercializava produtos manufaturados. A participação da Inglaterra na concepção do projeto de transmigração da corte portuguesa para o Brasil integrava as tentativas de estender a influência inglesa a outras regiões da América do Sul, embora tal atuação não significasse o apoio à ideia de formação de um bloco coeso na região, supostamente sob influência de Portugal. A Inglaterra fez dura oposição ao projeto de anexação da região cisplatina ao Reino do Brasil, projeto levado a cabo por d. João VI em 1821, e apoiou o movimento de independência do atual Uruguai, interessada na liberação e fragmentação completa das colônias espanholas.

[6]COLÔNIA DO SACRAMENTO: a fundação da colônia portuguesa de Santíssimo Sacramento, em 1680, na região próxima de Buenos Aires, do outro lado do rio da Prata, desencadeou uma série de conflitos entre Espanha e Portugal, sendo assim objeto de vários tratados e acordos de limites territoriais dessas monarquias entre 1681 e 1777. Sacramento foi sitiada pelos espanhóis em quatro ocasiões: 1704 a 1705, 1735 a 1737, em 1761 e 1772 a 1777. A fronteira meridional da América portuguesa esteve em aberto até o século XIX, o que revela uma trajetória luso-espanhola de disputas por expansão territorial, envolvendo também os grupos sociais ali presentes. As relações interétnicas na região do rio da Prata também sinalizam confrontos e alianças das forças colonizadoras com populações indígenas. As experiências de evangelização e assimilação da cultura cristã por meio dos aldeamentos missionários [ver missões] expressam outro elemento dos enfrentamentos. Ainda no contexto do extenso conflito de restauração e tratado de paz entre Portugal e Espanha, d. Pedro, príncipe regente português, determinou, em 1680, que Manuel Lobo estabelecesse a colônia de Santíssimo Sacramento na região americana do rio da Prata. Diante da Igreja, a diplomacia portuguesa articulou a criação da diocese do Rio de Janeiro, em 1676, com jurisdição até o Prata. No primeiro momento, o empreendimento conduzido por Manuel Lobo, durou apenas meses, tomado por ataques espanhóis coordenados pelo governador de Buenos Aires. Entre 1683 e 1705, sob tutela do governo do Rio de Janeiro, a Colônia do Sacramento recebeu homens e mulheres, incentivados pela Coroa portuguesa a promoverem a sua povoação. Contudo, o referido período se encerra com a tomada do posto avançado de domínio lusitano nessa extremidade, derrotado por um exército hispano-guarani. Na primeira metade do século XVIII, as campanhas portuguesas de recrutamento para a defesa de Sacramento foram recorrentes e, às vezes, compulsórias. O tratado de paz luso-espanhol de Utrecht, em 1715, devolveu a Colônia de Sacramento aos portugueses. Em 1722, António Pedro Vasconcelos assumiu o cargo de governador da Colônia do Sacramento, função que exerceu até 1749, e, a despeito das denúncias e das investigações envolvendo o seu governo, esse foi um período de expansão e desenvolvimento de Sacramento. No comando de Vasconcelos, aconteceram intensas relações comerciais entre agentes sociais luso-espanhóis naquela região, o que também revela uma dinâmica local de autoridade e poder para além das posições antagônicas de Portugal e Espanha. O Tratado de Madri, em 1750, estabeleceu a troca da Colônia do Sacramento, domínio português, por Sete Povos, possessão espanhola. No acordo foi prevista a transferência dos índios Guarani de Sete Povos para outro território espanhol, incluindo a cooperação entre forças colonizadoras contra a resistência dos indígenas. Em 1777, no tratado de Santo Ildefonso, Portugal cede Sacramento e Sete Povos aos espanhóis.

[7] GUERRA COM OS ÍNDIOS: pelo Tratado de Madri, Portugal cedeu a Colônia do Sacramento aos espanhóis, e recebeu em troca os Sete Povos das Missões, situados à margem oriental do rio Uruguai. Os jesuítas e os índios missioneiros deveriam deixar as reduções, transferindo-se para as terras espanholas, levando apenas seus móveis e bagagens. Portugal ficaria com as vilas, as aldeias, as casas e a propriedade do terreno. Contando com o apoio dos jesuítas, os índios resistiram à tropa de comissários encarregada da demarcação de limites no Sul, o que resultou no conflito armado que teve início em 1754. Munidos de canhões e de uma tática militar bastante aperfeiçoada, os missioneiros venceram os portugueses e os espanhóis. Mas, em 1756, os exércitos ibéricos se uniram e venceram os mais de mil e setecentos índios que lutaram sua última batalha, a de Caiboaté, contra a demarcação dos limites na região. A Coroa portuguesa pretendeu transformar as missões em núcleos de povoamento com base na mestiçagem entre luso-brasileiros (especialmente os soldados) e índios, visando ocupar as possessões recentemente adquiridas e aumentar a população dos súditos do rei. Para tanto, os missioneiros deveriam desocupar as reduções migrando para os territórios portugueses. Isto se deu através de uma política de atração dos índios Guarani, com base na legislação indigenista pombalina, que gerou vários fluxos migratórios. As aldeias de São Nicolau (Rio Pardo) e a dos Anjos (Viamão) foram criadas para alocá-los, embora parte da população missioneira tenha permanecido nas reduções. No final do século XVIII, Portugal sofreu perdas consideráveis na contenda que envolveu as Coroas ibéricas na demarcação de limites na América do sul. Em 1761, ocorreu a anulação oficial do Tratado de Madri e os Sete Povos permaneceram sob a administração dos jesuítas espanhóis até 1768 quando então os inacianos foram expulsos do continente. Em 1777, com o Tratado de Santo Ildefonso, Portugal perderia definitivamente a Colônia do Sacramento, mas não recebeu nenhuma compensação territorial, conforme ocorrera em 1750. Quando a Espanha, pressionada pela França, declarou guerra a Portugal ("guerra das laranjas"), em fevereiro de 1801, criou a oportunidade para que os luso-brasileiros renovassem as suas pretensões sobre os Sete Povos. A conquista e a anexação das reduções jesuíticas renderam à Coroa portuguesa um acréscimo territorial responsável pelo desenho do atual estado do Rio Grande do Sul, um aumento populacional e a incorporação do patrimônio missioneiro representado pelas estâncias das reduções onde se criavam vários tipos de gado vacum. A conquista foi um empreendimento organizado por colonos luso-brasileiros, com o apoio do poder régio, dos párocos que passaram a se ocupar dos serviços religiosos nas reduções e parte considerável dos missioneiros, descontentes com a administração secular dos espanhóis após a expulsão dos inacianos.

[8]PENA DE MORTE: o Livro V relativo aos crimes e suas respectivas penas, das Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603, por Filipe I, rei de Portugal, vigorou durante todo o período colonial até 1830 quando então foi aprovado e promulgado o Código Criminal do Império. Conforme esse Livro, o criminoso podia ser condenado a vários tipos de morte: se o criminoso fosse condenado a "morrer por isso" tornava-se infame pelo delito cometido, e perdia os bens e qualquer grau social; se fosse condenado a "morrer por isso morte natural" a morte podia ser infligida por meio de determinados instrumentos tais como o veneno, instrumentos de ferro ou de fogo. Esta última pena era bem mais grave do que a primeira e na prática equivalia a uma pena de degredo ou a uma morte "civil". Havia também a "morte natural na forca ou no pelourinho" seguida do sepultamento. E também a "morte natural na forca para sempre" que ocorria em uma forca montada fora da cidade. Neste caso, o cadáver ficava exposto até o dia primeiro de novembro e o sepultamento era realizado pela Confraria da Misericórdia. A pena de morte podia ser acompanhada ainda de esquartejamento (antes ou depois da morte), de açoites ou tenazes ardentes, admitindo ainda inúmeras combinações, que variavam segundo a condição do próprio criminoso, o tipo de crime e a condição da vítima. O Livro V foi considerado uma legislação "monstruosa" cujas penalidades eram aplicadas de maneira desigual, com base nos privilégios sociais do réu e da vítima.

[9]HISTÓRIA‌ ‌NATURAL: ao‌ ‌longo‌ ‌do‌ ‌século‌ ‌XVIII,‌ ‌tornam-se‌ ‌centrais‌ ‌a‌ ‌observação‌ ‌e‌ ‌estudo‌ ‌da‌ ‌natureza,‌ ‌orientados‌ ‌pelos‌ ‌critérios‌ ‌ilustrados‌ ‌de‌ ‌racionalidade‌ ‌e‌ ‌utilitarismo.‌ ‌O‌ ‌campo‌ ‌do‌ ‌conhecimento‌ ‌designado‌ ‌como‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌que‌ ‌compreendia‌ ‌a‌ ‌Botânica,‌ ‌a‌ ‌Zoologia‌ ‌e‌ ‌a‌ ‌Mineralogia,‌ ‌sofreu,‌ ‌no‌ ‌setecentos,‌ ‌a‌ ‌influência‌ ‌das‌ ‌novas‌ ‌teorias‌ ‌científicas‌ ‌e‌ ‌paradigmas‌ ‌filosóficos.‌ ‌Buscava-se‌ ‌promover‌ ‌um‌ ‌inventário‌ ‌da‌ ‌natureza‌ ‌de‌ ‌acordo‌ ‌com‌ ‌os‌ ‌sistemas‌ ‌de‌ ‌classificação‌ ‌e‌ ‌a‌ ‌taxonomia‌ ‌criados‌ ‌por‌ ‌‌Carl‌ ‌Von‌ ‌Lineu‌ ‌e‌ ‌das‌ ‌propostas‌ ‌de‌ ‌descrição‌ ‌e‌ ‌investigação‌ ‌do‌ ‌mundo‌ ‌natural‌ ‌organizadas‌ ‌pelo‌ ‌intendente‌ ‌do‌ ‌‌Jardin‌ ‌du‌ ‌Roi‌,‌ ‌conde‌ ‌de‌ ‌Buffon.‌ ‌Nesse‌ ‌período,‌ ‌foram‌ ‌promovidas‌ ‌viagens‌ ‌às‌ ‌diversas‌ ‌regiões‌ ‌do‌ ‌globo‌ ‌tendo‌ ‌em‌ ‌vista‌ ‌o‌ ‌recolhimento‌ ‌de‌ ‌espécies‌ ‌dos‌ ‌“três‌ ‌reinos‌ ‌da‌ ‌natureza”‌ ‌para‌ ‌envio‌ ‌aos‌ ‌museus‌ ‌e‌ ‌gabinetes‌ ‌de‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌criados‌ ‌na‌ ‌Europa.‌ ‌Em‌ ‌Portugal,‌ ‌verifica-se‌ ‌um‌ ‌crescente‌ ‌interesse‌ ‌pela‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌na‌ ‌segunda‌ ‌metade‌ ‌do‌ ‌XVIII,‌ ‌manifestado‌ ‌na‌ ‌criação‌ ‌de‌ ‌museus,‌ ‌gabinetes‌ ‌e‌ ‌jardins‌ ‌botânicos‌ ‌e‌ ‌na‌ ‌introdução‌ ‌da‌ ‌disciplina‌ ‌nos‌ ‌estudos‌ ‌superiores‌ ‌através‌ ‌da‌ ‌reforma‌ ‌pombalina‌ ‌da‌ ‌Universidade‌ ‌de‌ ‌Coimbra‌ ‌(1772).‌ ‌Após‌ ‌o‌ ‌período‌ ‌da‌ ‌ocupação‌ ‌holandesa‌ ‌no‌ ‌nordeste‌ ‌brasileiro,‌ ‌quando‌ ‌se‌ ‌produziu‌ ‌o‌ ‌primeiro‌ ‌tratado‌ ‌de‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌do‌ ‌Brasil,‌ ‌por‌ ‌Piso‌ ‌e‌ ‌Margrave,‌ ‌a‌ ‌investigação‌ ‌da‌ ‌natureza‌ ‌ficaria‌ ‌a‌ ‌cargo‌ ‌especialmente‌ ‌dos‌ ‌religiosos‌ ‌da‌ ‌Companhia‌ ‌de‌ ‌Jesus,‌ ‌até‌ ‌o‌ ‌setecentos,‌ ‌sobretudo‌ ‌em‌ ‌sua‌ ‌segunda‌ ‌metade,‌ ‌quando‌ ‌um‌ ‌maior‌ ‌aproveitamento‌ ‌das‌ ‌potencialidades‌ ‌dos‌ ‌territórios‌ ‌impulsionou‌ ‌o‌ ‌conhecimento‌ ‌das‌ ‌‌produções‌ ‌naturais‌ ‌dos‌ ‌domínios‌ ‌ultramarinos‌ ‌portugueses,‌ ‌incluindo‌ ‌as‌ ‌‌viagens‌ ‌científicas‌ ‌e‌ ‌filosóficas‌ ‌patrocinadas‌ ‌pela‌ ‌Coroa‌ ‌lusa.‌ ‌Integravam‌ ‌tais‌ ‌expedições,‌ ‌naturalistas‌ ‌formados‌ ‌pela‌ Universidade‌ ‌reformada,‌ ‌conhecedores‌ ‌da‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌que‌ ‌professavam‌ ‌os‌ ‌princípios‌ ‌de‌ ‌experimentação‌ ‌e‌ ‌observação‌ ‌da‌ ‌ciência‌ ‌moderna.‌ ‌As‌ ‌diferentes‌ ‌espécies‌ ‌vegetais‌ ‌e‌ ‌animais‌ recolhidas‌ ‌nas‌ ‌viagens‌ ‌eram‌ ‌encaminhadas‌ ‌aos‌ ‌gabinetes‌ ‌de‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌e‌ ‌classificadas‌ segundo‌ ‌o‌ ‌sistema‌ ‌lineano.‌ ‌A‌ ‌preocupação‌ ‌com‌ ‌as‌ ‌possíveis‌ ‌aplicações‌ ‌dos‌ ‌produtos‌ ‌verificava-se‌ ‌já‌ ‌na‌ ‌pesquisa‌ ‌de‌ ‌campo,‌ ‌quando‌ ‌os‌ ‌naturalistas‌ ‌indicavam‌ ‌o‌ ‌uso‌ ‌medicinal‌ ‌e‌ ‌alimentar‌ ‌que‌ ‌lhes‌ ‌davam‌ ‌os‌ ‌povos‌ ‌indígenas.‌ ‌Inúmeras‌ ‌foram‌ ‌as‌ ‌publicações‌ ‌que‌ ‌resultaram‌ ‌desse‌ ‌intenso‌ ‌período‌ ‌dedicado‌ ‌à‌ ‌coleta‌ ‌e‌ ‌à‌ ‌pesquisa‌ ‌dos‌ ‌chamados‌ ‌“três‌ ‌reinos‌ ‌da‌ ‌natureza”,‌ ‌entre‌ ‌elas‌ ‌o‌ ‌‌Florae‌ ‌Lusitanicae‌ ‌et‌ ‌Brasiliensis‌ ‌(1788)‌ ‌e‌ ‌o‌ ‌‌Dicionário‌ ‌dos‌ ‌termos‌ ‌técnicos‌ ‌de‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌(1788)‌ ‌de‌ ‌‌Domingos‌ ‌Vandelli‌;‌ ‌‌Flora‌ ‌fluminensis‌,‌ ‌de‌ ‌‌José‌ ‌Marianno‌ ‌da‌ ‌Conceição‌ ‌Veloso‌;‌ ‌‌Observações‌ ‌sobre‌ ‌a‌ ‌História‌ ‌Natural‌ ‌de‌ ‌Goa,‌ ‌feitas‌ ‌no‌ ‌ano‌ ‌de‌ ‌1784‌,‌ ‌de‌ ‌Manoel‌ ‌Galvão‌ ‌da‌ ‌Silva,‌ além‌ ‌de‌ ‌diversas‌ ‌memórias‌ ‌da‌ ‌Academia‌ ‌Real‌ ‌das‌ ‌Ciências‌ ‌de‌ ‌Lisboa‌ ‌‌dedicadas‌ ‌à‌ ‌botânica.‌ ‌ ‌

[10] ASTRONOMIA: compreendida na perspectiva da Revolução Científica, a astronomia é indissociável do processo de matematização da natureza, definido pela afirmação da escola realista, do princípio de que a matemática revelava a realidade das coisas, compreendendo o resultado acertado do cálculo como a demonstração da verdade absoluta ou ao menos aproximada da teoria. Tal perspectiva contrariava a vertente, de cunho aristotélico, que confinava as teorias formuladas a partir da matemática ao terreno das hipóteses e aos cálculos e predições. Na história moderna dessa ciência destaca-se inegavelmente o de Galileu Galilei (1564-1642) que fiel ao enunciado de Nicolau Copérnico, sustentou por meio de análises matemáticas e pesquisas experimentais ser o sol o centro do Universo, o que lhe valeu a condenação pelo Tribunal da Inquisição, em 1611, pelo crime de heresia. No século XVIII, considera-se essencial a constituição da mecânica celeste analítica, uma vitória das concepções de Isaac Newton, e que exigia observações exatas do movimento planetário. Esse momento de consolidação da disciplina inicia-se em 1687, com a publicação dos Principia de Newton, até as primeiras décadas do século XIX, quando se completa a edição do Traité de Mécanique Celeste de Laplace. Assim, como sintetiza Manuel A. Sellés (In: SELLÉS, M. et al. Carlos III y la ciência de la Ilustración, 1989), a astronomia no século XVIII é movida por dois grandes programas, um voltado para a grande tarefa de constituição da mecânica celeste e outro, destinado às atividades náuticas, cartográficas e hidrográficas, movido pela expansão econômica e comercial europeia no continente e no ultramar. Do ponto de vista ibérico, sobretudo português, deve-se lembrar que o tempo da publicação da obra de Copérnico é o mesmo em que se instala a Companhia de Jesus, tendo o ensino sob seu controle, seguindo fielmente a interpretação vigente das ideias de Aristóteles e S. Tomás de Aquino. O início das atividades científicas no campo da astronomia em Portugal pode ser fixado nos anos 1720, durante o reinado de d. João V, com a presença de jesuítas italianos, a construção de observatórios astronômicos e a publicação de obras voltadas à ciência moderna, de autoria de religiosos da Congregação do Oratório (Rômulo de Carvalho. A astronomia em Portugal no século XVIII, 1985). O período pombalino com a repressão à Companhia de Jesus e mesmo o desterro de oratorianos viria interromper essa trajetória, retomada na reforma da Universidade de Coimbra de 1772 com a criação da cadeira de astronomia. No reinado de d. Maria I destacam-se as expedições que, visando a demarcação de limites e o estabelecimento dos valores das coordenadas geográficas, ensejaram a aquisição de instrumentos astronômicos ou matemáticos.

Visitas de saúde

Registro de uma ordem do governador da Nova Colônia de Sacramento, o general de batalha Luiz Garcia de Bivar, para que sejam feitas visitas de saúde pelo então cirurgião José Moreira e tomadas às providências em caso de enfermidades contagiosas. A medida se deve à preocupação em relação à saúde do povo, exposta à entrada de embarcações vindas de outros portos, sobretudo de tráfico de escravos e de comércio.

Conjunto documental: Colônia do Sacramento
Notação: Códice 94, vol. 5
Data-limite: 1755-1756
Título do fundo: Secretaria de governo da Nova Colônia do Sacramento
Código de fundo: 8D
Argumento de pesquisa: Colônia de Sacramento
Data do documento: setembro de 1755
Local: Nova Colônia do Sacramento
Folha: -

 

Luiz Garcia Bivar[1], fidalgo da casa de sua majestade fidelíssima, general de batalha de seus reais exércitos, e governador desta praça nova colônia de Sacramento[2] . Vossa Excelência atendendo a que por não haver nesta praça Senado de Câmara[3], me compete a mim evitar os danos, que resultam à saúde deste povo, ocasionados com os males contagiosos de sarnas[4], bixigas[5], mal de Luanda[6], de São Lázaro[7], e outros, os quais muitas vezes introduziram-se com a chegada das embarcações, vindas de portos de barra fora, com gente, escravatura[8] de comércio.

Ordeno que de hoje em diante quando guarda mor, patrão mor, e mais oficiais da Alfândega[9] forem a visita de ouro às embarcações, que entrarem neste porto de barra fora, levem em sua companhia ao cirurgião[10] José Moreira a que venho nomeado e ir fazer visita da saúde na forma que se pratica nas demais partes, e achando alguma enfermidade contagiosa passar-se certidão jurada aos santos evangelhos que me será apresentada antes do desembarque de pessoa alguma, para dar a providência necessária: advertindo que o dito cirurgião nem os mais oficiais levarão emolumento algum por esta diligência, por ser em benefício do bem comum.

Colônia ilegível setembro de 1755 // Luis Garcia Bivar // e não se continha mais coisa alguma na dita ordem que aqui registre da ilegível eu Manuel de Azevedo Marques, secretário do governo, que escrevi e assinei.

 

 

[1] BIVAR, LUIS GARCIA DE (1685-1760): foi marechal de campo, sargento-mor de batalha, fidalgo cavaleiro da Casa Real, cavaleiro da Ordem de Cristo (1751), governador da Colônia do Sacramento (1749-1760) e senhor das Quintas do Ramalhão, Monte Coxo (Chelas) e Laranjeiras (Lisboa). Antes de assumir o cargo de governador em Sacramento, Garcia de Bivar viveu em Lisboa e foi ajudante real, gozando de grande prestígio na corte. Sucedeu o seu tio paterno, Manuel Garcia de Bivar, no Morgadio de São João Batista, em Santa Mônica, e casou-se com sua prima irmã d. Ana Josefa de Bivar Albuquerque e Mendonça. Organizou na colônia, festas notáveis para comemorar a aclamação de d. José I em 1752, e a chegada da expedição demarcadora de limites do Tratado de Madri.

[2]COLÔNIA DO SACRAMENTO: a fundação da colônia portuguesa de Santíssimo Sacramento, em 1680, na região próxima de Buenos Aires, do outro lado do rio da Prata, desencadeou uma série de conflitos entre Espanha e Portugal, sendo assim objeto de vários tratados e acordos de limites territoriais dessas monarquias entre 1681 e 1777. Sacramento foi sitiada pelos espanhóis em quatro ocasiões: 1704 a 1705, 1735 a 1737, em 1761 e 1772 a 1777. A fronteira meridional da América portuguesa esteve em aberto até o século XIX, o que revela uma trajetória luso-espanhola de disputas por expansão territorial, envolvendo também os grupos sociais ali presentes. As relações interétnicas na região do rio da Prata também sinalizam confrontos e alianças das forças colonizadoras com populações indígenas. As experiências de evangelização e assimilação da cultura cristã por meio dos aldeamentos missionários [ver missões] expressam outro elemento dos enfrentamentos. Ainda no contexto do extenso conflito de restauração e tratado de paz entre Portugal e Espanha, d. Pedro, príncipe regente português, determinou, em 1680, que Manuel Lobo estabelecesse a colônia de Santíssimo Sacramento na região americana do rio da Prata. Diante da Igreja, a diplomacia portuguesa articulou a criação da diocese do Rio de Janeiro, em 1676, com jurisdição até o Prata. No primeiro momento, o empreendimento conduzido por Manuel Lobo, durou apenas meses, tomado por ataques espanhóis coordenados pelo governador de Buenos Aires. Entre 1683 e 1705, sob tutela do governo do Rio de Janeiro, a Colônia do Sacramento recebeu homens e mulheres, incentivados pela Coroa portuguesa a promoverem a sua povoação. Contudo, o referido período se encerra com a tomada do posto avançado de domínio lusitano nessa extremidade, derrotado por um exército hispano-guarani. Na primeira metade do século XVIII, as campanhas portuguesas de recrutamento para a defesa de Sacramento foram recorrentes e, às vezes, compulsórias. O tratado de paz luso-espanhol de Utrecht, em 1715, devolveu a Colônia de Sacramento aos portugueses. Em 1722, António Pedro Vasconcelos assumiu o cargo de governador da Colônia do Sacramento, função que exerceu até 1749, e, a despeito das denúncias e das investigações envolvendo o seu governo, esse foi um período de expansão e desenvolvimento de Sacramento. No comando de Vasconcelos, aconteceram intensas relações comerciais entre agentes sociais luso-espanhóis naquela região, o que também revela uma dinâmica local de autoridade e poder para além das posições antagônicas de Portugal e Espanha. O Tratado de Madri, em 1750, estabeleceu a troca da Colônia do Sacramento, domínio português, por Sete Povos, possessão espanhola. No acordo foi prevista a transferência dos índios Guarani de Sete Povos para outro território espanhol, incluindo a cooperação entre forças colonizadoras contra a resistência dos indígenas. Em 1777, no tratado de Santo Ildefonso, Portugal cede Sacramento e Sete Povos aos espanhóis.

[3] CÂMARA MUNICIPAL: peças fundamentais da administração colonial, as câmaras municipais representam o poder local das vilas. Foram criadas em função da necessidade de a Coroa portuguesa controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam no Brasil. Por intermédio das câmaras municipais, as cidades se constituíam como cenário e veículo de interlocução com a metrópole nos espaços das relações políticas. Do ponto de vista da administração municipal e da gestão política, foram, durante muitos anos, a única instituição responsável pelo tratamento das questões locais. Desempenhavam desde funções executivas até policiais, em que se destacam resolução de problemas locais de ordem econômica, política e administrativa; gerenciamento dos gastos e rendas da administração pública; promoção de ações judiciais; construção de obras públicas necessárias ao desenvolvimento municipal a exemplo de pontes, ruas, estradas, prédios públicos, etc; criação de regras para o funcionamento do comércio local; conservação dos bens públicos e limpeza urbana. As câmaras municipais eram formadas por três ou quatro vereadores (homens bons), um procurador, dois fiscais (almotacéis), um tesoureiro e um escrivão, sendo presidida por um juiz de fora, ou ordinário empossado pela Coroa. Somente aos homens bons, pessoas influentes, em sua grande maioria proprietários de terras, integrantes da elite colonial, era creditado o direito de se elegerem e votarem para os cargos disponíveis nas câmaras municipais.

[4] SARNAS: termo que designou, no Brasil, até meados do século XIX, de forma genérica, qualquer erupção na pele, confundindo-se com outras lesões cutâneas produzidas por doenças, como a sífilis, a lepra, entre outras. O ácaro Sarcoptes scabiei (ou Acarus scabiei) foi descrito pelo botânico sueco Carlos Lineu em 1758 e, mais tarde, o médico italiano Simon François Renucci demonstrou o seu papel na origem da escabiose humana (sarna). A doença causa reação inflamatória, urticária e coceira intensa. A transmissão parasitária se manifesta por meio do contato, especialmente em locais onde se reúne muitas pessoas (exércitos, hospitais, presídios etc.) e péssimas condições higiênicas. As crônicas e narrativas dos anos de colonização e do século XIX registraram a ocorrência da escabiose entre os indígenas brasileiros, os europeus e os escravos africanos aglomerados nos porões dos navios. Nesse período, os banhos de mar foram utilizados com bastante eficácia no tratamento da sarna dada a inexistência de escabicidas e outros medicamentos hoje empregados.

[5] BEXIGA(S): doença infectocontagiosa, causada por vírus, também conhecida como varíola. A varíola não tem cura e foi uma das doenças mais devastadora ao longo da história, até sua erradicação no século XX. No período colonial, as epidemias da doença foram um dos principais fatores de dizimação da população indígena que creditava o contágio à água do batismo usada pelos padres jesuítas. O primeiro grande surto que se tem notícia ocorreu na Bahia em 1562 e 1563, matando milhares de índios Tupinambá e dizimando aldeias inteiras. Além da epidemia que se alastrou entre as décadas de 60 e 80 do século XVI, outros surtos epidêmicos ocorreram no Rio de Janeiro já no século XVII, sendo o mais notável o de 1655 que atingiu, também, Bahia e Pernambuco. Associa-se o desenvolvimento da doença no Brasil ao tráfico atlântico de escravos oriundos da África. Em 1798, realizou-se no Rio de Janeiro a primeira vacinação contra a doença no país, ainda com o método da inoculação do pus da varíola. Somente em 1811, com a criação da Instituição Vacínica, é adotada a vacina jenneriana, com a linfa vacínica, extraída do úbere das vacas. A instituição criada no Rio de Janeiro pelo príncipe regente d. João, como resultado da preocupação com o alastramento da enfermidade, foi entregue aos cuidados e supervisão do intendente-geral da Polícia e do físico-mor do Reino e tinha como alvo principal a população negra cativa. Os escravos vacinados eram mais valorizados para a venda, uma vez que esta era uma doença responsável por grande parte das mortes entre negros. O século XIX também assistiu a grandes epidemias de varíola, sendo notáveis as ocorridas no Ceará, em fins da década de 70, e na cidade do Rio de Janeiro em 1887, quando a doença era responsável por 47% dos óbitos na cidade.

[6] ESCORBUTO: os portugueses chamaram o escorbuto de “mal de Luanda”, doença causada pela carência de vitamina C – ácido ascórbico – no organismo. Durante muito tempo, discussões impregnadas de racismo, atribuíam ao continente africano e a população negra submetida a migração compulsória para a América, a origem dos males que acometiam luso-brasileiros, como é o caso do escorbuto, por isso a relação entre a doença e a região de Luanda. A inflamação nas gengivas, que acarretava a perda dos dentes, e as hemorragias, que causavam a anemia e em casos extremos a morte, eram sintomas comuns entre os marinheiros, devido à falta de vitamina C na dieta alimentar durante o longo período de travessia em alto-mar, e não originária da África como se atribuiu. A partir do século XVIII, as tripulações passaram a consumir frutas cítricas (lima, laranja e limão) que são fontes ricas em ácido ascórbico, para combater a doença.

[7] MAL DE SÃO LÁZARO: a hanseníase, também chamada genericamente de lepra ou mal de São Lázaro, é uma doença causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, ou bacilo de Hansen. É uma doença infectocontagiosa de evolução crônica que ataca as células cutâneas e nervosas periféricas e se manifesta por nódulos e lesões na pele com diminuição da sensibilidade e pode causar atrofias, paralisias e incapacitação física permanente. O termo antigo “lepra” englobava uma série de outras afecções de pele semelhantes à hanseníase, mas de causas diversas. A origem da doença é incerta, mas acredita-se que tenha surgido na Ásia, já que há referências a ela pelo menos desde o século IV a.C. em manuscritos da Índia e China, além de registros também no Egito. Muito do estigma e preconceito existentes em relação à doença vem do fato de ela ter sido descrita na Bíblia, considerada uma forma de punição de Deus aos pecadores, associada à ideia de impureza, perversidade, repulsa, da corrupção da carne e do espírito. As narrativas religiosas associavam quaisquer marcas na pele e deformidades à “lepra”, tanto que o diagnóstico era feito por sacerdotes, religiosos, e não por médicos. Os portadores da doença eram afastados do convívio social, expulsos das cidades, obrigados a usarem roupas e luvas que cobrissem o máximo do corpo, e mesmo um sino, que anunciasse sua presença; não poderiam se casar, trabalhar, entrar em casas, hospedarias ou igrejas. Embora fossem objeto de caridade por ordens religiosas, irmandades católicas e devotos, o sentimento que prevalecia era o medo e a exclusão, já que não havia cura e o tratamento empregado não produzia resultados. O uso do termo “mal de Lázaro” era inspirado no episódio narrado no Novo Testamento, sobre o mendigo Lázaro, “leproso”, que quando morre ascende aos céus. Antes de ser cientificamente descrita acreditava-se que a doença era hereditária ou transmissível sexualmente, o que levava a mais discriminação e isolamento de famílias inteiras, até a descrição do bacilo pelo cientista norueguês Gerhardt Armauer Hansen em 1873. Chegou ao Brasil com o início da colonização, não havendo consenso se trazida por europeus ou africanos. As primeiras medidas para contenção e controle da doença datam do século XVIII, com a construção de lazaretos, hospitais e asilos, todos controlados pela Igreja Católica. O primeiro asilo construído no Brasil foi no Recife, em 1714; em 1763 foi inaugurado o Hospital de Lázaros do Rio de Janeiro, em São Cristóvão, administrado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária (também conhecido como Hospital Frei Antônio). Entre os séculos XVIII e XIX outras cidades brasileiras também receberam instituições para cuidar dos chamados “lazarentos” – todas de caráter caritativo e assistencial, mas que visavam excluir os doentes da sociedade. Já na República, foi criado o Laboratório Bacteriológico em 1894, funcionando no hospital Frei Antônio e foi a primeira instituição pública para pesquisa e atenção da doença. Até as primeiras décadas do século XX, todas as instituições asilares e hospitais ainda eram mantidos pela Igreja. Entre os anos de 1930 e 1970 a política adotada pelos governos brasileiros foi a de segregação obrigatória dos doentes, isolados e confinados nos “leprosários”, que havia em praticamente todos os estados brasileiros. Hoje em dia o tratamento da doença, que permite a cura total, é realizado de forma ambulatorial e sem necessidade de afastamento da família e da sociedade. Entretanto, até hoje a hanseníase pode ser considerada um grave problema de saúde pública no Brasil, que atinge principalmente as populações mais pobres e desassistidas de condições sanitárias.

[8] ESCRAVATURA: a literatura médica sobre as doenças infecto-contagiosas, que se propagaram na América portuguesa principalmente nos séculos XVII e XVIII associou a introdução da lepra e da varíola no continente à chegada dos europeus e ao comércio de escravos africanos. Quanto à lepra afirmaram que não havia registro de casos do mal de São Lázaro entre os indígenas brasileiros na época dos descobrimentos. A varíola também teve a sua origem atrelada aos continentes europeu e africano. As inúmeras epidemias de varíola (ou “bexiga” ou ainda “pele de lixa” como se chamou no Pará e no Maranhão em 1695) se iniciaram no século XVI, se estenderam pelo seguinte, e assolaram drasticamente inúmeras capitanias no século XVIII, vitimando, principalmente, os indígenas brasileiros. Foi no século XVIII que as autoridades coloniais adotaram como medida de defesa contra a disseminação da varíola a “quarentena” (restrições ou isolamento, por períodos de tempo variáveis, impostos a pessoas ou a mercadorias provenientes de países em que ocorrem epidemias de doenças infecto-contagiosas) que devia ser observada em todos os portos da colônia portuguesa. No entanto, essa medida nunca representou verdadeiro obstáculo ao desembarque dos africanos trazidos para cá nos navios negreiros na maioria dos portos brasileiros, que não realizavam a fiscalização exigida.

[9] ALFÂNDEGAS: organismo da administração fazendária responsável pela arrecadação e fiscalização dos tributos provenientes do comércio de importação e exportação. Entre 1530 e 1548, não havia uma estrutura administrativa fazendária, somente um funcionário régio em cada capitania, o feitor e o almoxarife. Porém, com a implantação do governo-geral, em 1548, o sistema fazendário foi instituído no Brasil com a criação dos cargos de provedor-mor – autoridade central – e de provedor, instalado em cada capitania. Durante o período colonial, foram estabelecidas casas de alfândega, que ficaram sob controle do Conselho de Fazenda até a criação do Real Erário em 1761, que passou a cobrar as chamadas “dízimas alfandegárias”. Estas, no entanto, mudaram com a vinda da família real em 1808 e a consequente abertura dos portos brasileiros. Por esta medida, quaisquer gêneros, mercadorias ou fazendas que entrassem no país, transportadas em navios portugueses ou em navios estrangeiros que não estivessem em guerra com Portugal, pagariam por direitos de entrada 24%, com exceção dos produtos ingleses que pagariam apenas 15%. Os chamados gêneros molhados, por sua vez, pagariam o dobro desse valor. Quanto à exportação, qualquer produto colonial (com exceção do pau-brasil ou outros produtos “estancados”) pagaria nas alfândegas os mesmos direitos que até então vigoravam nas diversas colônias.

[10]CIRURGIÃO: a cirurgia vem de uma longa tradição científica que nos séculos XVII e XVIII podia ser localizada no tratado árabe “O método da medicina”, de Albucasis, (936-1013) traduzido em latim e largamente disseminado na Idade Média. Na França a cirurgia teria sido o campo mais radicalmente transformado no século das Luzes, como escreve Alain Touwaide (Chirurgie. In: Delon, M. Dictionnaire européen des Lumières, 1997). É nesse período que os cirurgiões conquistam o respeito dos médicos e que a cirurgia se torna, nas universidades, um instrumento de investigação do corpo e da própria doença. Os cirurgiões distinguiam-se dos médicos, havendo diferenças entre eles, como em Portugal onde eram divididos em três tipos, os diplomados, aprovados e barbeiros, segundo a formação e local de aprendizagem, como hospitais militares, misericórdias ou outros hospitais, como explica Lycurgo Santos Filho (Cirurgiões. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, 1994). Predominaram no Brasil e em Portugal os cirurgiões-barbeiros, acolhidos como aprendizes pelos mestres cirurgiões. Ainda de acordo com Santos Filho, nos séculos XVI e XVII os cirurgiões eram quase todos cristãos novos, quase sempre perseguidos pelo Santo Ofício por práticas judaizantes, mas que dada sua especialidade chegaram a postos de destaque na sociedade colonial, como assinala Ronaldo Vainfas (Cf. Cirurgiões. In: Dicionário do Brasil colonial, 1500-1808, 2001). Nos séculos seguintes os cirurgiões na América portuguesa foram muitas vezes negros, escravizados ou não, além dos classificados como brancos ou mulatos. Cabia-lhes sangrar, aplicar bichas ou ventosas, escalda-pés, banhos, arrancar dentes, e, cortar cabelo e fazer a barba. Sem que tivessem autorização para tal, procediam a amputações e lancetavam abscessos diz Lycurgo S. Filho. A cirurgia seguiria dividida entre aqueles que adquiriam o conhecimento com mestres ou pela prática e outros que a exerceriam a partir das universidades. A partir de 1808 os hospitais militares de Salvador e do Rio de Janeiro passam a contar com cursos de cirurgia; Entre 1813 e 1816 são fundadas, nas mesmas cidades, academias médico-cirúrgicas que concedem diplomas de cirurgião e cirurgião formado. Em 1832 são criadas faculdades de medicina no Império. (PIMENTA, T. S. “Curandeiro, parteira e sangrador: ofícios de cura no início do oitocentos na corte imperial”. Khronos, nº6, pp. 59 - 64. 2018.)

 

 

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